Filomena Cabral
A competência técnica e manipulatória na internet, digamos assim, a julgar pela catadupa de informação inesperada, verborreia mediática invasiva, ainda que com espanto e gozo, caiu no regaço da comunidade: o mundo mediático reproduzia, dava cobertura a tagarelice infindável; esquecido dos seus afazeres, responsabilidades, o colectivo voltava-se para o equívoco, quando há tanto em que pensar. Ninguém crê que tais estratégias – tanto de ordem externa ou interna –, manobras alienantes, sejam inocentes. Pondo de lado as tragédias naturais – ainda não temos poder para engendrá-las -, tudo o que produz sobressalto é susceptível de ser submetido a juízos de valor ou do valor da verdade: ao "leaker” deu-lhe para espiolhar arquivos, pirateando, tentação velha de milénios, houve tempo em que seria de imediato decapitado (recordemos o passado mais ou menos remoto). Sempre houve fuga, delação, a tentativa de penetrar nos meandros tenebrosos da diplomacia, ninguém a crê gémea da ética, até porque seria impossível: a transparência é um modo de entrever, sem franquear a porta, permitindo assim encarar a realidade o suficiente, na tentativa de melhorá-la (retocando-a, dando tempo a que o anseio se transforme em certeza, embora tantas vezes se revele inútil). É assim que os arquivos se nutrem e a memória se vai tornando gélida; para que reviva, deve ser olhada no melhor e no pior, com distanciamento.
Na constituição do horizonte do mundo, a experiência insere-se na relação do homem com o mesmo mundo, consigo próprio e com os outros. Há um abismo que nos separa das coisas, de nós e do semelhante, apelando à reflexão e à experiência de vida em comum, pelo que persistimos no trabalho ilimitado de preenchimento desse vazio, enquanto elaboramos um sentido para o enigma da vida. É como que uma "metáfora viva”, na assunção de Paul Ricoeur. E assim se vai o indivíduo libertando de coacções inerentes à particularidade da sua existência, pois que «reconhecer o próprio no estranho e torná-lo familiar é o movimento fundamental do espírito», preconiza Hegel.
O papel da memória na formação da experiência é crucial, não me refiro à simples conservação passiva do passado ou ao puro registo das imagens dos objectos e das pessoas que o atravessaram outrora, mas a uma operação de esquecimento que os faz recordar de outro modo, enquanto reminiscência.
Se por um lado o homem procura libertar-se, pelo outro procura inscrever-se, sempre obedecendo a imperativos transcendentes e operacionais, enquanto processo de fundamentação do próprio destino, constituindo-se assim como ponto de fuga a partir do qual o mundo lhe faz face, se perspectiva. Todavia, se numa manobra irracional se pretende inverter o sentido, perdida no horizonte próximo a consciência de solidão do homem moderno perante o universo e o destino, institui-se uma espécie de curto-circuito entre a constituição do sujeito e sujeição; os diferendos encenados nos media, pela democratização do gosto, não conduzem sequer à esperança da transcendência, ainda que pela perseverança no erro, por ser impossível uma crença pela observação democrática, empírica na maioria.
A ambivalência, originária da relação do homem com o mundo, põe em questão a experiência ética, autónoma, em relação às prescrições morais herdadas do passado; morais ou consensuais, na medida em que se estabeleceu que a mais simples forma de convivialidade se cinge à discreção, enquanto arte de saber viver, ou conviver, pois vivemos, ainda que solitários, com os outros.
No entanto, pela eficácia moderna da comunicação, pela emergência e proliferação de profissionais e técnicas do seu âmbito, numa época em que os rituais colectivos de socialização são coisa do passado, passa a comunicabilidade de uma função não só da competência profissional - altamente desejável – para uma competência técnica e manipulatória. O técnico/comunicacional tudo vence, é reconhecido colectivamente pelo seu papel de articulação entre os restantes domínios, a comunicação o espaço onde se joga a força estratégica, com os restantes poderes da experiência, nomeadamente o político e o económico, que conseguem definir, preservar ,impor e estabelecer a sua ordem própria em cumplicidade, daí surgindo campos diferenciados e o propalado direito à diferença, seja qual for o custo.
O «espaço público», definido como espécie de território anónimo que, em simultâneo, pertence a todos e a ninguém, assegura a livre circulação dos percursos e trajectórias, mantendo-se ao abrigo do controlo que os grupos de pertença exercem, naturalmente, sobre a livre circulação das pessoas. Surge assim a categoria da intimidade, salvaguardada através da privacidade, sendo a sua violação indesejável, em razão dos limites que impõe ao trânsito pessoal.
Desde os anos 70, assistimos ao aparecimento e à implementação de um novo modelo comunicacional, surgia uma informação reticular mediatizada pela rede informativa a que estava ligado. Para o que seriam necessários processos de gestão idênticos aos que se gerem no sistema de distribuição de água ou de energia, segundo mecanismos transversais e bidireccionais análogos aos das (antigas) comunicações telefónicas. Logo, exigiam-se a polivalência expressiva - através de um único circuito passariam, em todos os sentidos e em permanência, mensagens digitais tanto de natureza verbal como de natureza imagética -, a polivalência funcional - deixaria de haver diferenciação, nos circuitos e nos percursos, entre os diferentes domínios, integrados no mesmo circuito de mensagens noticiosas, publicitárias, lúdicas, artísticas, políticas, económicas, visando um acréscimo de transparência das notícias trocadas e universalidade de acesso, etc. -, logo instâncias supranacionais de gestão do conjunto do sistema integrado de informação.
Nada do acima exposto é novo, no vasto domínio das acções efectivamente realizadas. E surge então a figura da omissão. Omite agir aquele que, face ao implícita ou explicitamente formulado, se abstém de realizar a acção esperada por outrem, a da avaliação ou da adequação: é instintivo, visto fazer intervir, além de uma relação simbólica, uma relação de sintomas. É o evitar da acção omitida que a trai, dando-a assim a ver, de forma oblíqua ou directa, sendo neste sentido etimológico de traição que reside o fundamento da estreita relação da racionalidade moderna e racionalidade tradicional.
Os efeitos presumíveis da acção - ainda que os seus objectivos não sejam atingidos e que os efeitos pretendidos, não alcançados, se presumam -, quando adequados à acção empreendida, legitimam-na, racional ou irracionalmente, numa leakingmania de largo espectro a alcançar o circo mediático, sobretudo se o indivíduo, o "leaker”, por teimosia ou desígnio incognoscível, mantiver determinado comportamento, ainda que através de mecanismos de reflexão desajustada do universo da racionalidade. É assim que se nos revela o valor da pertinência ou do absurdo.
O mundo, cabisbaixo - por demasiada articulação de catástrofes de ordem vária -, de início quase rejubilou com o pirata informático alucinado, uma espécie de Robin Wood nórdico, roubando a credibilidade de países "ricos” para acalentar a impotente raiva dos menos prósperos, conhecedor da força do circo romano no imaginário: «Morituri te salutam…» O "leaker” causou, sem dúvida, estragos aparentes, na pretensão da notoriedade, na ilusão de competir com um qualquer tirano de barbela aparada. No entanto, o resultado não foi o que ambicionara: o mesmo mundo, neurótico, farto de escândalos, exausto, voltou o polegar para baixo.