Por sob as tílias, a aragem levava presa a si o choro de um grupo de infelizes rodeados de parcos haveres. As crianças, de olhos muito abertos, secos de lágrimas fixavam os adultos que lhes devolviam a expressão vazia, como que hipnotizados: saltimbancos à força transportavam consigo braçado de trapos, os filhos segurando-lhes as roupas, no formigueiro humano que, afinal, eram. Pouco teriam para comer, para beber menos ainda, e iam dando forma a um novo modo de estar no mundo, cruzando-o sem bagagem: o corpo e o que nele conservassem eram tudo o possuído.
Sob tílias agora floridas, alguns deixavam-se envolver no doce perfume de árvores antigas, exibindo pétalas, cuja memória vegetal, mimética com a de outro tempo, talvez pudesse trazer algo de interessante para o texto, em contraponto com a realidade aterradora: a solidão, qual capa esburacada, não albergaria ninguém, a memória de lugares, entrecruzava-se, formava o caos anímico.
E quase nos habituáramos a sucessivas vagas humanas procurando a Europa agora unida. Os rugidos abafados do mar, o ruído surdo de neves despencando-se das montanhas, a brancura nas profundidades lácteas… Tudo o que podemos dizer, pensar e sentir esteve sujeito a formas de vida anteriores, a todas as circunstâncias passadas. Mas a vida serve para alguma coisa, não o facto de se ter vivido. Quando se conhece a tristeza como o ar que se respira, deixamos de acreditar: há um desígnio sombrio na escuridão, tentamos olhar para trás e só encontramos uma casa em ruínas e talvez quiséssemos encontrar um caminho que aparentando levar-nos até ela, dela nos arredasse para sempre, basta acreditar que existiu; por vezes, a melancolia desce do céu, qual nuvem pronta a reavivar corolas, reverdecer colinas ocultas.
Na natureza, vive a beleza e o altar soberano da melancolia, doce como os beijos recordados depois da morte, profundo como o amor e louco como todo o arrependimento: os dias que já não voltam são morte em vida.
Todavia, deixaram de comover-nos os que passavam dolentes sob tílias, transportando escassos haveres, pelo motivo evidente de fazermos todos parte de uma multidão imensa e transversal ao mundo; na maior parte, perdido o passado, o futuro não é sequer cogitação, não existe, é o vazio povoado de presságios, a incerteza é a canção do bosque, esta costumava ser contida qual donzela cantarolando pelas alamedas, a caminho de casa. As folhas novas empurram sempre as secas estalando sob os passos dos viandantes: um pedaço do Caos pode ser poeticamente fascinante; todavia, o ruído da vida parece cheio de harmonia e apreensão.
Será por causa da qualidade indefinível que faz emergir da sombra a imensidade sem vida do
Universo e nos aniquila, que todas as cores da terra não passam de ilusões subtis, a começar nos tons do poente ou das folhas das árvores, nos tons aveludados das asas das borboletas; tudo faz parte da ilusão e toda a natureza divina simplesmente exibe o colorido exterior sobre a sua essência deslavada.
A criadora de todo esse colorido é o grande princípio da luz, e a luz é definitivamente incolor… branca.
O Inverno terminará assim as chuvas; haverá flores e chegará o tempo em que a rola cantará pelos nossos campos; sob tílias. Levanta-te e vem, meu amor, a rosa e a papoila são as flores que testemunham beijos doces, sonhos.
(Todavia, isto não será mera literatura? Ainda acreditaremos no refazer da beleza do mundo?)
A possível exuberância do texto curto foi, também ela, condicionada pela austeridade natalícia…
Feliz Natal de 2020