Filomena Cabral
Há muito deixaram de temer a morte, mortinhos por morrer, os velhos. Tudo em redor lhes diz de um mundo que já não é o deles nem será para eles, e desistem de recordar o que já foram. Estão a mais, segundo as estatísticas, o olhar dos outros insinua-o do mesmo modo, e de tal sorte se deixaram tomar por um sentimento de pudor, sem nada de que envergonhar-se, que, saturados de sobre eles ser exercido qualquer poder mesquinho, anseiam desaparecer. Mas é tão complicado…apesar da reforma que vai encurtando! E quando se lhes depara, aos velhos, um outro velho, desviam o rosto: cansados de si próprios nem o suportam, enfileiraram, inconscientemente, no número da estatística, minguado o corpo de solidão e pena, até de privação, em silêncio, que este também lhes rói o osso, a pele ainda se lhes não foi da carne velha ainda viva.
Não que o mundo lhes importe por aí além, apoquenta-os a dignidade que se lhes recusa, obrigados a mendigar até aquilo a que têm direito. Jamais supuseram que ser velho fosse assim, ou que envelheceriam nessa circunstância, ei-los indefesos quais recém-nascidos, a ninguém enternecem, só a pele rosada e tenra daqueles suscita, quando suscita, desvelo, carinho.
Mortinhos por morrer, os velhos não sabem o que fazer da sua velhice. Noutro tempo, havia duas formas de conviver: com as pessoas a que se ligavam pelo sangue, e por aquelas que se ligavam pelo afecto. Uma, de contacto diário e frequente; outra, mais profunda e subterrânea. Era esta que os consolava de ausências que lhes pesavam, sabiam-se, sem em tal cogitar, a irrepetível existência do indivíduo estabelecida na sua relação com a verdade, relação na qual a pessoa, e só ela, se empenha totalmente, dando corpo ao testemunho, termo evocador do pathos, a partir de Kierkegaard.
É precisamente sobre o tema do testemunho, na sua forma extrema e emblemática de martírio, que Zaratustra ,(Livro II, «Dos Sacerdotes»), absolutamente lhe subverte o valor: seria loucura pensar que tal «valor» se encontrava, por exemplo, no sangue do martírio, o sangue seria o pior testemunho da verdade, defende, na medida em que os mesmos mártires a prejudicam, e ainda por se deixarem os idiotas seduzir pelo padecimento, atribuindo assim valor ao sacrifício. É certo, todos desenvolvemos um certo tipo de vida, e a aceitação dela é, ao contrário do olhar desinteressado do analista social, um acto passional, logo aberto ao erro.
Após terem vivido a maior parte da existência, os agora velhos, escorando-se, por assim dizer, em esquemas prático utilitários partilhados com a sua época - a sua «espécie» histórica -, a consciência a destrinçar o verdadeiro do falso, querendo-se desinteressada e objectiva (a verdade científica) - de que eles eram, afinal, inconscientemente portadores - viram-se perante a impossibilidade de recapitular a personalidade individual, por se não concentrar na consciência a responsabilidade ou aquilo em que se tornou: conjunto de pulsões, paixões que lutam entre si, proporcionando equilíbrios sucessivamente provisórios. Mas eles, os agora velhos, não eram conscientes dessa precariedade, por enovelados na existência, uma sucessão de barreiras a que chamavam estímulo, dele lhe vinha a energia e, sem dúvida, a vontade, a fé na vida, se preferirmos.
Viveram os velhos, regida a vida pela consciência e na paixão da verdade, “o impulso mais forte”, segundo Nietzsche, a que se submetem as outras componentes da personalidade, ainda que inconscientemente, embora a angústia existencial, com todas as suas ramificações, seja tida hoje como um puro sintoma, na medida em que se ofereceu como objecto de posteriores interpretações. Tanto no plano histórico biográfico como no plano teórico, pode dizer-se que Nietzsche antecipa, na sua crítica à noção de sujeito, a efectiva destruição que ele sofrerá, no desenvolvimento da psicologia analítica do nosso tempo. Lamenta-se o desaparecimento de temas como o conceito de autenticidade, mas se o testemunho implica uma relação do singular com a verdade, pode reduzir-se o testemunho a um puro sintoma.
Na medida em que o testemunho implica, como se sublinhou no início, a ideia de uma relação constitutiva do singular com a verdade, em «Holzwege» - só avançando se avança -, Heidegger preconiza, de uma forma obscura, a superação da subjectividade como carácter constitutivo do homem, curiosamente tendo o seu ponto de partida nas posições existencialistas de Kierkegaard e de Santo Agostinho: o homem pode, na sua meditação preparatória, compreender que o ser-sujeito, por parte da humanidade, não foi nem será a única possibilidade da essência futura do homem histórico. Mas este jovem Heidegger veria desaparecer do seu pensamento temas a que dera grande relevo, como o da angústia, já aqui referido.
O testemunho por apropriação haveria, no entanto, de constituir-se temível, pela sua aproximação da autenticidade: enquanto o palavreado do “se”, não autêntico, fala de tudo sem ter relação directa com nada, a verdade adequada para Heidegger instaurar-se-ia na radicalidade individual, como a decisão (e a morte), que ninguém pode tomar em vez do si mesmo. Na medida em que a metafísica é reconhecida como destino, a distinção entre autenticidade e o seu contrário já não passa pelo interior do sujeito existente, mas como alternância do próprio ser e das suas estruturas.
Todavia, tais estruturas degradam-se com o tempo, com a vida, a verdade parece perder força quando o emissor, o indivíduo, deixa de poder transmitir convictamente os seus motivos, seja pelo preconceito de quem o escuta, seja pelo convencimento de que será escutado com reserva.
E assim acabam os velhos por contribuir para o próprio descrédito, em processo de viragem afinal universalizada. Num mundo de falsidade, a autenticidade do indivíduo, jovem ou velho, não tem valor, nem sequer existe, sim uma mudança do mundo, que todos afirmam inaugurar uma diferente «época do ser», isto é, a trama de nova armadilha, onde cairá a questão Kantiana: «que devo fazer?» E igualmente a resposta ao eterno problema: «que me é permitido esperar?» E cada elemento do mundo poderá possuir uma estrutura particular tal, que qualquer discurso ou existência se tornem inviáveis a não ser por um sem-número de possibilidades temíveis.
Kant era amargo e pessimista, embora o progresso para ele não fosse uma fatalidade. «Só a arte é o desprendimento da existência.»Sobre isto, a maior parte não tem dúvidas. O homem, velho ou não velho - o ser - reunindo natureza e liberdade - acrescenta -, deve realizar esta identidade, não uma identidade morta, feita, mas uma identidade a fazer, levando ao primado da razão prática que se não afasta da existência de Deus, possibilitando a felicidade e conduzindo à virtude - se lhe aprouver -, mas também à liberdade.
No entanto, se a teoria fosse reguladora da existência, então estaríamos todos ainda mais desesperados O mundo mudou de paradigma, eu já nem sei se poderemos confiar nos teóricos, para além de um exercício intelectual, «tentando colocar as ideias em ordem».
Vejam: por entre teorias, tudo parece rolar sobre esferas; porém, na prática, na actualidade, isso tudo quase nada mais é que um amontoado de belas palavras, conceitos. Se «no reflexo colorido encontramos a vida», segundo o mesmo Kant, os velhos, que, por natureza, são menos sensíveis a juízos estéticos, passam por ele, pelo colorido da vida, quais seres desorientados. Aliás, nem consideram “se cabe no céu a luz do seu olhar”, tudo lhes é na alma: sabem que esta vida é um sol que dura pouco; e todos somos alquimistas da morte.
Andam mortinhos por morrer os velhos. Mas nada lhes perguntem, senão, acreditem, morrerão ainda mais depressa: «E vão-se as horas, em desesperada calma (…)»