Filomena Cabral
Constrangido pelo macro despotismo do quotidiano quase sem rosto, pela sobreposição de estratégias - tudo no sentido de camuflar, misturar, retirar relevância -, o sujeito cai no atordoamento, estado ideal de manipulação, força-se a acreditar, enquanto estratagema de resistência, e talvez aparente imbecilidade. Atingido um patamar instável, como que entra em estado de emergência, agitam-se águas profundas, o imaginário regressa, de fauces escancaradas - recordemos o circo eleitoral - e cai-se num estado incerto, verifica-se como que um esquecimento, e os mecanismos de repetição entram em roda livre, na afirmação da contingência e da multiplicidade.
Ao assumir a precariedade de quem fala em nome próprio, qualquer fica sujeito ao juízo, responde pelas suas palavras que, por vezes, são adoptadas pelo colectivo, «como se» fossem de cada um, não havendo ninguém a responsabilizar (ou a muito poucos, já nem sei se a instituição literária confunde confiança e certeza, prescinde-se, pura e simplesmente, de reputação, sem que se confira a autoridade de uma verdade, o que parece reconduzir a um poder absoluto, idêntico ao teológico.) Se a literatura é o lugar do incerto, o incerto dificilmente será o lugar da literatura.
No estado de calamidade da sociedade portuguesa, alguns querem acreditar que revisitam o estado das coisas pré-revolucionário, socorrendo-se de tácticas utópicas - ainda que em ingenuidade, pela falha da educação do colectivo, tantas vezes através dos periódicos onde se exercia a crítica literária. Tornou-se o gosto a expressão máxima do subjectivo e do comum. A instrumentalização política é uma tentação, sempre. Sentem-se parvos? Mas tal sentimento não é de geração espontânea, sim o resultado da geração anterior que acreditava num projecto europeu, qual fonte de Hipocrene da pujança económica. Nos anos 80, todos ansiavam ser - e continuam - empresários de sucesso, de ”brief case” acorrentado ao pulso, eructando dólares miríficos. Nos anos 90, tinham debaixo de olho os empréstimos a fundo perdido: qual caixa registadora, o ouvido antecipava o tilintar de euros. Nos anos 00 deste triste, desgraçado século, na verdadeira assunção do termo, «mal criados», supunham-se com direito a tudo. O mundo era deles (!?); tanto lhes massacraram o juízo os maturos com a ideia da juventude reinante e insubstituível, que esqueceram a própria maturidade; eles, parvos, acreditaram.
Mas consideremos outros aspectos:
A literatura, definida, no séc. XVIII, o das Luzes, como a arte de ler e escrever, relativa ao saber em geral, seria definitivamente consagrada quando “deixou de ser um testemunho universal para se tornar uma consciência infeliz”, segundo Barthes. Logo, o poder da literatura, sendo maior do que poderá imaginar-se, é ambíguo, não está na posse directa de acontecimentos, sim em atraso ou em avanço, relativamente às exigências políticas que, como bem sabemos, privilegiam ao longo do tempo uns acontecimentos em detrimento de outros; logo, a “função do escritor”, segundo Sartre, seria a de fazer com que ninguém pudesse ignorar o mundo e dizer-se inocente.
Se, por consenso, escrever é revelar o mundo, implica o recurso à consciência dos outros, para se fazer reconhecer como essencial à totalidade do ser. Se resultar a literatura da enunciação viva, do diálogo do escritor com o semelhante, com a história e com a sociedade, estabelece então a leitura um outro diálogo, o do leitor com o texto e, por seu intermédio, com o tempo histórico e com os valores que imediatamente representa.
Isto tem sido dito e redito, em múltiplas variantes. Num ponto teremos de atentar, todavia, na cristalização do saber, quando apoiado na palavra impressa: a sua propagação possibilitaria o reunir do acervo de sabedoria dos séculos anteriores ao surgimento da impressão de caracteres, sendo que o vindouro procuraria ancorar-se nessa base do conhecimento, aproveitando-o e dando-lhe continuidade, chegando a palavra então àquilo que Eduardo Lourenço define como espelho infinitamente reflectido do sentimento de nós mesmos, dos outros e do mundo ávido de maior realidade e verdade: no acto de imaginá-las, inventamos, assim suportando a existência, em simultâneo opaca e fulgurante.
Terá sido no culto da memória, do saber, na ânsia de conhecer o outro, ainda que longínquo no tempo e no espaço, pela investigação, contribuindo para a história crítica textual, para a fixação do texto, afinal, que, desde o romantismo, a figura romântica por excelência, a ironia, auto-reflexão, levaria a que se desenvolvessem poéticas explícitas, manifestos, programas. Em dada altura, legitimada a palavra poética, torna-se ela própria filosófica, levando a uma “idade dos poetas”, em que a filosofia e a poesia se tornam indiscerníveis. Na referida idade dos poetas, Holderlin, Mallarmé, Rimbaud, Trakl, Pessoa, Maldelstam e Célan –, coincidente o seu fazer com uma dada fase da filosofia, «a poesia deixava de ser tão só um pensamento, instruindo uma verdade, pensando embora esse pensamento».
Encurtando razões, verificar-se-ia a reversão de lugares entre a crítica e a literatura, num processo mimético, numa mistura de liberdade, conhecimento e fruição, levando à necessidade, o que obriga à arte de ler devagar, profundamente, voltar atrás; e sempre se intenta combater a subordinação dos estudos literários à realidade histórico política. A literatura parece tornar-se coisa do passado, com a função de um arquivo, e os arquivos são álgidos, deixa de ser pertinente a função. Será então que a História se torna um obstáculo ao esquecimento, «um grau de insónia do sentido histórico que prejudica o ser vivo e acaba por aniquilá-lo», no dizer de Nietzsche. Daí o negar do estético como fundamento de uma arte da escrita que distinguiria os textos literários dos outros, corroborando na tendência para a imposição dos mass media como paradigma cultural dominante, pelo que os estudos humanísticos poderiam concorrer para a teoria, pela questão filosófica e existencial do sentido, modos particulares da significação do agir na linguagem. O imaginário é por natureza difuso, apto a originar uma multiplicidade de formas. A experiência estética está mais próxima do imaginário do que a interpretação, possibilitando que o texto seja sentido tal como «nós somos», se enveredarmos pela antropologia filosófica, desenvolvida uma relação de participação e recusa, levando à contestação.
A juventude letrada não é parva, antes iludida, embora convicta de que nos pisca o olho, como que a dizer, «ó pr´a mim, que esperto sou!» E todos somos muito, muito espertos! A intenção do autor é sempre decisiva, no entanto, para a interpretação, o uso livre nunca é inteiramente livre, o poiso passado do leitor ou de quem escuta já impôs limites à capacidade de imaginar.
Caiu o desabafo da parvoeira qual sopa no fel, quase um acto de “abdução criativa”, ao encontro de Umberto Eco, quando discorre sobre o discurso homólogo da realidade: as conjecturas podem ser falsas ou verdadeiras, mas isso não tem implicações directas quanto ao valor da verdade, ou ao sentido. O que quer que se crie não pode limitar-se ao previsível sobre o que for. Tem de descolar da realidade, e é então que a «abdução inventiva» pode fazer sentido, alterando a realidade pela projecção de um desejo frustrado, projecção de largo espectro, por infelicidade de tanta juventude iludida com o mundo. Afinal, existem vampiros, não os que a levam em atropelo para as salas de cinema, de olhar sorna e canino retráctil: estes mordem qual lobo despedaçando, são o próprio medo de viver! Que parvos têm sido.
É bem verdade que algo pode “entreter” a razão; o destinatário, face à manifestação linear, preenche-a de sentido, conferindo-lhe intenção, tal é uma constante. «Que parva não sou!» Se o sistema se desenvolve em conceitos, é numa pura imagem que ele se comprime, quando empurrado para a intuição de onde provém.