MORTE EM DIRECTO, NÃO!
Filomena Cabral
Mais difícil que o caminho da racionalidade - ainda que em sábia mistura de emoções e entusiasmo, pela personalidade e qualidades raras de alguém como Mr. Barack Obama - é o caminho para o coração do mundo! Enlevados - «we had a dream» - comovemo-nos perante o seu juramento, enquanto Presidente dos Estados Unidos da América. Foi, ali e agora, o Presidente do mundo ocidental.
Enquanto Mulher portuguesa responsável, assim muitos outros, dedico-lhe admiração sem reservas, apreço esse aqui expresso com veemência; quase me sinto grotesca: afinal todos os textos de dilecção são ridículos… Assisti, em directo, por infelicidade minha, na ronda nocturna pelos noticiários, à declaração de captura e morte de Osama bin Laden, às cinco da manhã, em Portugal. Hesitante, assisti à declaração do Presidente da Nação considerada muito justamente o pólo da democracia: não seria engano, capturado outro qualquer, em vez dele? E, sinceramente, apesar de conhecer a eficácia e responsabilidade da nação mais poderosa do mundo, aguardei quase um desmentido, afinal escapara, fora equívoco… E congeminei que Barack Obama, mais uma vez, seria objecto de malquerença daqueles que, na maior parte, nunca tomaram chá.
A partir da declaração pública da morte de Osama bin Laden (jamais tinha escrito o nome do indivíduo, faço-o por inscrição no role dos que não deixam saudade, pelo horror de situações várias), os noticiários não mais cessaram de mencionar o facto, naturalmente. Ainda na expectativa do desmentido, chega a confirmação, não haveria lugar para dúvida, entre outros, pelo suporte de imagem: a morte fora em directo e com tribuna de honra. Não ponho em causa que, dado o equipamento tecnológico, não fizesse dele uso a Casa Branca, em privado, todavia de modo a que o mundo, meramente, o supusesse. Não nos fere nem nos decepciona o que desconhecemos, por vezes até ficamos gratos. Teria bastado que os EUA garantissem possuir provas irrefutáveis da efectiva eliminação de Laden, para que acreditássemos: a palavra de Barack Obama não é a de um qualquer governante, as suas declinações sábias têm impressionado o mundo, levando tantos à tolerância deveras sentida, pelo seu carisma de excepção.
Por tal motivo, dirijo-me a Mr. Obama, um dos Presidentes mais amados de um País que jamais visitei e que tem sido motivo das minhas preocupações, de investimento criativo: se presenciou o desenrolar dos acontecimentos, como de facto aconteceram, o nosso sentimento de veneração para consigo foi beliscado: no seu coração, é, verdadeiramente, a réplica do rei da selva. Não desfruto, seria incapaz de tal, tento, desesperadamente, manter por si a admiração deveras sentida, desde o longínquo discurso de 2007. Os EUA davam-nos, na pessoa de um Americano singular, exemplo de digna grandiosidade. Por favor, não faculte imagens repugnantes, apesar dos fortes motivos dos americanos.
Vimos a face dos seus compatriotas, na desgraçada manhã de 11 de Setembro de 2001, espelhando desespero, desgosto profundo, incompreensão até, nunca o mundo terá vertido tantas lágrimas em simultâneo! Todavia, como poderemos esquecer o seu rosto, em grande plano, observando a morte do inimigo público número um da América! Consegue adormecer a partir de então? Eu tenho tido maus sonhos.
Quando perdemos alguém numa Guerra – o que aconteceu a muitos portugueses, tanto em La Lys, durante a Primeira Guerra, como na Guerra Colonial - não gostaríamos - Deus nos guarde! - de presenciar o horror da vingança, alguma coisa tem de preservar a nossa integridade moral. E quem, para além de nós, deve salvaguardar-se? Lamentavelmente, receio que, por razões do colectivo, Mr. Obama tenha magoado o coração do mundo: a sua face, através da media, observando o inimigo liquidado, permanecerá na nossa memória, jamais deveria ter sido transmitida, se mo permite. Nós, estrangeiros, talvez o amemos mais que muitos americanos. A transparência, por vezes, necessita do véu da indecisão. A ilusão, desde que não alienante, é necessária à vida, aos sistemas.
Por favor, evite aos jovens e crianças de todo o mundo, “tais” imagens: já presenciaram ou vivem demasiado infortúnio, a desgraça ronda-os, a tantos deles, desde que nasceram! Compreendemos a catarse do povo americano, tentando compensar-se das suas perdas, mas os seres amados partiram para sempre, nada os fará regressar; o que nos tem sido dado vislumbrar é mais uma espécie de alienante exaltação que dolorida e humana tristeza. Sentimos compaixão pelos seus compatriotas – e nós somos todos americanos desde a sua posse, Mr. Obama -, mas também lemos Freud, Jung. Diz Hopkins: «O the mind has mountains; cliffs of all / Frightful, sheer, no-man-fathomed. Hold them cheap! May who ne’er hung there(…)»
E se a loucura ou espiral de vingança atingirem de novo os Estados Unidos da América, que faremos? Permaneceremos indiferentes? Não, jamais poderíamos: preservamos, enquanto europeus, um legado humanista de que o grande País americano é um dos ícones. Todavia, aderimos a si, tão completamente, que teremos de fingir que é dor, a dor deveras sentida, para não nos atraiçoarmos nem a Pessoa, pelo menos: é a nossa voz colectiva do século XX, por excelência.
O mundo é um palco, a História uma representação cujos autores são, muitas das vezes, actores residentes: mudam os textos, as circunstâncias, as tramas. E tais actores do palco da História parecem imutáveis e, em simultâneo novos, embora se vão tornando réplicas de réplicas anteriores, daí a grande dificuldade em esconjurar os diversos fantasmas do colectivo.
Recordemos, Excelência – nós jamais o esqueceremos - o significado para o Mundo da cerimónia junto do Lincoln Memorial! Era o início de um mundo diferente – quem saberia -, a Esperança, depois do mesquinho antecessor, lançara velhos países em inquietação! A venerável Europa, e mais além, jamais seriam os mesmos. O terror assombrara, reaproximara imagens desgraçadas das Guerras do século XX, múltiplos infortúnios. O trauma está sempre à espreita, qual bandido, para reabrir feridas. Por vezes, esmagando o outro, pisamo-nos a nós, só o perceberemos quando for tarde de mais.
Quantos homens morreram, até se chegar à eliminação, ao horror de uma morte em directo? Jamais assistirei de boa mente, repito, à festa nacional americana , em recentes momentos, por recusa do ambiente análogo ao de vulgar final de um campeonato. Os mortos americanos mereceriam contenção, também os desaparecidos, lutando pelo Ocidente, na velha Mesopotâmia. Quanto a Bin Laden - já que lhe foi dado tratamento de estrela cinematográfica, para adultos com seriíssimas reservas - dominará mais que nunca mentes odientas que o visarão a si, Excelência. A partir de agora, será o bin laden deles. Estaremos destinados a sofrer a visão da sua decessa? Deus, Alá, Buda nos defendam de uma coisa assim, receamo-la há anos. O abalo seria de tal ordem, que o mundo estiolaria um pouco, por alguém que permanecerá, contra ventos e tufões, na História da Presidência Americana, entre os mais veneráveis.
Como seria a humanidade, depois de si, Mr. Obama? Triste, ainda mais insegura. Vimos, nas suas corajosas lutas ulteriores à posse, uma vontade férrea, capaz de torcer o eixo do mundo, pelo ideal, com a dignidade de leão magnífico, junto de uma espinheira, na savana africana, o rei da selva, de juba farta e inteira, sem cicatrizes, ágil, respeitado, atento ao que o rodeia. Por lá andam hienas, aproveitadores do fétido, sempre, mas não se aproximam dele. A dignidade impressiona, até no mundo animal.
«Don’t call the wild, Sir, please! »
Que Obama, enquanto lionhearted, lutando pela justiça no mundo, tenha na sua linhagem Ricardo, filho de Henrique II de Inglaterra e de Leonor de Aquitânia, nascido em 1170 e impondo ao mundo padrões de mudança. Seja este, por romantismo, seu lendário antecessor. Por muito o admirarmos ainda, Sir, desejaríamos - veja - que fosse também europeu, ao contrário de alguns americanos, que o prefeririam desenraizado da sua matriz de direito.
O mundo, em formidável maré de descrença, continua a acreditar em si. Não é isto estupendo? A tarefa do restaurador é também a da prudência: poderemos emendar uma narrativa, ajustando versões, mas a narrativa do mundo dificilmente é passível de remendos, estes normalmente conduzem à dúvida, que só atrapalha, dando corpo à aleivosia.