Entre Livros       

Índice:

52 -THE GRAPES OF WISDOM

51 -Do Acaso e da Necessidade

50 - deuses e demónios

49 - CAIM – o exegeta de Deus

48 - Os lugares do lume

47 - VERTIGEM OU A INTELIGÊNCIA DO DESEJO

46 - LEITE DERRAMADO

45 - Casa de Serralves - O elogio da ousadia

44 - FASCÍNIOS

43 - DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES

42 - TOGETHERNESS - Todos os caminhos levaram a Washington, DC

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - “I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil”

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN – Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL – OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES – Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz-te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA – O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implica uma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezes da actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todos os acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivas em que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma prática jornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectiva cultural especifica ou informativa, numa área não suficientemente rígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        2010-01-02

THE GRAPES OF WISDOM


Filomena Cabral    

“A via da persuasão não comporta senão esta advertência:

não te adaptes ao que te é dado como suficiente”

Michelstaedter




Há um ano, esperava-se a tomada de posse do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Tínhamos assistido, durante meses, à progressão nas sondagens. Atentos a noticiários, íamos verificando, estado a estado, a sua possibilidade de ganhar as eleições. A exaltação da América profunda e dos jovens contribuía para o entusiasmo crescente de outros países, dentro ou fora da Europa, sul-americanos, asiáticos, africanos. É ainda consolador evocar o regozijo pelos resultados eleitorais, em certa noite de Novembro: derrubavam-se barreiras, vagas e vagas de gente afluíam a determinado estádio, a tónica da mudança entrosava em valores velhos de séculos, os dos “pais da nação”. Um Homem, o 44º Presidente dos Estados Unidos, sua Mulher e filhas recolheriam aplausos: o entusiasmo, a vibração ultrapassariam tudo o que se tivesse antecipado; o espanto, todavia, ali estava o novo Presidente, ainda que ao arrepio de muitas vontades. Lágrimas nos rostos: são raros os momentos em que se pode chorar de alegria. Uma nova América? A humanidade vai mudando e nós com ela. Certa tempestade da História – que jamais pára de soprar, ainda que nos distraiamos – abalava, dessa feita, o mundo financeiro em pânico, e motivaria, no futuro imediato, profunda mutação económica e social, não só americana ou europeia. E continua assustadora.

A tomada de posse, dela se falou com entusiasmo nesta página (*), será para sempre recordada: nem o frio, o gelo arredaram milhões das ruas, das praças adjacentes ao local da cerimónia, em Whashington: no Lincoln Memorial e sob a sua égide, Barack Obama, rodeado de homens e mulheres responsáveis, poderosos, do passado ou no futuro, e de alguns famosos, pronunciaria o juramento, ao alcance do olhar e do ouvido dos habitantes da aldeia global em que o mundo se converteu, aceitaria a presidência e a responsabilidade descomunal.

Desde Roosevelt, uma tão clara adesão aos Estados Unidos se não verificara, curiosamente em tempos de crise com um intervalo de 60 anos. E ainda que lamentado, em devido tempo, o desaparecimento de Kennedy, ou os dramáticos acontecimentos neste século americano, apreensiva a referida aldeia global quanto a decisões bélicas do presidente cessante – um fardo para o recém-eleito – nunca, desde a velha cumplicidade, de há trezentos anos, entre revolucionários americanos e franceses, cujo halo romântico ainda nos atinge por bem, se verificara acontecimento tão motivador; era ainda a mesma vaga de fundo ideológica, tenaz, assente nos pilares da liberdade, da igualdade e da fraternidade, que modificara para sempre o pensamento – apesar de aplicações questionáveis ao longo dos períodos históricos e das vontades, conforme as nações, os que as governassem.

Se a abrangência do olhar se alargara durante a fase da expansão – das europas fora da Europa –, verificada a independência dos Estados Unidos, a primeira rebelião dos tempos modernos no ano anterior ao da revolução francesa, diferentes lugares, novos mitos penetrariam no nosso imaginário, pela Literatura sobretudo e, com o século XX, pelo Cinema, artes por excelência das fantasmagorias em movimento: a linguagem anima memórias quase a despenharem-se no abismo do esquecimento (a memória dos homens é curta e cúmplice daquele): interligando-se, o Pensamento, a Criatividade, a tecnologia condenavam o homem à Memória.

Num dia memorável, o mundo depositou em Barack Obama o anseio de uma humanidade mais justa, mais idealista. «I swear…» Naquele instante, foi um presidente universalista americano, surgira na Política enquanto incentivo poderoso, afastara da apatia os seus compatriotas a caminhar para o conformismo azedo. O discurso de posse – na sequência dos anteriores que já nos tinham deslumbrado (a palavra é a sua arma persuasora) – em simultâneo tolerante e entusiasta, já programático, mais uma vez demonstrava a excepcionalidade, o carácter forte do novo Presidente dos americanos: desde os anos 40, no rescaldo da Segunda Guerra – e quanto lhes devem a Europa, o mundo ocidental – jamais nos tinham parecido, por elegê-lo, tão arrojados, nem sequer quando alcançaram a Lua, o planeta dos anseios retraídos, era então a época do grande debate europeu e ocidental da Guerra Fria, debate decisivo para a sobrevivência tanto da Europa como da democracia. A separação entre políticas internas e externas não existia, a fronteira estratégica atravessava os Estados Unidos e a decisão poderia depender de lutas entre partidos – não quer isto dizer que agora o não seja –, ia-se aprendendo que a pior maneira de tentar moderar o futuro seria proteger os imperialismos do passado (o que também nos atingiria, enquanto portugueses). Tentava evitar-se o regresso da guerra total e o suicídio europeu na sequência da revolução atómica, a obsessão daquele e deste tempo… A dialéctica entre a guerra e as revoluções, a cadeia aterradora das guerras totais eram, então, tema de uma concepção trágica da história do século XX.

Então, como outrora e agora, “ver a realidade é a primeira e mais excelente característica do espírito político”, no dizer de Guizot, um oitocentista, notem.

E vamos concluindo, no entanto, que o bem e o mal no mundo não mudam segundo os nossos anseios ou a conveniência de Obama, condenado a lutar contra o “mal” continuamente a mudar de face; empenha-se no combate, ciente, apesar de tudo, que o pior é possível mas “nem sempre é certo”, que o conflito político nunca se baseia em causas “puras” e que as batalhas políticas são “equívocas”, introduzidos sempre elementos imorais. Escolher entre o “preferível” e o “detestável”, apesar da contingência, nunca é arbitrário, a isto chama-se “pensar e agir politicamente”, Barack Obama representa um dos expoentes irrefutáveis deste axioma, desfazendo aos poucos ele também, com determinação, a ideia feita do seu país até ao princípio dos anos 80: falar-se do declínio americano constituía um lugar-comum, apesar do conceito de “declínio” ser relativo, por “não corresponder à decadência”, definida a decadência, por Maquiavel, como a “perda de vitalidade histórica”, isto é, a incapacidade de uma nação de sair da apatia, sendo que esta, ao contrário do declínio, parece envolver fortes juízos de valor. Na actualidade, assiste-se à superação, apesar do tempo que corre, impiedoso, arrastando no seu caudal sonhos e projectos. Internamente (e no exterior) Barack Obama vai atingindo os seus objectivos, sem fazer milagres, não é, aliás, figura de todos os altares, o que resultaria inibidor e intolerável até para o próprio, o obstáculo contribuirá, decididamente, para a constatação das suas competências.

Se o maior erro político é não tomar decisões, acredito que a complexidade é preferível à simplificação vazia, ao risco da inépcia: é no plano da dificuldade que a estatura de Barack Obama se manifesta. Actua, envolve-se no desafio da mudança, não por ansiar um mundo novo – não é incauto –, sim um mundo diferente, mais justo, uma dinâmica para melhor, acredito que menosprezando quase, pois limita-se ao humano, aríetes bem posicionados: a sua insígnia, a persuasão, pela ingerência da linguagem na condição humana (compensadora vitória, nele se projectam gratos os escribas do mundo), constitui-se pormenor nada despiciendo, na consciência da constituição e solidez do sujeito, daquele que age, este o que aqui e agora nos interessa, Obama, enquanto peça de um todo orgânico estruturado pela retórica, esteio da referida persuasão, adestramento a contribuir para que se considerem certas qualidades, enquanto valores absolutos: daí que a palavra pareça jorrar da sua boca. Não sem razão, a vontade individual começa pela necessidade de abandonar a concepção da retórica, esta ao dissolver em si a persuasão, a mítica Peitho, anula-a, recorrendo então ao sublime, como experiência da palavra (exterior ao cálculo), que liga o sensível e o inteligível, sem esquecer o ethos, o plano moral, a ética.

Em Platão, a persuasão era a resultante da retórica, a capacidade de produzir efeitos através da argumentação e do desencadeamento de paixões, o pensamento de Michelstaedter aspira escapar à violência agonística do Logos, que se identifica com o rompante da retórica; vêm-nos de imediato à ideia exemplos tenebrosos, que não mencionarei, seria macular o texto e, sobretudo a esperança: Obama é-lhes imune, resiste por si, neutralizando, quanto possível a confusão neste domínio, apesar dos restos de ideologias a movimentar-se pelos interstícios. Aproveitando a inércia de pensar o hoje, tenta-se sempre obnubilar a memória, retalhar e, se possível, desfigurar, segundo a conveniência; a detestada destruição do homem pelo homem continua a ser um dilema.

A retórica impossibilita tudo o que é da ordem do instante, aspecto este em que o Presidente Americano surpreende: convicto, o seu discurso é sempre, ou quase sempre, o diferimento no futuro. Pela via da retórica, constitui-se assim uma cadeia de reflexos especulares a produzir em simultâneo a consciência do eu e a do nós: nunca é, a via da persuasão, previamente traçada, antes resulta da capacidade e do empenhamento de cada um em continuar, em abrir um caminho novo, pelo acesso ao extrínseco da linguagem, através de uma intuição pura, extraordinária – em Obama –, sempre no plano da contingência e do intelecto.


A vontade não liga o sujeito ao presente mas já ao futuro, ao que ainda não é mas se anseia que seja, consciente o Prémio Nobel da Paz de 2009, sem lugar para a dúvida, que qualquer acto é integrado numa cadeia de meios e fins. Impossível esquecer o seu discurso em Oslo, na circunstância, só se houvesse um cataclismo universal e as memórias artificiais, a par das naturais, fossem obliteradas. A inaudita coragem, o brilhantismo, explicando, em responsabilidade abrangente, a contingência da guerra para alcançar a Paz. Inesquecível. O que nos tem ensinado no plano do discurso – e do excurso – é em si mesmo um valor. Uma vez mais, o mundo assistiu, atordoado, rendido, ainda que a contragosto de muitos – dando-se assim continuidade ao efeito Obama em Berlim (parece já longínquo) ou em Chicago, Washington, ainda no Cairo, em tantos outros lugares e circunstâncias: no dia em que todos estivéssemos de acordo, apesar do carisma de excepção, pôr-se-ia em causa a Democracia.

No entanto, como “o possível é o que é dado” através dos conflitos e superações que estruturam a retórica, cabe ao desejo do impossível o abalar das mesmas estruturas, não pela anti-retórica, mas pela mesma persuasão como instante de decisão – de facto a faceta dominante de alguém já indelével da década, do século –, numa espécie de “poesia pensante”, em que a linguagem, enquanto retórica, se revela irredutível a si mesma: a interrupção do cálculo retórico não participa da angústia – sentimento associado ao diferir da vida no futuro – antes participa do prazer e da ansiedade associados ao espanto, à surpresa momentânea, e só a coragem os viabiliza – talvez Obama intua que ultrapassa Obama.

Atentemos num enunciado de Wittgenstein : ”acerca daquilo de que se não pode falar, tem de se ficar em silêncio”, por existir no silêncio um certo fascínio, desde que não traduza incapacidade ou cobardia. O silêncio é cómodo – serei eu incómoda? – na maior parte das vezes, pusilânime, o mundo detesta, instintivamente, quem ousa enfrentar a Hidra, símbolo dos vícios banais, protegendo o tentáculo desta preso à fatuidade, garante-se assim a sobrevivência das outras partes corruptoras, são estas que, na generalidade, lhe são caras.

A forma de estar do Presidente dos Estados Unidos da América, uma quase permanente “vinha da ira” a que ele contrapõe a da sabedoria, altera comportamentos, é um facto adquirido, tivemos disso mostra durante a reunião dos G20 e noutras ocasiões. Verificámos (abandonados na infância os contarelos) que um Homem, afinal, pode levar outros Homens a abandonar o cinismo – ainda que durante alguns dias, em reuniões quase planetárias –, a letargia, uma espécie de receio camuflado. Barack Obama possui África na sua matriz, o continente de grandes famílias solidárias, por tradição, pormenor que lhe confere disponibilidade muito particular para o empenhamento obstinado, de que a pertinaz luta de que saiu vencedor, fazendo aprovar pelo Senado a reforma de saúde dos americanos, é exemplo; ainda pela contínua aprendizagem da vida, pela sageza – a par do Conhecimento –, pela franqueza inibidora do cinismo empedernido de tantos. Por detrás do olhar directo, do sorriso desarmante, a formidável rectidão.

Dentro de dias, perfaz um ano a sua Presidência. O mundo melhorou? Não sou analista político, parece ter pelo menos acordado de um pesadelo económico-financeiro, ainda estremunhado, no entanto. O regresso do mesmo ou de outros de diversa índole é provável, os avatares da fatalidade – incansáveis – são plurifacetados. Não é o salvador de coisa alguma e está sujeito a vontades opostas à sua, o próprio detestaria que o vissem enquanto tal, estou certa, mas agitou, sem dúvida, consciências e poses, tornou-se alguém que, instintivamente, para o melhor e para o pior, a nossa atenção procura: pesado fardo para quem está, em consciência, para além do poder da América, embora sem dúvida coincidam. Reconhecida a sua singularidade, basta que sejamos homens e mulheres equitativos, cúmplices na verdade, esta, ou a realidade por vezes sobrepõem-se, tanto quanto a verdade pode ser verdadeira, e jamais será a mesma para todos.

O mundo, temeroso de catástrofes no ambiente e outras, incluído o horror comum desde Hiroshima –, vai notando o modo conciliador e tenaz, inabalável, adoptado pelo Presidente dos Estados Unidos, na intenção de neutralizar o receio induzido pela ameaça do átomo. Entre figuras de estado de nariz de cera e ânimo fugidio, exprimindo-se quais ventríloquos – em qualquer latitude –, o mundo tem nele um exemplo superlativo de pertinácia e coerência, tentando levar o seu país, o grande compromisso, por caminhos justos.

Jamais se adaptará, acreditamos, ao que lhe for dado como suficiente, deu de tal mostra quando resolveu, em devido tempo, palmilhar Chicago, atento à defesa dos direitos dos caídos no barranco do sistema, e quando, mais tarde, decidiu, contra ventos e sereias, concorrer ao Senado. Depois, agora, a lenda, ainda que o não queira. Em 2010, novos desafios, porventura. Mas o mundo tem em si esteio admirável, alguém em quem se confia – apetece dizer “Obama é fixe!” –, aqui residindo a crueldade da questão: apesar de humano, não pode permitir-se falhar, sequer desiludir; o entusiasmo universal por si gerado tem um custo, dificilmente lho perdoariam. Surgiu enquanto alguém excepcional, um semeador de sonhos e nós, no nosso egoísmo, precisamos de uma referência indubitavelmente regida por valores, sem os quais, o mundo feneceria, um governante a quem admirar, ainda que não seja nosso – embora os vamos tendo, alguns foram grandes e ainda vivem, insubstituíveis – se bem que, enquanto portugueses, o anelo tenha lógica bastante: a solidariedade atlântica é ainda e cada vez mais, após sessenta anos de cumplicidade, um património inestimável.

Desejemos ao presidente americano um Novo Ano, segundo os seus desejos, as suas metas, correspondentes aos da maior parte, quero acreditá-lo: «Yes, we can!», continua pertinente. E assim resistiremos à virtualidade da inépcia, num caleidoscópio sugestivo, fruto da inquietação em que vive a comunidade internacional, filiada no paradigma sem precedente histórico, que é o de todos falarem dos seus projectos de poder e, em simultâneo, desafiarem outros poderes. Existe como que um sistema euromundista que, ainda que pareça estranho, se não terá recomposto de uma certa desorientação, com a longínqua independência dos EUA e as guerras mundiais que foram, de facto e exclusivamente, europeias e ocidentais. Os dramas sofridos pelas minorias constituem ainda matéria de preocupação do novo Presidente, apesar de ter sido com o antigo sistema de poderes que se redigiu a Carta da ONU, cujos intervenientes fundadores eram apenas ocidentais, tal como as suas perspectivas, desde logo surpreendidos pelos processos de descolonização a fazer crescer a Assembleia Geral, até serem maioria os Estados nascidos do resto do mundo, lugares de onde se tinham retirado as legiões do poder colonial europeu. Eventuais desencontros, para além da paralisação do Conselho de Segurança, reflectiram-se em guerras marginais, designadamente na Indochina francesa, na versão americana, no Vietnam, na Argélia, nos treze anos de guerra no ultramar português, and so on.

Logo a seguir, a crise, nos Estados soberanos, enquanto a solidão rodeava a superpotência sobrante. Com Wilson, respeitável antecessor de Barack Obama, despertara, com a paz de 1918 (quase lá vai um século), o anseio por autoridades novas – o poder dos sem poder – a afirmar-se nos domínios da ciência e da tecnologia, da espiritualidade, ou enveredando pela guerra assimétrica, como acontece com os agentes do terrorismo global. As propostas doutrinais caíram no vazio, num tempo acelerado de mudanças. Facto inquietante o da Cimeira de 2005 que, a exemplo de cimeiras posteriores, recentes, não conseguiu ela também resultados animadores. A passagem para o world paradigm fez surgir conflitos internos de alta intensidade.

Em devido tempo, o Papa Paulo VI afirmou na Assembleia Geral da ONU que o novo nome da paz seria o desenvolvimento; instituiu o Dia da Paz a celebrar no dia 1 de Janeiro de cada ano. Para o ano de 1978, escreveria a sua última mensagem sobre o tema: “A Paz, repetira, não é um sonho ideal, nem uma atractiva mas estéril e inalcançável Utopia. É, e pode ser, uma realidade criada em cada patamar da civilização. Igualmente a paz não é um estado de indiferença pública, saboreando a inércia e o hedonismo (…) a paz é uma inteligente e vívida coragem” De que serviu este apelo? Pelo menos para a proclamação da “Unesco”, no sentido de que a guerra começa no coração dos homens… Recordemos que, os que assim gizaram, estavam ainda traumatizados pelas duas guerras mundiais. De qualquer modo, a categoria de cidadãos passivos explodira na segunda guerra com os crimes contra a Humanidade, os crimes de guerra e sobretudo de genocídio.

Quando recordamos, se recordarmos, o vaticínio de André Malraux, segundo o qual «o século XXI ou será religioso ou não», pela associação de religião e conflito – essa a função das sibilas, a ambivalência –, a angústia leva-nos a considerar os valores humanistas, em sabedoria, quanto Obama, assim lho permita o mundo, apesar de irados desacertos e entusiasmos voláteis não só dos seus compatriotas.

(*) “Togetherness”, 2009-01-24









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