ALEA JACTA EST
Filomena Cabral
“Cultural e Politicamente falando, somos fruto dos Grandes Descobrimentos”
Dilma Rousseff, Presidenta do Brasil
A luta contra a perversão dos valores, graças a uma assunção da ética na vida quotidiana, é um caminho para o progresso humano e social. Se durante muito tempo se percutiu a tecla do universalismo, o patriotismo, que é o nacionalismo trazido à consciência, é agora alimentado no jardim da xenofobia, pois depende de se encontrar um estranho a quem odiar suficientemente, de modo a permitir que as pessoas de determinado grupo possam cooperar entre si, desde que os seus ódios sejam dirigidos para fora, o que não impede que sejam voltados para dentro, impedindo que a vida humana, à luz do cosmopolitismo moral, tenha como objectivo a justiça social global, não chegando ao ponto de defender, tal globalidade, a erradicação de tiranos, quaisquer que sejam, é impossível e indesejável policiar o mundo. Defende Thomas Pogge que os ditadores da África subsariana são mantidos no poder por instituições internacionais que facilitam e exacerbam a corrupção, pelo que contribuem para a contínua pobreza e para que as elites locais possam ser opressoras e corruptas, porque com ajuda militar conseguem manter-se no poder mesmo sem apoio popular.
Este é o esquiço da inquietação dos últimos meses, em que países africanos da referida região – e seria utópico augurar a paz e a redistribuição da riqueza – podem encontrar-se naquilo que poderia ser qualificado “nostalgia do futuro”. Desde as profecias do Antigo Testamento até à New Age, foram estabelecidos nexos que historicamente ligaram o milenarismo às utopias e às ideologias do progresso, a nostalgia de um país “sem mal nem desventuras” existiu ora em vaticínios, e para aqui arrasto Isaías, prometendo futuro radioso, «então o lobo habitará com o cordeiro (…) o bezerro e o leão serão alimentados juntos, um menino os conduzirá…», ora por sonhos, assim Daniel explica a Nabucodonosor a ruína de quatro reinos.
No entanto, a geografia das Utopias situa-se na América. Segundo Oswald de Andrade, depois da descrição por um nauta português a Morus, da gente e costumes encontrados do outro lado da terra, um século após, Campanella, na Cidade do Sol, reportava-se a um armador genovês, lembrando Colombo. E mesmo Francisco Bacon (possivelmente Shakespeare), que escreveu a Nova Atlântida em pleno século XVII, faz partir a sua expedição do Peru. Dizia Colombo: «maravillas de la lindeza de la tierra y de los arboles (…) la más hermosa cosa del mundo y salen por ella muchas riberas de águas que descendian d´estas montañas (…) quanto a la hermosura, no avia comparación, asi a los ombres como en las mugeres» .
E tudo isto chega ao texto pela semana de emoções intensas, custa-nos acreditar na eficácia de operações militares para neutralizar conflitos, em políticas de terra queimada: já Ovídio invectivava o tempo, no lamento de Helena: «Ó tempo insaciável», conduzindo à decadência, após a Idade de Ouro, «quando a terra, mesmo não arada, ostentava searas», «corriam rios de néctar», «o mel escorria da verdejante azinheira». Mas logo viria a Idade do Ferro, «quando irromperam todos os males».
Por assim dizer, o Brasil espelha a Idade do Ouro, Portugal a Idade do Ferro. O tempo das Navegações foi promessa no Mundo, por tal motivo escolho a bela frase de Dilma Rousseff para epígrafe: ela sabe, pela experiência de rebeldia extrema, que há momentos em que um indivíduo, um país necessitam de um gesto, uma palavra que lhes ergam o ânimo. Mas não exagero se afirmar que só um brasileiro consegue enunciar, com formidável limpidez, a herança preciosa de valores civilizacionais que os portugueses foram semeando pelo Brasil. Nós perdemos (na maior parte) esse orgulho de navegantes. Mais recentemente, outro americano, Barack Obama, dizia, no Palácio de Belém, do seu regozijo por estar «numa terra de navegadores que daqui saíram para irem ao nosso encontro». E, ainda há semanas, recordemos, o Presidente dos Estados Unidos e Dilma Rousseff, lado a lado em Brasília, representavam renovação audaciosa nos seus países, pela eleição de ambos.
Todavia, essa terra de navegadores é, espantosamente, esta, inundada de amargura, amedrontada por um presente instável, um futuro que não pode projectar, resta-nos o regozijo passageiro pela estada de Presidentes americanos, desta feita brasileiros, com a aura de Dilma Rousseff, caminha tranquila, no modo de quem respeita, pelo simbólico, o chão que pisa, Portugal (sei, por felicidade minha, como os brasileiros lúcidos valorizam a preciosidade da Língua portuguesa a distribuir-se por cinco continentes, a História comum.)
Com a força de carácter que o impôs ao mundo, o ex Presidente, José Inácio Lula da Silva, recebeu das mãos de Aníbal Cavaco Silva, no Parlamento, o prémio atribuído pelo Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, para figuras mundiais que contribuam para o desenvolvimento da democracia e promoção da solidariedade e independência mundiais. No discurso, defendeu o laureado mudanças no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Pelo seu lado, o Presidente de Portugal mencionou a dinamização da relação entre os países emergentes, destacando que Lula da Silva combateu a injustiça, a miséria e a privação, que afecta uma parte substancial da humanidade, «deixando-nos um legado inspirador».
O país, cabisbaixo – o plano de austeridade, que tentava evitar o recurso à ajuda financeira internacional, fora rejeitado pelo Parlamento –, encontrou, apesar de tudo, um ponto de equilíbrio. Embora disfórico, entusiasmou-se, em sinceridade, com um homem que diz o que tem a dizer, e seguiu atento em presença ou através dos media, imagens do doutoramento honoris causa, pela vetusta Universidade de Coimbra. Simbolicamente, foi ao encontro dos valentes rapazes de Minas, que no século XVIII, após terem-se ali formado, decidem visitar Paris, Thomas Jefferson era então embaixador dos Estados Unidos. Solicitam-lhe audiência, recebe-os em Montpellier. E escutam dos lábios do ilustre estadista que «a independência do Brasil seria vista com bons olhos pelos Estados Unidos da América» . Regressam ao seu país, caucionados pelo poderoso incentivo, Cláudio Costa, Tomás António Gonzaga; com alguns outros, destacando o lendário José da Silva Xavier, Tiradentes, encabeçam a Inconfidência Mineira, sendo-lhes recusado o perdão, por D. Maria I. Uns são mortos para exemplo, outros deportados para Angola, esta quase se resumia a pontos estratégicos de troca de mercadorias com os naturais da terra: nós, portugueses, só concedemos, verdadeiramente, atenção a Angola depois de termos perdido a Jóia da Coroa, o Brasil.
Reproduzo as palavras de Lula da Silva, em Coimbra: «Mais do que um reconhecimento pessoal, acredito que esta láurea é uma homenagem ao povo brasileiro, que nos últimos anos realizou, de modo pacífico e democrático, uma revolução económica e social rumo à prosperidade e à justiça», realçando que Alencar, seu ex vice Primeiro-Ministro falecido no dia anterior, fora um dos homens mais íntegros que conheceu, um notável estadista.
Para Cavaco Silva, Lula “teve uma projecção internacional notável”, manifestando-lhe a sua enorme admiração. Aliás Lula da Silva foi alvo de provas contínuas de apreço, entre nós.
Mas vale chamar à colação, recordando, um português admirável, José Correia da Serra, ministro plenipotenciário do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves junto do executivo norte-americano, entre 1816 e 1820, influenciaria precisamente Jefferson no sentido de ser aceite o Brasil com responsabilidade igual à dos Estados Unidos no chamado “sistema americano”. No entanto, a novel nação americana isolara-se face às nações europeias, evitava influência no hemisfério ocidental, aspecto radicalizado por Quincy Adams: em sua opinião, o Brasil não seria independente enquanto reconhecesse a soberania da Casa de Bragança. De facto, a simpatia da nação americana pelos movimentos revolucionários da América Latina é um dado adquirido: segundo o próprio encarregado de negócios português creditado em Washington, José Rademaker, os Estados Unidos concediam ajuda aos movimentos independentistas, os próprios insurgentes sul-americanos lhes solicitavam auxílio: imitando os rebeldes pernambucanos de 1817, buscavam orientação na sua experiência constitucional.
A Revolução Francesa daria um novo sentido às reivindicações dos direitos do povo. Apesar da censura, as doutrinas filosóficas iluministas, veiculadas sobretudo por pensadores franceses, difundiram-se largamente entre as elites sul-americanas ( Declaração dos Direitos do Homem e o Contrato Social ), debatidas ideias novas e patrióticas, quase sempre com afinidades maçónicas e toleradas pelos governantes, seduzidos pelas Luzes; pulularam na América Latina, de Buenos Aires à Guatemala, do Rio de Janeiro a Bogotá.
Para os muitos brasileiros a viver no nosso país, a visita dos dois estadistas foi, naturalmente, um ponto alto vivido com o maior entusiasmo. E vai perdurar, embora vivamos a aceleração da história, os acontecimentos ultrapassam-nos, somos continuamente surpreendidos e, atingido determinado ponto de cansaço, o indivíduo corre o risco da apatia. Neste clima de sobressalto, Cavaco Silva marcou eleições, dando plenos poderes ao Governo de gestão para praticar os «actos necessários na condução dos destinos do País, tanto no plano interno como externo». Anunciava assim, em 31 de Março, a realização de eleições legislativas, no dia 5 de Junho. Mas que irá conseguir-se de verdadeiramente retemperador, atendendo ao relacionamento crispado lá fora e cá dentro, em tão curto espaço de tempo? Por outro lado, há decisões a tomar de imediato: «O Governo encontra-se em gestão, mas o estado português permanece», reforça.
Apesar de tudo isto, em situação calamitosa, temos de acreditar em melhoria, embora não imaginemos no horizonte um paladino da Concórdia, atingiram-se extremos que nos não dignificam. E no mundo recrudesce a agitação, fogo vivo de artilharia aqui tão perto, no norte de África: há muitas “áfricas”, em África, tantas quantas as “europas” que a dominaram. Que reprimidas ainda são, agora de outro modo, pelo que, agindo as Nações Unidas por bem, na intenção de libertar populações do jugo, acabam por levar a uma política de terra queimada inquietante; e os desastres naturais, mesmo que longínquos, tornam-se próximos, pela força de imagens aterradoras, contribuem também para a inquietação da nação portuguesa com oito séculos de história, avassalada por crise política e económica ímpar.
Assim, recordar escassos dias de vívido entusiasmo pelo país americano na raiz do nosso afecto, traz-nos – por mim o digo – certo apaziguamento interior. Acredito num olhar mais atento de muitos portugueses sobre o Brasil, pela calma firmeza de Dilma Rousseff, recordados ainda da comovente tomada de posse, na belíssima Brasília. Estamos na ponta da Europa, inquietos, ávidos de tudo, de futuro: persiste em nós uma necessidade de mundo, não foram em vão as Descobertas, nem as palavras da Presidenta do Brasil, aludindo à nossa bravura antiga. Obrigado.