FERREIRA GULLAR- PRÉMIO CAMÕES 2010
A Arte existe porque a Vida não basta!”
Gullar
Filomena Cabral
A Ferreira Gullar, indicado para o Prémio Nobel de Literatura por um grupo de professores titulares do Brasil, Portugal e Estados Unidos, que fora homenageado, em Setembro de 2000, no Rio de Janeiro, no Museu de Arte Moderna, acaba de ser atribuído o Prémio Camões 2010.
Natural de S. Luís do Maranhão, poeta dos mais brilhantes do século XX, teatrólogo, sempre em sintonia com os dramas e problemas da vida brasileira, crítico de literatura e artes plásticas, em si concentra múltiplos talentos amalgamados por uma visão do mundo «a que não falta decisão e sentido», na opinião de Nelson Werneck Sodré.
Subscrevendo os princípios filosóficos do materialismo dialéctico (marxismo), faz do conflito social entre proletários e burgueses a grande “representação” inevitável, apontando as contradições da sociedade brasileira.
Reparem: se eu fizesse esta introdução há um ano, alguns começariam a ler o texto datando o projecto de Ferreira Gullar – apesar de ter fases; entretanto, o mundo, fazendo jus a um poeta que transita entre o nacionalismo brasileiro e o universalismo, leva-me, neste momento, a reproduzir máxima deliciosa, que só um brasileiro poderia formular: «Se correr o bicho pega/ se ficar o bicho come». E com este apontamento sarcástico e sábio sobre a realidade do mundo, em qualquer latitude, em qualquer tempo, de uma das mais importantes referências da Literatura brasileira, Gullar, no debate sobre o binómio cultura alienada/cultura popular revolucionária, nos anos 50, atentemos no encontro do laureado com Calos Estevam Martins, Vianna Filho e G. Guarnieri, este com formação em filosofia e sociologia, de que haveria de surgir a ideia da fundação do Centro Popular de Cultura, a definir o perfil da cultura de “compromisso” que já tomara forma nos dez anos anteriores. Desenvolver-se-ia o que viria a chamar-se “revolucionismo” da classe média, uma actividade cultural cujo produto não circulava senão entre as camadas intelectualizadas e militantes. Por assim dizer, o grupo produzia para consumo próprio.
Heloísa Buarque de Holanda, em dada altura, viria a salientar que a reivindicação pelos intelectuais de um lugar ao lado do povo conduziria ao paternalismo, acabando por escamotear as diferenças de classe, homogeneizando uma multiplicidade de contradições e interesses. Era a “sintaxe das massas”, segundo a própria, patentes as diferenças de classe e de linguagem que separavam o intelectual do povo: a linguagem do intelectual travestido trair-se-ia pelos signos do exagero, e pela regressão estilizada a formas de expressão provincianas e arcaicas.
De facto, o Centro Popular de Cultura parece congregar a ideia de ter sido o melhor dos exemplos dos anos 60, no Brasil, de uma ética eivada de contradições ao nível do discurso elaborado, que não consegue, apesar das ideias, superar os limites impostos pela origem não erudita ou académica. «Eram analfabetos e era necessário primeiro ensinar a ler, para depois fazer a pregação política», ponderaria, por sua vez, Ferreira Gullar, trinta anos mais tarde.
É a altura em que o acervo cultural brasileiro é convertido num novo padrão compatível com os novos tempos, o que para alguns significaria mera acentuação de uma trajectória já assumida, mas que, para outros, envolveria estratégias de reconversão muito mais complexas.
Terá sido então que se verifica um processo interior, no que respeita aos consagrados ou em vias de o ser, no sentido de uma reorientação da estratégia intelectual, entre os que actuam no período e no grupo estudado, isto acontece com Carlos H. Cony, que escrevia para “O Correio da Manhã” (não de esquerda), antes de 64 e que passa a assumir, digamos, posição radical – democrática, após o Golpe de Estado. Carlos Cony assinara editoriais agressivos, no princípio de 61-64, manifestando-se a favor da renúncia de Goulart, acusando o seu governo de métodos populistas e demagógicos a aproximar-se da “linha chinesa do comunismo internacional”.
O movimento estudantil de 68 viria a ser no entanto a grande preocupação do governo, apostado em eliminar lideranças destacadas, daí a “Operação mata-estudante”, para terminar com o “caos”, projecto que incluiria o assassinato de Carlos Lacerda e Juscelino Kubitscheck, da Frente Ampla. Énio Silveira faria parte dos “subversivos” que seriam sequestrados e lançados, de um avião, longe da costa. E logo a seguir, a ditadura inaugura a «era do intimismo», formação de organismos de perseguição política aos que se opusessem ao regime. Em 1967, reforçar-se-iam princípios fascizantes de fidelidade ao Estado, acima mesmo das relações de âmbito privado, e os intelectuais tornam-se no alvo privilegiado do governo militar, por representaram a vanguarda dos movimentos políticos de resistência.
No Rio de Janeiro, são efectuadas prisões, de intelectuais ligados à «Civilização Brasileira», o mencionado Énio Silveira, Carlos Cony, Ferreira Gullar, António Callado e Paulo Francis, na intenção de eliminar a política de massa e todos os factores ligados aos direitos sociais e maior participação na política nacional, já que o “populismo” fora um modo determinado e concreto de manipulação das classes populares, mas também um modo de expressão de insatisfações.
Logo, as bases do sindicalismo brasileiro seriam enfraquecidas pelo aparecimento das bases políticas dos sectores nacionalistas, sendo definida a “Lei da Greve”, concedendo-se o Estado o direito de definir o que deveria ser considerado greve política. Desenvolve-se então uma ideologia em que o Estado aparece como capaz de engendrar iniciativas “politicamente neutras”.
Assim, na repressão sobre os intelectuais, a tentativa de inculcar a noção de unidade nacional e de patriotismo, heranças do antigo pensamento nacionalista brasileiro, e que legitimaria a vigilância de processos no âmbito da sociedade civil, para que a nação atingisse o desenvolvimento do qual a segurança era a pré-condição: o militar encarnava a figura do técnico incorruptível por natureza, capaz de pôr os interesses da nação acima de pressões de qualquer ordem. O estímulo de produção científica e tecnológica seria legitimadora de uma nova ordem, sobretudo a partir do segundo presidente militar, Costa e Silva (1967-1969), investiria o Estado na esfera de produção científica e tecnológica, como instrumentos de um “vazio ideológico”. Logo, os cientistas e intelectuais acabariam por ser os mais visados pelo governo, nomeadamente nas universidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A contradição, dizem-no os estudiosos – enquanto portuguesa move-me a intenção de reflectir sobre um certo Brasil –, apesar de tudo, levaria ao desenvolvimento das ciências humanas, ao apoio à pesquisa por parte do Estado, contribuindo para a ambiguidade. De facto, verificara-se grande expansão, a nível da distribuição e do consumo dos bens culturais, crescera a indústria editorial, o que se deveu à política de incentivos do governo militar, também no cinema e no teatro, pela criação de órgãos como a Embratel (1968), o Conselho Federal de Cultura (1966), Instituto Nacional de Cinema (1966), etc.. A produção cultural passa a ser considerada um “problema técnico” entre outros.
Os anos do Modernismo brasileiro (anos 20) tinham visto surgir iniciativas intelectuais, que já representavam divergências ente grupos em luta pela hegemonia política. A ideia de ruptura foi o ponto de intersecção de várias tendências, no campo da Cultura e da Política, e teria duração limitada, terminaria com o debate político dos anos 30. Segundo Luciano Martins (e limito-me a procurar aspectos charneira), o exemplo extremo seria Plínio Salgado, que, na esteira e no contexto do Movimento da Semana de Arte Moderna, publica, em 1926, “O Estrangeiro”, e anos depois torna-se, segundo o mesmo, um aprendiz do fascismo brasileiro. No prefácio ao livro de Sérgio Moceli, “Intelectuais e Classe dirigente do Brasil”, António Cândido (que também haveria de receber o Prémio Camões) chama a atenção para a complexidade da análise da participação política dos intelectuais nos quadros do governo, durante o Estado Novo brasileiro, distinguindo os que serviam os seus propósitos autoritários sem alienar “ da sua dignidade ou autonomia mental”, e “aqueles que se venderam”.
Segundo Miceli, (1979), a abertura de novas frentes de colaboração com o sistema do poder que então se afirmava, as facções institucionais que assumiam a tutela da produção intelectual e o facto de o Estado se ter destacado como principal investidor e inevitável instância de difusão e consagração no campo da produção cultural, são alguns dos processos que fazem do estudo desse período um passo importante para esclarecer os dilemas não só brasileiros, nós, portugueses, também herdeiros de uma tradição, de um legado.
Pelos anos 60, a Fundação Ford financiaria instituições de pesquisa na área das ciências sociais (mas os EUA, se bem recordarmos, sempre estiveram atentos ao Brasil, ainda no séc. XVIII: não dissera um dos seus “pais fundadores”, Thomas Jefferson, a estudantes brasileiros, quando embaixador da futura potência americana em Paris, que “veria com bons olhos a Independência do Brasil”? No ano seguinte aconteceria a “Inconfidência Mineira, as “derramas” quase um pretexto).
As teses marxistas, incorporadas no debate da sociedade brasileira do séc. XX, têm como marco as obras de Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Júnior. O reflexo deste movimento teórico viria a reflectir-se no desenvolvimento das mencionadas ciências sociais no Brasil, entre 1945 e 1964, constituindo matéria a considerar, por fornecerem uma perspectiva interpretativa baseada nas desigualdades sociais e económicas da sociedade brasileira, patentes até hoje, apesar do desenvolvimento da potência Brasil, entre os G8, que possivelmente, já diminuíram em número. A actualidade, alucinante, torna a realidade uma ficção, na medida em que, sujeita a múltiplas leituras, acaba por transitar pelo plano do delírio, “a” realidade é quase a que mais nos convenha, mais nos iluda, num teatro de marionetas que estimularia Jackobson: ninguém parece estar na obscuridade de um palco, mas que alguém move as marionetas, move, não sei se com os fios correspondentes, em atitudes convincentes: a época é de frenesim.
Assim, entre as concepções de 1930 e as de 1960 parecia haver um contraste total. No primeiro caso, o povo é descrito como desiludido de qualquer identidade política. Quanto aos intelectuais, situam-se em relação a grupos de referência distintos: em 1931, identificam-se com as elites; em 1960, apresentam-se como povo e “querem ser povo”.
Na «revolução brasileira em etapas», e pela necessidade de uma aliança com a burguesia nacional, parece ter havido, assim em todos os processos revolucionários, uma “geração perdida”, que como alguém salientava (Florestan) era um saco de gatos: os que ousaram, antes e depois da instauração do terror, os que foram sujeitos a fronteiras psicológicas, os alvos culturais e o campo político desse “todo”, perdendo ou mantendo as posições conquistadas anteriormente. Trata-se pois de uma parcela da geração, em termos críticos designada como a intelligentsia propriamente dita.
Surgiria, em consequência da dita intervenção governamental, uma elite de técnicos, a partir dos anos 50, verificando-se uma cisão em dois grupos: os “monetaristas”, vinculados à Fundação Getúlio Vargas e os “estruturalistas”. Os primeiros, pela competência técnica, são aproveitados para o Ministério da Fazenda e para o Banco Central, ao passo que os segundos - estruturalistas - são privados de direitos políticos.
Ferreira Gullar é uma “memória viva” do séc. XX brasileiro. “Que a música que eu ouço ao longe, / seja linda, ainda que triste…” Em “Nova Canção do Exílio”, o lirismo, o amor pátrio: ”Minha amada tem palmeiras / Onde cantam passarinhos / e as aves que ali gorjeiam / em seus seios fazem ninhos/(…)//. Ou ainda: «Do fundo do meu quarto do fundo / do meu corpo / clandestino /(…) ouço /crescer no osso o músculo da noite / a noite ocidental obscenamente acesa /sobre um país dividido em classes.//
Admirado por Augusto e Haroldo de Campos, Inácio Pignatari, Oswald de Andrade, Ferreira Gullar trabalharia, no ano de 1954, como revisor na “Manchete”. Por convite dos escritores paulistas, participa na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956. Entretanto, não concorda com determinado artigo publicado pelo grupo concretista e publica “Poesia concreta: experiência fenomenológica”. Logo após, Gullar marca a sua ruptura com o movimento.
Em 1961, com a posse de Jânio Quadros, é nomeado director da Fundação Cultural de Brasília e elabora o projecto do Museu de Arte Popular. Entretanto, abandona o experimentalismo e deixa de actuar em movimentos de vanguarda. Em 1964, a sede da União Nacional de Estudantes é invadida e a primeira edição do ensaio “Cultura em questão” é queimada. Em Abril de 1964, filia-se no Partido Comunista Brasileiro. Em 1966, a peça «Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, titulo já aqui mencionado, escrita de parceria com Eduardo Vianna Filho, é encenada no Rio de Janeiro e merece o prémio Molière.
O ano de 1970 marca a sua entrada na clandestinidade. Passa a dedicar-se à pintura. Em 1971 parte para o exílio (Rússia, Chile, Peru e Argentina). Só em 1977 desembarcará no Rio de Janeiro. No dia seguinte é preso. Retomará mais tarde as actividades de crítico, poeta e jornalista. Lança “Antologia Poética, “Toda Poesia”, em 1980. Dali a três anos, a Rede Globo exibe “Insensato Coração”. Tudo, de facto se modificara no percurso de Ferreira Gullar, quando ainda em 1975, durante a leitura de “Poema Sujo”, em Buenos Aires, é escutado por Vinicius de Moraes, que levará consigo uma cópia em fita para o Rio, ali promoverá sessões de leitura para intelectuais e jornalistas. Énio Silveira, editor (Civilização), pede uma cópia para publicação em livro.
O tempo ser-lhe-ia pródigo, receberia ainda o “Prémio Camões”, tanto tempo volvido sobre os anos reivindicativos, tornando-se assim, pela extensa e valiosa obra, pelo longo compromisso com as palavras e as ideias, uma das figuras que honram, oficialmente, ao mais alto nível, a Língua Portuguesa, neste ano de 2010.
Tive a honra de ser apresentada a Ferreira Gullar quando, em 1993, recebi no Memorial da América Latina, em S. Paulo, o Prémio Especial da Literatura Portuguesa, pela Associação Paulista de Críticos de Artes – APCA. Retive a figura invulgar, a atitude descontraída, a extrema simplicidade. Voltei a encontrá-lo em 2000, no Rio, durante a referida homenagem. Do mesmo modo, tive o privilégio de conhecer pessoalmente outros aqui mencionados, a quem as Literaturas e as Ideias tanto devem. Bem-haja o Brasil, “as aves que ali gorjeiam…”