IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS
A fantasmagoria do que se levantara do chão alcançava, afinal, a barca de Caronte, não houvera lume capaz de a consumir.
Filomena Cabral
A arrogância, pelo seu efeito social, deveria ser punida, se bem que algumas figuras públicas sejam poupadas ao desaire, não por elas, mas por nós, enquanto nação, queremos sossego, para além de tudo, tanta a inquietude, a bonomia é uma das nossas características, somos um povo que, por ter vivido situações bizarras, aprecia competências, honestidade, quando inquestionáveis, caso da actual Presidência; todavia, segundo parece, não consegue estima: respeitamo-la, pelo que representa institucionalmente, Portugal não é um país odiento, nunca o foi, antes consensual, a sabedoria de longa e prodigiosa história a neutralizar impulsos menos sensatos.
E lá vamos, não cantando e rindo, esboçando um sorriso amarelo, apesar das capacidades presidenciais. Agora, na confederação europeia, impedidos de cunhar moeda com a efígie dos pais da Pátria, não culpamos ninguém, evidentemente – teríamos de questionar-nos demasiado. Coisas do destino, da nova ordem mundial …Arrepiamo-nos; que havemos de fazer? Por sorte, não competem decisões aos mortais comuns - embora não sejamos irresponsáveis -, sim aos poderosos do mundo, até do mundo fragmentado que fala português, onde emergem novas potências, ali deixámos “know-how”, mais precisamente o mundo lusófono, e não me acusem de neo-colonialista, antes consciente, em certo sentido, de uma experiência de tempo sem presente onde toda a presença se dissolve, onde se situa, afinal, toda a escrita: «Vou a medo na aresta do futuro,/ Embebido em saudades do presente…», oportuno o psicologismo de Pessanha, aqui e agora.
É triste que, enquanto portugueses, estejamos condenados a adiar a alegria, já que a contaminação da vida pela ficção ultrapassa sempre o gesto que tenta separar uma da outra, o qual, cedendo ao calão filosófico, naquilo que diz a palavra “fenomenismo”, traz agarrada a si a inessencialidade do que quer que seja, implicando por seu turno a mais completa indecisão e inapetência. Ainda que haja vontade, o postulado da essência, ou racionalidade objectiva, leva a correspondências que as retóricas banalizaram, sob a forma de metáfora. E lá vamos nós, pelo emaranhado de imagens concretas utilizadas pela Presidência, em qualquer circunstância.
Ter-nos-emos perguntado, ainda há semanas - perante a prestação de antigo Presidente, num programa televisivo da noite de 21 de Junho, celebrando da melhor maneira a entrada do Verão -, porque teríamos deixado Mário Soares para trás, entregando a cadeira presidencial a um académico notável, porém com uma ideia muito própria das suas funções. Perante a sua vivacidade de espírito, o modo superior como analisa qualquer situação geoestratégica ou interna, a imensa cultura e sabedoria, o humor, proporcionando-nos altíssimo gozo intelectual, confirmámos, ainda uma vez, o privilégio de o ouvir, “livre como um passarinho”, parodiando talvez a raposa da fábula, no mote desdenhoso que poderia permitir-se: «…estão verdes…!» Ah… pois estão! E de que maneira… Nós pensámo-lo por ele, divertidos. Vale recordar o pragmatismo de Jorge Sampaio - os nossos Presidentes, dignos e respeitáveis, sem excepção -, com regras muito suas, é um “gentleman”; a ironia não foi para aqui chamada.
Amargurou-nos, em Cavaco Silva, o facto de ter entendido conceder prioridade a digressões - há mar e mar, há ir e voltar -, quando os olhos do mundo postos em nós, obviando a presença diante do féretro de Saramago, ali simbolizadas as Letras - tudo o resto acessório -, recusando participar na homenagem sentida de um povo triste - o mesmo que “lava no rio” e que, provavelmente, jamais leu, em grande parte, sequer um dos seus livros - ao que fora o mais alto representante da Língua e Literatura portuguesas, o nosso Nobel. Ideologias? Outros? Valham-nos as Musas! Intuímos que a circunstância pré-eleitoral terá condicionado o Professor Cavaco Silva, levando-o à ambivalência, ele sabe que passamos de hossanas ao trote desenfreado, pelo trilho da amargura.
Em salutar e utópico exercício de constância, o próximo presidente deveria ser o presidente monarca, Mário Soares, para então passarmos - segundo as vozes - a uma experiência de coroa, no século XXI. Ainda que surpreendidos com o movimento, o Senhor Dom Duarte não necessita de demonstrar coisa alguma, para merecer respeito e estima: possui linhagem, a duquesa, dizem, de espírito prático, percebe de administração patrimonial, e os príncipes, encantadores, são nossos, não as futuras herdeiras do trono de Espanha, ainda que igualmente adoráveis.
Que o senhor Presidente da República será reeleito, atendendo à tepidez de candidaturas bem-intencionadas, tudo o leva a crer; todavia, milhares de portugueses talvez lhe não perdoem certa ausência, assim o mundo lusófono no seu todo -, ainda há dias houve prova disso, nas Ilhas, desta vez em Cabo Verde. Somos muitos, aliás, os que dedicamos a vida à escrita, actividade duríssima, alguns respeitados, amados. E querem acreditar? É uma laboração responsável (quando é). Admiremos quem merece o nosso apreço. Descer do pedestal do orgulho, congratulando-nos pelo talento óbvio do outro, é uma atitude eminentemente ética.
No Brasil, José Saramago foi dos escritores do século XX mais respeitados, e assim continuará, logo a seguir a Jorge de Sena e Vergílio Ferreira, ultrapassando-os no coração dos brasileiros, e nem sequer comparo perfis, não me cabe a tarefa; são nácares diferentes e preciosos da «phala», da portugalidade, que nos singulariza no Mundo.
Mereceremos um Presidente da República que nos não empolgue, quem quer que seja, enquanto mal menor? Incorrerá este velho país em tal desdita? Acabaremos por votar em Cavaco Silva, por uma questão de bom senso - os tempos não estão para birras; tudo se nos tornou penoso.
(Isto parece algo satírico, apesar de sincero, mas como abordar tal assunto, este assunto, sem ir ao encontro da oportuna raiz, Sá de Miranda, Gil Vicente? Se Camões, o coração amarfanhado, foi mais vulnerável às musas, que fizeram dele o que lhes aprouve - para nosso orgulho -, para mim tenho, irão vingar-se de Portugal, ter-se-ão sentido atraiçoadas, no aparente descaso pela inspiração fecunda (e o texto tem de dar-me prazer, que vem depois da coragem, tantas vezes). Até Orfeu se reaproximou da beira do Hades, dedilhando em honra de José - ainda que procurando, eternamente, Euridice -, condoído de Pilar, forte e determinada, quase desafiara Cerbero por ele: a fantasmagoria do que se levantara do chão alcançava, afinal, a barca de Caronte, não houvera lume capaz de a consumir.
Bem triste é, ainda que com honrarias, o fim de um criador, uma voz que emudece.
Escrito o texto há semanas, permaneceu em pousio. Era agressivo; agora, moderado, deixa-me mais tranquila.