Índice:
44 -
FASCÍNIOS
43 -
DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES
42 -
TOGETHERNESS
- Todos os caminhos levaram a Washington, DC
41 -
Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi
40 -
“I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”
39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA
38 -
EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO
37 -
FEDERICO GARCÍA LORCA
36 -
O PORTO CULTO
35 -
IBSEN – Pelo TEP
34 -
SUR LES TOITS DE PARIS
33 -
UM DESESPERO MORTAL
32 -
OS DA MINHA RUA
31 -
ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS
30 -
MEDITAÇÕES METAPOETICAS
29 -
AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS
28 -
NO DIA MUNDIAL DA POESIA
27 -
METÁFORA EM CONTINUO
26 -
ÁLVARO CUNHAL – OBRAS ESCOLHIDAS
25 -
COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"
24 -
As Palavras e os Dias
23 -
OS GRANDES PORTUGUESES
22 -
EXPRESSÕES DO CORPO
21 -
O LEGADO DE MNEMOSINA
20 -
Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM
19 -
FLAUSINO TORRES – Um Intelectual Antifascista
18 -
A fidelidade do retrato
17 -
Uma Leitura da Tradição
16 -
Faz-te à Vida
15 -
DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS
14 - Cicerones de Universos, os Portugueses
13 - Agora que Falamos de Morrer
12 - A Última Campanha
11 - 0 simbolismo da água
10 - A Ronda da Noite
09 - MANDELA – O Retrato Autorizado
08 - As Pequenas Memórias
07 - Uma verdade inconveniente
06 - Ruralidade e memória
05 - Bibliomania
04 - Poemas do Calendário
03 - Apelos
02 - Jardim Lusíada
01 - Um Teatro de Papel
Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implica
uma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezes
da actualidade, se esqueçam as diferenças.
No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todos
os acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivas
em que as micropráticas têm espaço de discussão.
Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma prática
jornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectiva
cultural especifica ou informativa, numa área não suficientemente
rígida, embora de contornos definidos.
Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.
Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006
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02.05.09
Filomena Cabral
FASCÍNIOS (1)
Durante muito tempo, intrigou-me o pormenor nada despiciendo, como veremos adiante, se tiverem a paciência de escutar-me, que, de entre todos os ficcionistas disponíveis até aos anos 60/70, época em que parece ter-se processado em mim uma alquimia involuntária mas apaixonada, pelo contributo de textos, autores de diferentes latitudes, no que à Literatura portuguesa respeita – assim evitando lançar-me no encalço de múltiplos fascínios -, durante décadas, o meu maior entusiasmo, pela obra queirosiana, incidisse em “A Ilustre Casa de Ramires”, o que se mantém. Todavia, se atentarmos no pormenor de a primeira leitura da obra ter acontecido em África (eu não publicara ainda qualquer livro), a (e)vocação colonialista queirosiana, por mor de Gonçalo – perdida a personagem em sonhos de grandeza patrística, estratégia sempre a bordejar o satírico -, teria tudo, na época, para motivar-me. No entanto, o livro da perturbação viria a ser “A Confissão de Lúcio”, de Mário de Sá-Carneiro, alguns anos depois de ter lido Eça. E para sempre haveria de transitar pelos universos de ambos; hoje, não tenho dúvidas. Em Eça, a tragédia parece ser vigiada por um devasso sentimental, a emoção exibe todo um ar do seu tempo, com cedência ao marialvismo, a uma certa dignidade maquiavélica dos simples – aludo a Juliana, e poderia aludir a outras personagens, dele, com a devida vénia, ou minhas, não segundo o modelo das suas, e todos caímos nestas tentações, mas afinando o instrumento pelo dele, com a devida distância, por óbvio, por certo contaminado o expoente maior da narratologia portuguesa por Teófilo Braga, na matéria disponível – creio quase inviável que tal não sucedesse, era e é aquele como que o almanaque erudito de todas e quaisquer idiossincrasias lusitanas. Haveria outros. Fiquemos por aqui, por economia de texto.
Em Eça de Queirós, nos ficcionistas do século dezanove, as grandes vítimas são sempre figuras femininas, Proudhon também teria nisso uma palavra a dizer; as mulheres, em casa, ou então absolutamente “públicas”. Aliás, Oliveira Martins, outro colonialista, opinava que a tutela da mulher deveria ser exercida pelo marido, e quase são os sonhos deveras sonhados pelas personagens que levam Eça a humanizar-se, enquanto narrador, em permanente reajustamento da acção, numa cedência ou anuência ao inter-mundo, o lugar das personagens e das forças da criação. A Amélia, de “O Padre Amaro”, com triste fim, e os sonhos do padre, em cruéis vinganças, foram sendo – sem desfrute – as claves do inconsciente, Eça retesando, afinando as cordas, em permanente sintonia com a literatura e a ópera; notável o travestismo de Eça, quando se apropria dos devaneios femininos. Mas, contenhamo-nos agora, voltemo-nos, se quiserem continuar a acompanhar-me, para a fusão de conteúdos conscientes e inconscientes, no processo criativo, no século que também foi o de Freud e Jung. Se a fantasia activa implica o auxílio do ego para emergir da consciência, por serem desta estirpe as fantasias criativas, tendo como dado adquirido que a fantasia passiva é de natureza patológica, o sujeito da escrita envereda então pelo caminho do “demónio da criação”, a fantasia perversa priva o sujeito de apreciar a realidade, e, desejando o desejo, nem sequer deseja o desejado…
A culpa estimula… Para Jung a líbido é uma transferência de energia em busca de uma satisfação. Tentar opor o Bem à culpa é um contra-senso, o melhor, opina, é manipular o Mal, pela transgressão implícita, a inquietar o indivíduo, o que não faz supor que o escritor seja maléfico, utiliza, isso sim, a perversidade para realizar-se, para concretizar o texto. Será evidente que tais aspectos se evidenciam de diferentes ângulos, o “racional” Eça, o tresloucado Poe – outro dos meus fascínios – geniais ambos, correndo quiçá para o Éden perseguidos por impulsos convertidos em desejo, em ânsia, num transfer em contínuo, como que para alijar carga demasiado dolorosa; no entanto, o desejo seria sempre vontade intolerável: e vão adiando actos (das personagens), sabedores de que terão de atingir o momento terrível de os concretizar.
Alheando-me de juízos de valor – tal seria caricato, aqui e agora -, durante os processos criativos vamos resistindo a “cometer” o texto, entre a substância e a sombra, até que ele saia de nós e, por fim, nós dele…É, de facto, a “délivrance”; finalizando-o, apartarmo-nos. Depois desse momento, o nosso olhar sobre o texto, o “corpus”, será oblíquo, impiedoso, o texto deixa de perturbar-nos; afastado o corpo do delito, distanciámo-nos do bordo do precipício, assolados que fôramos pela náusea, qual criminoso após o crime. Resistindo à vertigem, na forma de um pensamento, uma fantasia, na impaciência vencida da queda, escapamos, enquanto narradores, ao aniquilamento, e só a razão nos arreda dali: todos os textos têm momentos de incursão no delírio – o próprio acto de criar oscila entre a lucidez e a loucura: o louco permanece no terreno desta, o criador regressa, para voltar, logo que lhe seja possível. Se bem lermos os textos, estabeleceremos as ligações entre os momentos da inteligência, da razão, e aqueles outros que nos ultrapassam e nos arrastaram para ali.
Concordemos num ponto: enquanto narradores, e sem necessitarmos de nos situar em ordens de grandeza criativa, vamos rejeitando planos, e as “mortes por visita de Deus”, as naturais, não nos interessam, ou muito pouco, pois não contrariam o natural desenrolar da existência. A Literatura é o contínuo transfigurar, e desde o início do século vinte que o escritor passou a ser o instrumento da escrita. Seremos malevolentes, os que perseguimos a perversidade? Claro que não, aquela supõe a intenção consciente de fazer mal, ao passo que a perversidade aparece como uma disposição natural, age-se mal, instintivamente… Aliás, a literatura dos bons sentimentos é denunciadora de fraqueza de ânimo, de uma certa bulimia emocional, quase repugnante, não é demais dizê-lo.
Será talvez certo – e permitam-me que devaneie, como quem dedilha sonhos, apertando cavilhas, afinando o tom – que sobre cada um de nós, enquanto criadores, se debruça um anjo caído, uma qualquer potestade, não direi serafins, que esses pouco se manifestaram, desde o negrume da criação. Após a luz, segurando a arca da aliança – e quem o diz é o profeta Isaías – dois serafins, com seis pares de asas, símbolo de hierarquia celeste, são afinal medonhos, assemelham-se às figuras de leões e touros alados, esculpidas nas fachadas dos palácios assírios. Associar o Bem e o Belo parece ter, na Criação, os seus perigos…
Conscientes destes processos, Deleuze e Guattari proclamam, no seu “anti-édipo”, que o desejo não vem da perda (como no conceito freudiano), pelo contrário será o desejo uma força produtiva: ”não é um teatro, sim uma fábrica”, enfatizam, ligando a repressão libidinal à repressão social. O desejo produz o desejo, e o universo, para Deleuze e Guattari, é multi-funcional, sempre dependente de uma estrutura social, o que contraria o conceito freudiano de sublimação. Neste, o complexo edipiano começa com um modelo social baseado no triângulo familiar. Foi o escolhido para “Vertigem”.
Notemos ainda que Freud, com Marx e Nietzsche marcam uma ruptura na cultura ocidental – e nessa fractura passámos todos a despenhar-nos -afirmando a primazia do recalcamento. O princípio dionisíaco, simbolizando as forças impulsivas, o excesso, o erotismo, a força e a vontade, também segundo Nietzsche na sequência do apogeu grego, seria diluído no niilismo marcado pela ausência de valores, pela indiferença. Se bem atentarmos, o modelo do homem nietzscheniano está próximo daquele do Renascimento: hábil, acima do Bem e do Mal (sem moral), apenas guiando-se pela vontade de poder, pela sua energia. Superando-se, aceitaria a incerteza da vida, nos seus conflitos. Ei-lo, esse novo homem, projectado no séc. XXI, reciclado assim o aventureiro renascentista…
Que o mundo mudou, mudou, e nós com ele, para não decepcionar Ovídio, e cada vez mais depressa. Jamais poderemos, se bem me parece, recalcitrar no gesto auto-flagelador de uma moral cristã, oferecendo a outra face, enaltecendo os fracos. Infelizmente, estes terão aberto alas à tirania.
Também a Literatura já não é o que foi. Somos poucos, muito poucos, os que a encaramos – por débeis que possamos ser – de uma forma que não desmereça dos aqui tidos por exemplo – mas poderiam ser outros, as Literaturas de Língua Portuguesa são luxuriantes; Eça , Mário de Sá-Carneiro, a metafísica do desespero social de Raul Brandão: ”a vida é sonho e desespero e não tem importância nenhuma”, afirmava.
Lúcio, por sua vez, durante a “confissão”, engendra o diálogo/provocação entre Narciso e Édipo, frisando:” em face de todas as pessoas por quem adivinho ternuras, assalta-me sempre um desejo violento de as morder na boca! Quantas vezes não retraí uma ânsia de beijar os lábios de minha mãe…”, desvenda ainda. Entretanto, oscilando a personagem – Ricardo de Loureiro – entre a assunção da sua genialidade enquanto poeta e o sarcasmo, interroga: ”Ouve esta música? É a expressão da minha vida: uma partitura admirável, estragada por um horrível, por um infame executante…”
Na fusão do espírito e do corpo defendida por Sade, a detecção de um certo “non-sense” misturado à ironia, numa gramática de sugestão. Só a ironia permite escorraçar a realidade, criando o simulacro. Os culpados dos perturbantes “crimes” sensuais de Lúcio, e de muitas outras transgressões nas literaturas, nos textos, são Baudelaire e Mallarmé, pelas suas “poéticas de sugestão”.
No encalço deles, foi dessa ordem também, talvez, a minha tentativa, os meus “crimes”, por interposta personagem. Assombrada, há dias, perante a descoberta inusitada (em “Vertigem”) de um certo paralelismo com o prevaricador Lúcio, confirmei a atracção, algo fatalista, enredando-nos, com um século de permeio, na trama do delírio, em risco mortal:
E, por absurdo, só assim se salvam os textos, nós para sempre perdidos, malditos abençoados, ditosos, todavia.
Texto lido na sessão de lançamento de VERTIGEM, apresentado pelo Prof. Doutor Álvaro Manuel Machado, na Livraria Bulhosa, em Lisboa, no dia 28 de Abril de 2009.
(1) "Vertigem", segundo título da "trilogia do desejo", segue-se, para além de outros, ao Ciclo Americano, constituído por cinco romances historiográficos, entre os séculos XIV e XX : "Ouro" e " Viagem" (formando Brasil.Díptico) ; "Mar Salgado"; "Oklahoma Blue" e "Ornato Cantabile",ciclo sobre a expansão portuguesa em África e na América (mormente no Brasil), estabelecida com rigor a triangulação continental, epopeia de um povo que uma língua comum uniu e projectou.
Filomena Cabral
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