Por Filomena Cabral
ÁFRICA DO SUL RECEBE PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS
L. KING / MANDELA / OBAMA: Democracia e Crescimento
«A demonstração de amor dos últimos dias mostra que Nelson Mandela e a sua nação representam anseio de justiça e dignidade que transcende raça, classe, fé e país»
Barack Obama, em Pretória
«Queremos prosseguir com o compromisso de alto nível representado por esta viagem»
Discursando, na Universidade do Cabo
Quando Luther King, nascido em Atlanta, em Janeiro de 1929, é assassinado em Memphis, no dia 4 de Abril de 1968, Barack Obama tem sete anos de idade. Sua mãe, branca, antropóloga, natural de Wichita, Kansas, casara com um africano natural do Quénia. No entanto, interessa aqui e agora que, por altura da morte de King, autor do célebre discurso «I have a dream» - recordemos a marcha sobre Washington -, empenhado no combate à desigualdade racial, apelando à não violência, aquele que iria tornar-se, em 2008,o primeiro Presidente afro-americano dos EUA, nascido no Havai, frequentava ainda a escola.
Na mesma década de 60, Mandela visitava o mundo.
Em 1962, desloca-se a Londres, onde adquire livros sobre guerra e guerrilha, visita o Brasil e percorre vários países africanos, Libéria, Nigéria, Botsuana, Etiópia. Em Adis Abeba, encontra-se com Haile Selassie; recebe instrução militar dos etíopes, deixa-se fascinar pelas lutas dos argelinos contra os franceses, em Marrocos. Mandela ia desenvolvendo a ideia de um exercício revolucionário capaz de equiparar o apoio popular, instalando escolas de doutrinação e psicologia de acção. Entrevistado em 1962, afirma: «Durante a minha vida, dediquei-me à luta do povo africano. Lutei contra a dominação branca, lutei contra a dominação negra. Acalentei o ideal de uma sociedade livre e democrática, na qual as pessoas vivam juntas em harmonia e com as mesmas oportunidades, um ideal para o qual espero viver. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.» Em 1964, recebe pena de prisão perpétua.
King, Mandela, Obama, laureados com o Prémio Nobel da Paz, diferentes e iguais na defesa das suas convicções - acredito que coincidentes no fundamental -, tiveram no tempo um factor de instabilidade, uma vez que os ideais ou ideários, transcorridas seis décadas sobre o Segundo grande conflito mundial do século XX, foram reprogramados, ainda que inconscientemente, pela humanidade inquieta, sempre em mudança, patenteados inquietude e desencanto: descalabros económicos e financeiros parecem conduzir as aspirações a planos práticos - ou pragmáticos - desligados, para sempre, da utopia. As ilusões feneceriam de qualquer modo; contudo, ou deixámos de ser o seu escrínio preferencial ou não sabemos o que fazer com elas.
Se, em determinada altura, os países se refizeram dos conflitos europeu e/ou vietnamita defendendo uma economia capitalista, ainda em 1945 os EUA traduziam 60% de capacidade produtora do petróleo, a Europa Ocidental, a América Central e do Sul sob influência cultural, ideológica e económica norte americana; pelo seu lado, a influência soviética fazia-se sentir em parte do leste europeu: assistir-se-ia a oposição linear entre o capitalismo e o socialismo totalitário, o leste europeu permaneceria mergulhado na ruína de duras batalhas com o exército alemão, durante a Segunda Guerra, grandes centros populacionais soviéticos continuariam destruídos. Afinal, os Estados Unidos, além da maior Marinha e Força Aérea, cujos exércitos haviam chegado a ocupar parte da Europa Ocidental, o Japão, também metade da península da Coreia e grande parte das ilhas do Pacífico, tinham sofrido uma única batalha, Pearl Harbour, travada próximo da área continental do seu território, durante a que fora, de facto, uma guerra civil europeia e cujo fantasma se não afastou definitivamente: desencanto, revanchismo, demonstrações de poder, reptos, hipocrisia generalizada continuam disponíveis, são a argamassa do nosso desentendimento.
Em experiência de recuperação, sobrepondo-se à fatalidade, a humanidade insistiu em estratégias, no século passado, como que tentando pôr à prova capacidade de domínio e vantagem, talvez para resgate da aura perdida – a União Europeia formou-se na ideia de que a união faz a força, e que o grupo defenderia, naturalmente, os mesmos interesses. Os Estados Unidos da América, enquanto nação moldada nos ideais iluministas, parecem desejar recuperá-los, enviam agora a África o seu Presidente, a quem ninguém permanece alheio, o capital de confiança mundial em Barack Obama continua alto, circule por onde circular, faz parte da História, que precisa dele: quando sobressalta o mundo - por vezes de modo inesperado -, são abandonadas a letargia, atitudes espelhando algum inconformismo ou raiva mal dirigida, na aldeia global.
Após o entusiasmo que suscitou em Berlim, chegado à África do Sul, depois do Senegal - apesar da preocupação do país e do mundo por Nelson Mandela -, o Presidente dos Estados Unidos, com a sabedoria que o caracteriza, subestima impossibilidades, enfatiza a vitalidade daquilo que para si, Madiba e L. King sempre foi importante: a força dos princípios. Destaca o papel histórico da África do Sul na construção de uma nação multiétnica, de que o seu próprio País é paradigma. Dirigia-se, na circunstância, a milhares de jovens, na Universidade de Joanesburgo: neles residiria - afirma - a grande esperança no futuro do continente africano. E reforça: «… está nas vossas mãos».
Todavia, não deixa de sintonizar outras preocupações, apelando a que no Zimbabwe - dirigindo-se a Mugabe - termine a perseguição à oposição. Presidente desde 1980, Mugabe pretende recandidatar-se.
No dia seguinte, na cidade do Cabo, visita Robben Island, a ilha prisão na qual o líder da luta contra o apartheid, Nelson Mandela, permaneceu detido 28 anos. No livro de visitas, Obama expressou, com sua Mulher, em nome de sua família, «o sentimento de profunda humildade por estar num lugar onde pessoas de coragem enfrentaram a injustiça e se negaram a submeter-se.» Acrescentaria que «não existem grilhões ou celas que possam vencer a força do espírito humano.» Acompanhava a família presidencial A. Kathrada, de 84 anos, companheiro de presídio de Madiba.
Mais tarde, na Universidade do Cabo, apelaria à protecção da Paz em África. Aplaudido entusiasticamente, declara-se feliz e honrado por ali estar, já visitara Robben Island em 2006, esclarece, mas sem suas filhas que, a partir desta viagem, jamais esquecerão, valorizando-o muito mais, o sacrifício de Mandela e outros, pela liberdade: «O que muda o mundo não é o medo, mas a esperança», conclui.
Evoca Robert Kennedy - que ali estivera enquanto senador -, quando a vitória dos direitos civis nos Estados Unidos não era certa, inconcebível a ideia de esperança. «Quantas vozes se levantaram contra a injustiça, aqui, nos Estados Unidos, em todo o mundo?» E prossegue, afirmando que as vidas de Mandela, Kennedy, Ghandi foram um desafio para si e «devem continuar a sê-lo para as novas gerações». Dirigindo-se aos que o rodeavam, pendentes das suas palavras, recorda-lhes que as suas opções fariam a diferença: «Neutralizem a intolerância com a verdade!», destacando ser aquele momento de grande promessa à África do Sul: «Se o progresso é crucial em África – sublinha –, a democracia operou grandes desafios, num continente onde a juventude tem de fazer escolhas, decidir do futuro, quando políticos responsáveis tiveram saído de cena! A transformação não pode deixar os direitos das pessoas para trás! Todos os países estão atentos ao que aqui ocorre…Sei, como Presidente dos Estados Unidos, que, se a Paz prevalecer sobre a guerra, seremos mais livres.» Exorta: «Ajudem a construir uma nova África, não esqueçam a África subsaariana! Poucos países têm capacidade de alimentar-se a si próprios.» Enuncia slogan: «Oportunidade. Democracia e Paz, nas vidas e nos países!»
E não deixa de reclamar poder para as Mulheres: «muito há a fazer em prol do feminino» - aconselha.
Já na Tanzânia, em Dar es Salam, durante conferência de imprensa com o Presidente Jakaya Kikwete, no primeiro dia de Julho, concorda com este nas suas preocupações, na indispensabilidade do acesso à cultura. Em síntese, destaca Barack Obama - uma vez ainda, desde que pisou África – que a democracia é trabalho conjunto, recusa da violência, para que as diferentes vozes sejam escutadas. «Muito deve ser feito para que a generosidade africana dê fruto, isso inclui ouvir a oposição e uma imprensa livre».
Declarando que a reconstrução de África é para os africanos, teria, na intervenção do Presidente Kikwete, eco do seu anseio: «A visita de Obama é importante, África precisa dos Estados Unidos da América e estes precisam de África. Aguardamos mútuos benefícios – conclui».
Solicitado a opinar sobre a instabilidade no Congo - onde não há paz há vinte anos -, destaca que «a tragédia do Congo é a sua riqueza, múltiplas possibilidades», concluindo que será parte importante do projecto que o levara ali: «Não devemos estimular o medo, numa região onde os direitos humanos não são respeitados.»
Instado ainda sobre problemas ligados à informação, em que os EUA parecem envolvidos com a Europa, Barack Obama elucida que os europeus são os aliados privilegiados dos Estados Unidos da América. «Todos os Intelligence Services, europeus ou não europeus, pretendem o melhor para a humanidade, se assim não acontecesse não seriam eficazes, não pode descurar-se informação relativa ao mundo.» A reconhecida frontalidade e coragem revelavam-se - aliás sempre -, agora no continente de antepassados.
(Entretanto, a Morzy, no Egipto, por desejo de milhões de manifestantes, era-lhe dado, na mesma data, um dia para sair. Pelo seu lado, o Exército estabelecera prazo de 48 horas para que os responsáveis políticos respondessem ao povo. Cinco ministros demitem-se, o edifício da irmandade muçulmana fora incendiado durante a noite, o povo egípcio parece recusar um regime dominado pelos islamitas.)
«Power Africa», projecto divulgado pelo Presidente dos Estados Unidos durante o périplo pelo continente, constitui-se iniciativa de 7 mil milhões de dólares, destina-se a desenvolver o acesso à electricidade, na África subsaariana, com um prazo de aplicação de cinco anos, visando duplicar o benefício da energia para mais de dois terços da população. «Power Africa» inclui a prospecção de novos poços de petróleo e gás e o desenvolvimento de fontes de energias renováveis, geotérmica, hídrica, eólica e solar, envolvidos a Etiópia, Gana, Quénia, Libéria, Nigéria e Tanzânia.
Creio interessante salientar - concedendo-me espaço para o prazer memorialista, com o maior respeito – que na iniciativa do Presidente dos Estados Unidos encontro certo mimetismo com a política expansionista dos europeus, dos portugueses, em África, continente portentoso. Aliás, em determinado passo de uma das suas intervenções, aludiria a práticas antigas, coloniais, expressando-se em termos de um futuro alternativo: a prática de velhas nações europeias, no continente africano, constitui, de facto, manancial de experiência a aproveitar ou a desprezar, ciente Barack Obama que o tráfico negreiro de potências coloniais foi também aproveitamento de antigo comércio dos próprios africanos, mercadejando irmãos de raça vencidos em pelejas, logo sem terra e sem tribo.
A proverbial sagacidade do mais surpreendente estadista americano, de após a Segunda guerra, tê-lo-á levado a estabelecer compromisso com a Mãe África: através de plano arrojado, parece redimir essa ancestralidade mercantil, formando «a grande tribo», sob paradigma sem precedente, dando voz a todos na defesa dos seus interesses, projectos, até das suas frustrações, mitigadas em «decisões morais e políticas».Como que em aditamento aos Direitos Humanos, reforça e promove práticas de desenvolvimento.
Lisboa, 1 de Julho de 2013.