Filomena Cabral
Com formidável pateada, terminou o espectáculo eleitoral, pontuado pelo rancor expresso de vários modos. Mal querença avassaladora transtornara, durante semanas, o país, uma vez que não haverá possibilidade de remeter para uma qualquer espécie de maleita, que não seja social, esta moderna forma de estar em que ninguém se sente responsável por ninguém, nos actos e nas palavras, logo nem por si mesmo.
E senão vejamos: finge-se o cumprimento de responsabilidades, ilude-se o interlocutor crédulo, levando-o à degradante espera pelo adiamento constante, objecto de usurpação sistemática, ainda que da respeitabilidade perante terceiros, forçando-o à vergonha a que são indiferentes os seguidores da cartilha da «cleptocracia», de variada estirpe e que galgou fronteiras. Isto acontece no Poder e fora dele. Rouba-se em espécie, aldrabando compromissos, ou a honra, o prestígio, isto é, a probidade, uma vez que, para o usurpador, todos o são em potência, tal como, na ideia do mentiroso, todos falseiam a verdade. Protegem-se entre si, tais militantes da não ética, nos mais diversos níveis, ainda que desconhecendo-se na totalidade. Conseguiremos Imaginar o que sucederá no dédalo do Poder, com todos os naipes à mão, podendo cartear à vontade? Obviamente, não.
Restringida a possibilidade de agir, obliteradas regras, o próximo facilmente é catalogado na categoria de prevaricador, ao olhar de terceiros, quando afinal só falseia aquele que altera a verdade, conscientemente, na tentativa de conseguir, pela manipulação, o adiamento de uma qualquer responsabilidade. Hoje há perjuros de primeira, segunda e terceira instâncias, até mais, gerou-se pandemia cleptocrática.
Hodiernamente, o abandono do exercício de virtudes dantes impostas, quer no meio familiar quer por via institucional, desde a tenra infância, levaram a que se verificasse uma distorção preocupante na ideia do mundo em que nos integramos, formando-se imagens falsas, na intenção de conduzir o semelhante à queda moral: nada incomodará mais o prevaricador que um dedo que o aponte como exemplo a não seguir, a denúncia, enfim.
Bem sabemos que, sujeitos à contaminação de modelos de comportamento, pouco ou nada faremos para cultivar a diferença, receando que nos tomem por lorpas, num país de espertalhaços. Pessoalmente, temo os finórios, são perigosíssimos, possuem estruturas mentais e de comportamento que nem imaginamos, militam no engano sistemático, desvirtuando, e, por fim, o próximo, eu ou você, caro leitor - pressuponho que não será um espertalhaço -, manipulados, correremos sério risco de que nos caiba imagem deplorável.
No tempo em que se pesavam as colheitas e se fazia contas à vida, num mundo conhecedor do valor da troca, em ciclos de cultivo e de criação, a vida poderia encarar-se em contínuo, o que traria sossego ao quotidiano (embora o progresso sempre inquietasse). Do mesmo modo, a estabilidade de serviços prestados a terceiros, garantida a retribuição, evitaria o desespero. Depois, incorporados outros modos de viver - num processo lento -, fomo-nos nivelando pela capacidade de engendrar despesa – embora isto seja bem mais complexo -, a que viríamos a chamar consumo. Com tal prática, deixou-se de gastar segundo o ganho mas conforme o empréstimo, criando-se a ilusão de que da banca jorraria liquidez perpétua.
A determinada altura, certos cavalheiros, criando uma fábula, decidiram edificar um “forte” para uso próprio, nele acumularam matéria-prima pecuniária disponível e não disponível, não só a deles mas a dos que conseguissem arrebanhar, garantindo-lhes que, com uma só besta, e sem vendê-la, poderiam comprar o rebanho inteiro, ainda uma parelha de bovinos e inúmeras colmeias; o brinde seria um “toyota away”, telemóveis ultra, até relógio de pulso para astronauta, tudo sem desembolsar um euro! Fruiriam “do bem”, por importância ridícula mensal, nada adquiriam, mas, em contrapartida, teriam tudo.
Arrebatados, os nossos compatriotas e não compatriotas, pela nova Europa, pela nova moeda, pelo “mundo novo” – na era do lazer - que se lhes abriam, trocaram as mercearias de bairro pelos supermercados, as lojas de miudezas e tecidos pelo centro comercial, onde os próprios bancos se instalavam, estendida uma rede de responsabilidades e facilidades. E a vida parecia digna de ser vivida - por fim -, as crianças acreditavam que só teriam de fixar códigos de caixas mágicas; e os pais, desistindo de dizer-lhes que estavam enganadas, convenceram-se do mesmo.
Esta fábula durou o que durou. As coisas começaram a alterar-se quando o senhor M., “m” de “murder” e de algo mais, derrubou a ilusão de estabilidade financeira, arruinando meio mundo, “a nata da nata”. O sistema ruiu, qual castelo de cartas. Aqueles que por cá tinham poupanças a bom recato - uns mais ingenuamente que outros –, administradas por sociedades financeiras, para que mais rendessem, verificaram, uma vez ainda, que o acesso ao lucro dependeria da importância do sujeito, assim era no tempo dos flibusteiros ao serviço do reino. Todavia, desde que o mundo era mundo, a existência de redes de influência fora subtil e secreta. Raro o escândalo, o leaking, tudo ficava sepulto num mundo abissal. Eis senão, o «mar da palha» decidiu agitar-se, salpicando o terreiro do paço. O descalabro motivado por M. gerara tal inquietação que, a partir dele, misturar-se-ia com afoiteza o trigo e o joio: oxalá a segadora passasse por este, aqueloutro - misturados ressentimento e sede de vingança -, levando-lhes couro e cabelo. E nem assim se aquietariam os falsos impolutos. Se a ocasião faz o ladrão, fará do mesmo modo o herói, este resiste ao impulso de fugir do risco, o outro deixa-se seduzir por ele.
A hipocrisia, peça da engrenagem da cleptocracia vulgar noutros países, atingiu a cremalheira da nossa campanha eleitoral para as presidenciais, atascando-a na suspeita. Não se discutiram ideias, projectos para o futuro do país, parecíamos um bando no encalço do pecúlio do parceiro, a bem ou a mal, ainda que o da probidade. Portugal tornou-se – ai de nós – caricatura de uma sociedade cleptocrática de responsabilidade limitada, vendendo dívidas. Poderemos arrepiar caminho? Sonhar é fácil mas deveras dispendioso.
Em geral, uma acção é legítima sempre que o agente individual ou o actor colectivo for capaz de explicitar as razões que o levaram a agir como age e tais razões forem aceites, tanto pelos interlocutores que o questionem, como por quaisquer interlocutores virtuais que o possam vir a questionar pelos mesmos motivos. Entre a acção e a expressão das suas razões, estabelece-se assim uma relação de diferimento, o que faz com que aquele que age não tenha de explicitar o modo ou as razões pelas quais age. No vasto domínio das acções não empreendidas ou omitidas, também temos de fazer intervir a relação intersubjectiva, pois é só a partir das expectativas da acção omitida que podemos definir o seu âmbito e ajuizar a sua legitimidade.
Assim, omite agir aquele que, face a uma expectativa, explícita ou implicitamente formulada, se abstém de realizar a acção esperada por outrem, e esta omissão é legítima sempre que o agente possa invocar as razões pelas quais se abstém de agir. Há um sentido comum prévio, tanto na pergunta como na resposta, o que remete para a pertinência ou então para o absurdo.
Foi entre a pertinência e o absurdo que decorreu esta campanha eleitoral de 2011, formulando-se expressões de ressentimento pelo sujeito do discurso: a adequação depende não de processos de demonstração, mas da capacidade que o sujeito possuir de mostrar a sinceridade dos sentimentos expressos e de convencer o interlocutor - também nós, os telespectadores - dessa sinceridade. Só a partilha de um mesmo universo de sentido subjectivo, por parte dos interlocutores, fundamenta a possibilidade de apreciação da sinceridade do sujeito do discurso, nomeadamente através de processos de empatia. Logo, o que faria exultar alguns, indignaria outros, pela impertinência.
Liberta de ilusões enganadoras, a campanha foi sendo moldada, inevitavelmente, por imperativos antagónicos e do mesmo modo incontornáveis, confrontando-nos com a evidência de um progressivo enclausuramento da experiência - também de ordem cultural - em espaços cada vez mais restritos, dando origem, inclusivamente, à eclosão de regionalismos, em grande variedade de atitudes, gerando-se o velho antagonismo entre o universalismo e os particularismos culturais: hoje, na era da informação generalizada, também ao poder político não restará mais do que a paródia gestionária dos velhos fantasmas, que tem vindo a esconjurar ao longo dos séculos.
É esta modalidade irónica da gestão política da experiência de viver, que nos faz estranhar os laços sociais que se estreitam nas sociedades mais fechadas sobre si, por vezes pela insularidade, apresentando característica constante, o facto de estarem intimamente enraizados no quadro da experiência que se situa dentro de um mesmo território: ao rememorar a memória comum dos acontecimentos notáveis, reconhecidos e partilhados por todos, a experiência comunicacional é a fonte daquilo que designamos por identidade colectiva. Informação e comunicação formam assim um todo inseparável, escapando a linguagem a qualquer espécie de processo autónomo, sabido que certas formas de sociabilidade são tradicionais, no sentido próprio do termo, na medida em que se alimentam da reserva de sentido a que damos o nome de tradição, sem esquecer que, mesmo nos nossos dias, tanto a antecipação como o adiamento da informação, em relação aos acontecimentos, constituem dispositivos imprescindíveis do poder político, jogando com a competência de previsão, em ordem a tirar o máximo partido da realidade, quer orientando-a, quer evitando eventuais efeitos nefastos, ou ainda corrigindo os inconvenientes.
Retardar a ocorrência dos acontecimentos, de modo a poder dominá-los, ou precipitar o seu desenrolar, no sentido de evitar que forças adversas exteriores ou interiores pudessem aproveitá-los num sentido desfavorável ao pretendido, deixou de ser praticável em democracia, que continua, entre nós, de excelente saúde. Tal foi evidente, na recente campanha eleitoral com o seu quê de ópera bufa, nos excessos dispensáveis (alguns insulares e surpreendentes, convenhamos, mas rir nem sempre é o melhor remédio, por obliterar o raciocínio); moderada a impertinência, todos teríamos ficado a ganhar. Até porque, retiradas as máscaras, terminada a representação, a linguagem permanece qual tesouro inesgotável, com o qual vamos balizando as fronteiras que delimitam o nosso mundo da experiência comum, ou melhor dizendo, o processo de desdobramento do mundo diante de nós.
Nada continuará igual, no entanto. Extravasada a inquietação, qual vitória democrática “après la lettre”, o efeito é perceptível, poucos dias após o acto eleitoral. No querer continuamos fortes. Precisamos, todavia, de estrategas. E lá vamos.