UMA APAGADA E VIL TRISTEZA
Filomena Cabral
Deprimidos, obcecados pela maldita crise, na ilusão de abatê-la sem apelo nem agravo, mergulhámos na atávica tristeza, mais ou menos vil, conforme a época, embora o dano, perante a escassez, faça perigar o preceito moral, a ética. Corremos em círculos, desorientados, intuímos que o indivíduo, enquanto tal – isto é, nós próprios –, vai diminuindo em importância. E, no entanto, apesar deste apontamento mordaz, persistem bons motivos para confundir os medos: as sociedades contemporâneas tornaram-se, por razão científica e técnica, menos seguras a longo prazo que as sociedades tradicionais, verifica-se estranha assimetria entre os perigos reais e a percepção social do risco, visando a apreensão por determinados temas (pretéritos?), a delinquência, as doenças, acidentes rodoviários e aéreos. Agora, de novo, a execranda xenofobia? No entanto, a filosofia catastrofista que, curiosamente, acompanha a banalização do risco em progressão geométrica, impede a apreciação concreta e precisa do mesmo, como se as sociedades fossem desenvolvendo reflexos desproporcionados, em relação ao objecto da sua apreensão.
Por que motivo será tão difícil, apesar dos esforços dos maiores especialistas na “avaliação do risco”, chegar-se a uma visão mais objectiva dos perigos do progresso, se o risco é uma consequência directa daquele? O “risco puro” não existe, sim a ambiguidade da relação do indivíduo com o risco, isto é, a mistura de razões técnicas e de inclinações morais que levam a considerar o perigo enquanto insensibilidade a outros tipos de perigo, a subjectividade moral ou passional acompanham a sua percepção, pelo que, sustendo-o, o vão deformando.
Existirá um estilo colectivo, face ao risco, estilo que revele as forças e as fraquezas dos grupos sociais que o encaram? Levará o risco à crise quando, pelo contrário, se incorre no risco para afastar a crise? A ameaça concreta conduz à combinação subtil de vigilância e de improviso, ainda que o conhecimento implique a aceitação da incerteza, não enquanto sinónimo irracional face ao perigo, mas cruzamento de experiências e de conclusões. Por vezes, o silêncio sobre o perigo ou o conflito leva a um perigo maior, na avaliação do risco ou na contradição entre estimativa e risco.
Ora os membros da sociedade global não parecem aceitar, na generalidade, o carácter compósito, misto, na cultura do risco que uma sociedade contemporânea acentua, pelo contrário reforçam-se tendências contestatárias, a vontade crispada de uma separação radical entre a racionalidade, a moral ou a emotividade. A dualidade razão/moral face ao risco é, fora de dúvida, um efeito contemporâneo: o “hiper-conhecimento” como que afastou o homem dos carris da “ilusão”, parece haver escondida nos prazeres, na produção, na pesquisa, a figura da angústia, as conquistas tecnológicas como que a punição da arrogância, esta enquanto «laboratório de alto risco». As verdades da «ciência dura» acabam por impregnar o sistema psicossomático de uma «política mole», e acabarão por confluir em «decisões duras», caindo-se no erro de supor que tudo poderemos controlar pela razão. Por isso corremos no encalço da ética e ela parece fugir-nos.
A vida começa a tornar-se insuportável, seja pela perigosidade potencial generalizada, seja pela obrigação de estabelecer regras que impeçam que atinjamos o «momento crítico» – desconheço o que seja, embora esteja certa dele –, imperceptível, a insegurança potencial elevar-se-á, como de há muito, pelo binómio tecnicismo/humanismo, daí a infinidade de pactos, arranjos, alterações de códigos éticos, e refugiamo-nos numa perigosa paranóia de competências: todos opinam e encontram soluções. Todos se exprimem, em plena liberdade de expressão, mas sabemos necessários espaços de silêncio, de frustração e até de esquecimento, para que a “memória” se permita exprimir-se correctamente. Já repararam que todos temos algo a dizer – e a contradizer –, dia após dia? E alguns integram o sistema e a segurança inerentes ao progresso… Ou estaremos já em regressão e ainda o não descobrimos? Para que deixasse de haver acidentes aéreos, por exemplo, a decisão mais radical seria a total ausência de passageiros, assim a eliminação de rodovias, levando a um corte nas relações sociais, numa espécie de ficção sistémica…
A defesa, a protecção está na ordem do dia, combinando recursos e conhecimento. O domínio do Estado globalizado foi, na França – tem-se aludido a este país, entretanto, por motivos dúbios –, uma mistura de natureza e cultura, até à legislação da segurança social de 1945 (e tudo se degrada!), o aparelho do Estado tenderia, a partir dali, para uma mesma autoridade técnica a estender-se pelos ramos do aparelho do mesmo Estado, atendendo aos diversos problemas, tentando fundir, misturar os riscos particulares numa gestão global. A ideia era ultrapassar a grande crise da Segunda Guerra Mundial, a assunção da gestão do risco seria assumida em pleno por um estado militar, o de Georges Pompidou, inspirado nas criações institucionais de Richard Nixon para formar, em 1971, o ministério do Ambiente, sob a direcção de Poujade. A «moral do ambiente» era ainda um enunciado frágil na Europa (escalavrada), o que não impediria a formação de economistas no planeamento, «avaliando o inquantificável», como dizia S.to António. De qualquer modo, seriam multados os poluidores, desde 1964, vigiando-se assim a qualidade da água. Mas logo haveria de formar-se um grupo de administradores iluminados, de alto coturno, que aceitavam a hegemonia da engenharia das Minas. Após a morte de Pompidou, as fífias técnicas e financeiras do Estado denunciavam já (na opinião de Denis Duclos, um investigador do risco) alguma dificuldade em manter o lugar e a consistência, enquanto ministério, oscilando entre as tutelas, dir-se-ia, ouso, numa espécie de maleita irradiante de largo espectro, a longo prazo.
De qualquer modo, o patronato do risco começaria – o seu a seu dono – com uma lei de 1976, a falta inexplicável, a inaptidão, a propensão ao acidente tivera o respectivo tubo de ensaio na Grã-Bretanha, durante a Grande Guerra, e nos anos 30, nos Estados-Unidos. Enfim, toda uma série de investigações tenderiam a tratar o risco, atribuindo-lhe características cíclicas, reveladoras do seu limite. O acesso social ao risco parece conduzir, pelo seu lado, a um valor utópico mercantil do mesmo risco, num psicologismo complexo de atracção ou repulsão pelo perigo; geralmente, procuram-se a clareza legal e as regras do direito de apropriação e uso, enquanto se vai indagando da possibilidade de fundir tudo isso numa moral generalista que se pretende útil.
Entretanto, a «ciência do risco» encarregou-se de incluir aspectos positivos, integrando-os no debate colectivo: «sem risco não haverá progresso», «o estatismo leva à estagnação». Todavia, esta globalização respeitava os técnicos, os especialistas, ausentavam-se das suas áreas específicas para integrarem as fileiras da «ciência do risco», resultando assim em aculturação e na formação de um clã, o «risk establishment», cujo conceito veio a alargar-se, até tornar-se global. Nos anos 50/60, a polivalência no nuclear, fixava eixos teóricos, em que o “risco”, aceitável, incorria no risco de uma ideologia científica alienante.
Eis senão quando, o “risk establishment”, que, numa pirueta, aproveitara o abrandamento no nuclear com o fim da guerra fria, leva tais “cérebros” a voltar-se no seu todo para o mundo económico-financeiro, enveredando pela especulação, como que viciados na adrenalina alheia: surgia uma nova classe, a dos fruidores do sucesso, à custa do descalabro generalizado, da crise dos outros, que se tornou, entretanto, deles. Todavia «O recado que trazem é de amigos, / mas debaixo o veneno vem coberto, / Que os pensamentos eram de inimigos, / Segundo foi o engano descoberto. / Ò grandes e gravíssimos perigos, / Ó caminho da vida nunca certo, / Que aonde a gente põe sua esperança, / Tenha a vida tão pouca segurança! //» A nossa sabedoria de portugueses vem, através de Camões, do séc. XVI, mas o culto da desdita, o gosto amargo de infelizes a que condenamos a saudade, tornou-nos fatalistas ao longo de séculos. Ficaríamos mais desorientados, especulo, com uma qualquer cornucópia de bênçãos que com a desdita; sem de tal tomarmos consciência, teremos sido contagiados pelo «risk establishment», pois consideramos amigável o recado que o areópago das nações acaba de enviar-nos.
Lisboa, 27 de Setembro de 2010