A atualidade tornou-se de tal modo confrangedora, que a tentativa de encontrar coerência exigiria esforço penoso talvez desnecessário. Andamos, de um modo geral, apáticos, descrentes, acabrunhados, apreensivos quanto ao futuro.

Comportando-se tantos quais ovelhas tresmalhadas, mantem-se tendência para tropel desatinado, tomados alguns pela quimera de decisões procrastinadas que, como bem sabemos, geram insatisfação permanente, agressividade reprimida. Em determinada altura, talvez pela neurastenia, incerteza do futuro, alguns decidiram atacar o Passado. Longínquo, será inerme, todavia a memória do coletivo foi achincalhada na figura do Padre António Vieira; voltemo-nos para o presente e edifiquemos o futuro… Todavia, se o presente é uma teia de pressupostos, o passado mantém-se firme, inalienável: o historial dos povos, das nações, resiste a tudo, a memória da História desenha-nos um perfil honroso, enquanto portugueses.

Aliás, a figura veneranda de Vieira, cuja política, em relação aos povos entrelaçados na História portuguesa, foi meritória, constitui valor inquestionável; desconfiado dos poderes, escolhia dirigir-se aos simples, à natureza bruta (por vezes, o que nos salva é a metáfora);tal não evitaria a agressão gratuita, inesperada, séculos decorridos: concedendo-se pretexto, ignaros ansiosos de balbúrdia por motivos diversos, atacavam, repito, o Passado (que o presente mete medo, o futuro a espelhar confusa inquietação.) Por cobardia, apontaram o binóculo e escolheram Vieira, mas poderia ter sido outro: se devemos orgulhar-nos de algo será do passado longínquo enquanto nação; o Passado configura a História, repito, e esta constitui-se Memória, sem a qual nações acabariam por esbater-se na bruma do tempo.

Neste ano de Peste, Inquietação e Míngua, foi decidido – repito - afrontar o Passado numa figura setecentista, assentes alguns no princípio de que privara com índios no Brasil, do mesmo modo com negros traficados, procedimento comum a outras nações europeias, sendo precisamente do Brasil – recordo - que os holandeses, estabelecidos em Pernambuco, se deslocavam a Angola, onde não tinham jurisdição, em atos de pirataria negreira. Acabariam expulsos de Pernambuco, pretendentes à administração do portentoso Brasil, país que vive agora tragédia social aterradora, por motivo pandémico. Enfim, o labirinto da História, sendo exaltante, constitui armadilha psíquica pronta a enlear.

A História não pode remendar-se para contentar a aleivosia de estouvados. Há que respeitá-la, amá-la; se não tivéssemos um passado admirável de coragem e perspicácia, nenhum povo nos respeitaria hoje, nem nós próprios. Dado o futuro incerto do mundo, seria imbecilidade menorizá-lo; todavia o trauma permaneceu; obstáculos inesperados podem surgir no decurso de qualquer negociação, na união de países europeus, todavia antagonistas quando «europas» fora da Europa. Note-se que somente a Rússia constituiu o seu império na euro-ásia.

Quando a União Europeia recebeu o Nobel da Paz na primeira década do século, ninguém pressupunha o mundo agora avassalado pela doença, o decesso brutal; tem a UE no infortúnio fator nivelador, perseverando em estratégias, os países cada vez mais dependentes entre si. A memória tem precisamente a função de eternizar emoções por vezes contraditórias, pelo que continuará a assaltar-nos tremenda ambivalência: na atualidade, quase tudo escasseia, oxalá permaneçam a esperança e a dignidade. Enquanto portugueses, acreditamos na vontade e competência dos poderes; todavia, o futuro tornou-se fórmula einsteiniana que ninguém, por ora, conseguiria enunciar.

O estado das coisas leva, no entanto, a assentar o foco na sociedade civil entendida como comunidade em que a solidariedade, inspirada pela igual dignidade humana, inclui o direito à diferença, não com tolerância, mas com sensatez: egoísmos impiedosos movidos por interesses próprios sempre tendem a violar a ética.

Passando para outro tema, ainda que ligado ao acima expresso, vive-se o entusiasmo pela «bazuca» económica apontada a Portugal; pode e deve ser motivo de conforto, cientes da tragédia financeira que se abateu sobre o nosso país. Sobressalta, no entanto, a preferência por metáforas belicistas, ainda estão neste mundo muitos dos que viveram no Ultramar os melhores anos das suas vidas, embora a tragédia nos espreitasse. Éramos jovens, a morte seria sempre para os outros; e foi, continua a ser, temos exemplo na leviandade de certa camada etária a concorrer, por atitudes rebeldes, para a disseminação da pandemia, pior esta que uma guerra, qualquer delas.) Uma bazuca…

A memória é inalienável.