BULLYING E KICKING
Filomena Cabral
Os termos em título entraram na linguagem do dia-a-dia, o segundo remete para a defesa pessoal, para as artes marciais, o primeiro poderá sugerir o toureio; certa notícia, ligada ao ministério da Cultura, levou a que porventura se recordasse «A última corrida de touros de Salvaterra», crónica de Rebelo da Silva, jornalista, historiador e político relevante, na segunda metade do séc. XIX. Aliás, é refluente a atracção e repulsa pelo “espectáculo impróprio de nações civilizadas, que serve para habituar os homens ao crime e à ferocidade”, segundo um decreto de 1836, do ministro do Reino Passos Manuel. Nos anos 90 do século passado, o toureio teve, de igual modo, espaço noticioso, questionava-se, na altura, recordemos, a adesão ao euro, sempre misturamos o “fait divers” ao essencial.
Decorridos séculos sobre o drama de Salvaterra, mergulhados o país e o mundo em problemas comuns, refiro-me à instabilidade económica, política, geofísica – tanto infortúnio –, uma espécie de atavismo especulativo leva-me a evocar o relato da morte do touro, pelo marquês de Marialva, em Salvaterra, vingando a morte do filho, conde dos Arcos, na arena; perante o manifesto desagrado de D. José – ali proclamou a proibição de corridas de morte em Portugal –, o Marquês de Pombal, voltando costas à praça, murmurara que iríamos ter guerra com a Espanha. Tudo isto alcança, inopinadamente, a actualidade, por se nos ter deparado o insólito despacho no DR, entretanto contextualizado, mas não deixa de surpreender a prioridade da criação de “Secção Tauromáquica”, desconhecida da maior parte, no Conselho Nacional de Cultura. O anómalo despacho apela ao risível, na melhor tradição de uma cantiga de escárnio que vale a pena aproveitar, afinal andamos cabisbaixos.
A nossa vocação memorialista – e nos tempos de crise a tendência é pensarmos no que ficou para trás, tentando compreender o presente – dá, apesar de tudo, continuidade ao episódio relatado por Rebelo da Silva, agora adaptado ao Campo Pequeno. Animemo-nos, a literatura portuguesa está na mira, ainda que pela transversal, pelo notório bullying sobre a Cultura alerta, em áreas múltiplas, das Artes às Letras, ao Património monumental. Surpreendida, recordo certo programa televisivo, sobre Insularidade, transmitido dos Açores, em que ilustre pianista, entretanto ministra, dissertava, com brilhantismo, sobre a obra de Vitorino Nemésio, em foco “Mau tempo no Canal”. Quando da sua nomeação para o cargo, entendi que Nemésio fora predição, esquecemos quantos ministros da Cultura tivemos, nos últimos 35 anos, recordaremos quatro ou cinco, os ministros são nomeados e substituídos, por vezes inesperadamente, Isabel Pires de Lima, Manuel Maria Carrilho – de áreas e perfis distintos –, os criadores continuam as suas tarefas, pouco permeáveis a deslumbramentos secundários, como o actual destaque do toureio, na intenção de distinguir a Cultura portuguesa.
Jamais, ainda que ficcionista, me ocorrera acrescentar, no século XXI, o episódio de Salvaterra: quem irá desempenhar o papel do conde dos Arcos? Entrara no redondel vestindo segundo o modelo de Luís XV. «Porque traja o conde de negro?» – perguntara o soberano ao seu ministro. Embora compreendamos quem prefira o toureio à cansativa lide das letras, entendo que o destaque da tauromaquia pode ser considerado bullying sobre a Cultura.
A jactância, o desafio das forças da natureza ou do adversário permanecem, na memória do colectivo, quais exemplos dos bons resultados de efectivo bullying, susceptível todavia de redundar em desaire sem recurso, os exemplos são múltiplos. A recidiva de encarar a responsabilidade político cultural ou outras reciclando códigos, incitando, provocando, vem assim dos primórdios, tornámo-nos, afinal, um povo de arruaceiros, discute-se tudo e nada, do futebol à política, do sexo à meteorologia, e agora, de novo, a tauromaquia, toleima de novo-rico empobrecido a ansiar projectar-se no brilho pretérito, nos toiros, no passatempo; ou ressurge o desejo de sermos agradáveis à vizinhança, “para que não haja guerra”? Saturados de mazelas sociais, recusem-se situações extremas, ainda que em imaginação – no terreno da qual tudo é permitido –, evitando o circo romano, desgraçados, sem mantimento, confinados ao Campo Pequeno, o poder com o polegar voltado para baixo.
Num outro plano, manifestações clamorosas dos últimos anos, numa espécie de bullying pelas ruas das cidades, sem resultados práticos, questionando directivas da Educação, talvez motivem agora políticas educacionais aceitáveis. A ânsia de “quebrar” o outro, o autoritarismo assaltam-nos de surtida, qual pesadelo recorrente, massacrámos a pileca, as botas rotas, em ido tempo, bullying sobre os mouros: praticantes aplicados, não os deixávamos em sossego e vice-versa. A Santa Inquisição, os seus oficiantes “buliriam”, pelo seu lado, com os cristãos, durante séculos. Bullying, bullying e bullying. Até o divino marquês, no seu despotismo iluminado, o praticou à distância, com o assentimento do irmão, no Brasil; por seu intermédio, a vara da soberania aguilhoava, lá pelas margens do Rio da Prata, nem o Padre António Vieira se lhe eximiu. Perante a crise cultural, louvemos o ministro do Reino, Sebastião José, por ter decretado obrigatória a Língua pátria, na antiga jóia da coroa; hoje, exuberante, é a identidade no mundo de 200 milhões de falantes.
Ao longo do tempo, o bullying tem-se travestido de preconceito social ou económico, o indivíduo movimentando-se na esfera respectiva, vingavam prerrogativas inalienáveis, a hierarquia social e cultural, observava-se a ordem – terá de voltar a observar-se –, poucos sairiam da norma e sempre à socapa: quem buliria? Porém, hoje, a maior parte invade o redondel, todos pretendem ser conhecidos, contactáveis – a sinfonia dos telemóveis, a farsa dos concursos televisivos, famílias inteiras iludidas em busca da “fama”, no “faz-de-conta” alienante, acumulando humilhação, acrescentando as audiências, beneficiando os grandes grupos, enquanto esbracejam no ridículo –, gente do twiter, do face book, descurando a privacidade, meio caminho andado para o desrespeito, para o bullying consentido e estimulado. Depois, espantam-se.
Em democracia, observam-se os mesmos direitos e deveres, enquanto cidadãos, tal não significa que estabeleçamos – porque nos deu na veneta – diálogo com o Poder, sem a distância ditada mais pela inteligência que pelo protocolo ou pela imposição: se o tratarmos com suposta familiaridade, tendemos a não o levar a sério (agora recordei, imaginem, as forças inbedded no Iraque, um efectivo bullying, onde acabam de ocorrer eleições com a participação de dezanove milhões de votantes, após contributo de incontáveis baixas), nem o mesmo poder conseguirá manter a distância necessária ao exercício da prerrogativa, esta não se resume a atitudes arrogantes, perante o touro da opinião pública – ideia que parece ter vingado, entre nós – mas em tomar decisões pertinentes, evitando afrontar o bicho. O bullying não é de efeito imediato ou conjecturável, até em política.
O pasmo, por hipotética verba destinada à garraiada (que utilizei como subterfúgio) constituirá desperdício, quando e sobretudo porque, entretanto, os agentes culturais têm vindo a ser bulidos, guilhotinados, a eito. O “corpus”, os textos contêm as marcas da inscrição de um corpo perceptível na linguagem e na estrutura, daí que os escritores com obra consistente sejam inconfundíveis. Desprezando o “entretenimento”, por implicar uma forma de vileza, muitos ansiamos levar o leitor a pensar-se, enquanto indivíduo, mas acredito que a sociedade portuguesa, na generalidade, deixou de ter capacidade para meditar; não encontrando nos livros o drama piroso, a telenovela, não lhes pega. Salve-se a literatura, se ainda for tempo – sei que avanço pelo terreno da utopia –, o público leitor anda sugestionado, de há uns anos a esta data, por certos autores bem alimentados pela imprensa, caixeiros-viajantes, transportando amostras do que foram obrando.
Andamos inquietos, desorientados – literatura à parte –, chegam-nos demasiadas notícias de cataclismos, discute-se o mesmo a todas as horas. Se até na felicidade o descontínuo é indispensável, quanto mais no infortúnio. O que experimentará, consideremos, uma criança, vendo, escutando sobre o escutado, em casa, na rua, nas escolas? O país inquietou-se com o suicídio, o drama de um rapazinho vítima de bullying. As crianças assumem, na situação de provocadas e coagidas, a sua fragilidade. Vulneráveis, infelizmente forçadas a assistir à violência, a sofrer maus tratos, perante descrição de casos tenebrosos no circo mediático, vão engendrando, em pânico, processos de defesa, qual organismo criando anticorpos. Logo, ao mais pequeno indício de “perigo”, de agressão, de sobranceria, de humilhação gratuita, de suposta superioridade do outro, à menor possibilidade de intuir o mais débil que terá de submeter-se-lhe, as forças em campo mobilizam-se, o ressentimento a propagar-se, quais círculos, após pedrada num charco qualquer. Quanto aos agressores, se os respectivos pais lhes dessem o exemplo da contenção verbal, da conduta, da tolerância, se os não vissem agredindo a própria família, por motivos insignificantes tantas vezes, só para demonstrar que se não temem entre si, que o outro, qualquer outro, lhes não é superior em coisa alguma e não lhes mete medo – a bravata, sempre – talvez respeitassem os mais fracos, suportassem “diferenças”: provocar, para que consigo não bulam, contribui sem dúvida para o bullying. Aliás, quando alguém com destaque proclama que não tem medo, desconfio logo da personagem: se não teme (?), cale-se, melhor para si.
O que amedrontaria o rapazinho mais que a morte, contemplada em infinitas representações, senão a própria morte… No entanto, foi ao seu encontro, sobrepondo imagens, inserindo-se na tragédia – o pequenito não o pensou, mas, ainda que adultos, não temos consciência de tudo, o mundo susceptível de aterrar, tal como o atemorizaria a violência dos colegas sobre si. É o que emerge, num relance de superfície; e se a dramatização começara antes, longe da escola, se os contornos do drama forem outros? Oxalá o princípio da imitação, pela necessidade de reparo a confundir-se com afecto, não grasse por aí em episódios similares, o sentido do espectáculo tudo invadiu, a imaturidade impossibilita a destrinça.
Notório, ainda, ao arrepio da vontade, o bullying da burocracia, o emperrar da máquina neste aspecto e noutros. Enquanto portugueses, no íntimo escarnecemos de nós próprios, pois já fomos, somos ou viremos a ser vítimas de bullying, nas mais variadas circunstâncias, ainda que psicologicamente, a maneira mais nociva de “bulir” com a gente. A agressão física deixa sinais visíveis; já o bullying psicológico, traumatizante para a vida toda e tantas vezes durante toda a vida, é escamoteado pela vítima, cúmplice à força do agressor. O queixume não merece a pena: aquele que se desvenda envergonha-se duas vezes, também o confidente deixa de considerá-lo, e todos os que, por seu intermédio, passarem a conhecer a sua desdita: é o bullying por tambor de ressonância…Vejam ao que levou o resíduo de uma crónica oitocentista, as palavras são o sal da vida, sem palavras estiolaria a vontade, tão necessária quanto o medo, o bom senso tem nele a sua motivação.
Ensine-se aos jovens a defesa psicológica, a capacidade de resistir, mais útil que o kicking – uma vertente do bullying – e outras “artes”, a provocação leva à agressão; o exercício das emoções, a contenção ser-lhes-iam de grande utilidade na vida. A Literatura, pela leitura de grandes Obras – mas não as lêem, petiscam sínteses –, é um manancial de sabedoria disponível, há muito temido e em tempos queimado: o que incomoda suprime-se, em todas as épocas. As Literaturas são uma catedral, com os seus altares, os seus nichos – que nos formaram, estimulando a perseverança nos valores, na justiça, na fraternidade, um bullying ético.
Águas paradas apodrecem, o combate evita que morramos de paralisia vivencial: teremos sempre de “bulir”, deixar alguma coisa para atingir outra, de afastar-nos do que nos prejudica, ainda que aproximando-nos de mal maior. Quem terá convencido quem, que o convívio é feito de pancadinhas nas costas? O mundo das telenovelas – transmitidas, segundo parece, durante todo o dia – conduz à inveja social, à concupiscência, ao mimetismo com o reles. A hipocrisia, o falso apreço, implica o veneno da mentira, deve preocupar-nos mais que o bullying, em certas fases da história elevado à categoria de extermínio. Ainda há semanas, no Quénia, três aldeias foram dizimadas, meio milhar de habitantes chacinados, por questões religiosas. Jamais terminará a destruição do homem pelo homem, está-nos na natureza.
E não será verdade que, há uma década, imaginávamos o mundo a evoluir para a era do lazer? De súbito, o dia 11 de Setembro de 2001; porém, os tempos foram o que foram, os jovens da década anterior, os anos 90, pais das crianças de agora, não aprenderam, na idade própria, a gerir conflitos, emoções, mentalizados para um mundo artificial, que dificilmente existiria. Desorientados, contaminam a descendência com a própria insegurança, o seu pavor do mundo; como censurá-los, se os sabemos infelizes, desesperados? Tentam assegurar aos filhos o que sonharam, sentem a humilhação, infligida às crianças pelas crianças, como uma agressão pessoal, muito para além do cuidado inerente à família, contribuindo para incrementar a dramatização, estimulando a vitimização na gente pequena ao seu cuidado. Aflitos, querem partilhar a responsabilidade; ao ministério da Educação caberá tomar medidas – pesado fardo –, para sanar o desentendimento, segundo parece, a falta de respeito mútuo, não só entre as crianças. Mas tudo começa em casa, com o exemplo. Vivemos tempos incertos, a desorientação acrescenta a angústia existencial. A verde juventude, traumatizada, está em perigo.