«A maravilhosa intuição é que por vezes nos vale para arrancarmos um pedaço ao desconhecido»
Raul Brandão in Memórias
O sentimento da solidariedade universal, a capacidade de sacrifício por amor ao outro, vectores fundamentais já nas memórias da infância (1), esta a confundir-se com uma memória ancestral, parecem ter contribuído desde sempre em José Saramago escritor (uma vez que exerceu outras actividades) para o que Bachelard designa «arquétipo comunicável», ao longo da obra e até ao último livro, Caim (2), paradigma que abrange de igual modo o gozo e o dever intelectual de leitura e divulgação do texto alheio, acto em que também está presente o sentido profundo da fraternidade humana, por esta via me aproximei, pela palavra, de José Saramago, de tantos outros autores. Não pretendo com isto dizer que um escritor deva mortificar-se pelo semelhante escritor, dando-lhe a sua energia em detrimento da própria actividade da escrita. Mas estamos certos de que José Saramago se revia, apesar de tudo, na face humana do Criador, logo no semelhante, incluindo-se no populoso rebanho: nunca lhe pressenti o gostinho de colocar-se à margem, por imaginar-se especial. Desdém? Ah, por certo o terá experimentado, ainda andam por aí artífices da escrita que o subestimavam, há mais de duas décadas, e continuam impregnando as linhas do texto de ódio baço, de rancor pequenino, como alguns deles: cansados de tentar emudecer uns tantos que, afinal, se não calaram, confessam, depois de o bajularem em vida, que as credenciais do Nobel português teriam caído melhor noutro ou em si, evidentemente, pois consideram que entre si e esse outro, em quem teriam assentado muito bem, a distância não será nenhuma; inventa-se até heterónimo predador e narcisista, uma espécie de ventríloquo, o vício do elogio é destruidor! Em antropofagia sacrílega tentam ridicularizar ícones da literatura, invadem a cena em arlequinadas a atingir autores que o tempo levou, não mortos, muito pelo contrário, poupados alguns vivos, por conveniência.
Elevemos, apesar de tudo, o olhar para Claraboia , o texto ainda entretecido do eterno fio da infância, com o qual Raul Brandão constrói a teia luminosa que seria dele e nossa, do humano, logo de José Saramago. Surge o livro quando desaparecido o Autor, aparece indefeso, desafiante todavia: afinal, qual a função da Literatura, nos anos 50 ou hoje? Retratar o comportamento absurdo do homem, apelando a uma realidade onde se reflictam valores éticos que o dignifiquem e o estimulem à liberdade de agir. Na época em que foi escrito, a literatura implicava o compromisso obrigatório com questões sociais e políticas do tempo, por parte de cidadãos e escritores, pelo que as suas obras deveriam produzir um efeito de empenhamento nos leitores, afinal o neo-realismo pretendia retratar a vida sem disfarce qual estandarte de sonho. Hoje - que já nem sonho há para sonhar -, o pesadelo em contínuo, pelo que volta a interessar o cerne da questão, de tal não duvidamos, ainda que por aí circulem nefelibatas retardados, a estupidificar o público, exaltando a vacuidade da vida.
Publica José Saramago o primeiro livro em 1947, o segundo, «Manual de Pintura e Caligrafia», é de 1977. Em 30 anos, vai fazendo a mão, escreve versos e crónicas. Em 1980, publica «Levantado do Chão». Após quase duas décadas de labor incansável em que a sua Obra adquirira notoriedade, recebe o Nobel, em 1998, o Autor já em Lanzarote.
Cerceando opções estéticas, não será menos verdadeiro que em «Claraboia» se percebem laivos de torrente luminosa, dali a décadas: determinado processo alquímico transformaria um pedaço do céu no universo. À luz de Clarabóia, percebemos o Nobel, em fragmentos: «O tempo fluía lentamente. O tiquetaque do relógio empurrava o silêncio, insistia em querer afastá-lo, mas o silêncio opunha-lhe a sua massa espessa e pesada, onde todos os sons se afogavam. Sem desfalecimento, um e outro lutavam, o som com a obstinação do desespero e a certeza da morte, o silêncio com o desdém da eternidade». A crueldade dirigida, a ironia que ressoa pelos patamares do prédio, narradas vicissitudes do quotidiano, são as mesmas que encontraríamos em obras ditas maiores, em transformação profunda. Quem tiver conhecido José Saramago através de décadas, percebeu bem essa transformação, a fluência discursiva, a elegância natural eram, por assim dizer, um, como Walter Benjamim manda que sejam a ética e a estética, que também ali moravam.
Quererá isto dizer que tais virtudes feneceram, que a Literatura portuguesa decaiu com a sua ausência? Que o seu nome, enquanto talismã, assegurará alguma coisa? Acredito que não. Ele foi o Nobel, nós somos nós, uns mais talentosos ou mais trabalhadores que outros (uma coisa anda ligada à outra, o talento é também trabalho, a vida a escoar-se nele).
Todavia, entendo que o facto de certo editor se ter esquecido do texto - de sua natureza são distraídos, existe livro glosando a sina de manuscritos surgindo qual fantasmagoria, surpreendendo o seu autor - foi um benefício para José Saramago, pelo simples facto de o ter deixado livre para entregar-se, muito mais tarde, ao labor ficcional, escrevendo a sua Obra: a não ter sido assim, seria hoje talvez um epígono de neo-realistas fundamentais, na prateleira das bibliotecas, em vez de um Nobel. Mas quem garantiria ao ainda jovem Saramago uma vida longa? O tempo, afinal generoso, permitiu-lhe essa coisa rara, não sei se única, de alguém que interrompe o fluxo do dizer durante décadas, adquirindo tarimba, autoridade intelectual, sempre despretensioso, ou bastante inteligente para aparentá-lo, recordo-o no lançamento de uma das suas obras, no Porto: a atenção reverente às palavras de Óscar Lopes era a mesma desta vossa amiga escutando o mesmo Óscar Lopes; ele, Saramago, ainda não crescera tudo, eu continuo ínfima.
Li «Claraboia» num misto de sentimentos, pressente-se no livro uma qualquer coisa que não constitui mistério, pois sabemos a magnífica sequóia que entretanto se formou, mas a inquietação do escritor que começa está ali, pondo à prova o equilíbrio, experimentando as vozes do mundo, o portentoso mundo: «...Tenho vinte e oito anos, não fiz o serviço militar. Profissão certa não a tenho (...) sou livre e só, conheço os perigos e vantagens da liberdade e da solidão e dou-me bem com eles (...) As minhas recordações de infância não interessam para aqui, até porque ainda não sou bastante velho para ter gosto em contá-las (...)» Na música, aperfeiçoara o ouvido com Beethoven; em Diderot e Eça tacteara a transgressão; em Shakespeare, que tudo ensina, encontrara a natureza humana.
Ainda na sua génese, o Autor era já fascinado pela "ira divina" e Abel nome de personagem, o tal rapaz de vinte e oito anos: Abel, corpo de delito, no último livro, «Caim». Existirá fatalidade intrínseca na obra dos escritores, para além da vontade, alguma coisa mais poderosa que, emergindo do âmago, do inconsciente, decide da obra? Recordar-se-ia José Saramago que dera esse nome a uma personagem - o seu alter ego -, em "Clarabóia", já em diálogo com um sapateiro sábio, em casa de quem alugara quarto, com ele conversando, afinal, pela Obra adiante, misturados à «admirável Sociedade que a tudo provê! (...) Mãe amorável és tu, oh, Sociedade!», em panegírico do mesmo Abel?
Considerando a memória enquanto registo poderoso de frustrações, traumas, destinados a motivação criativa futura - assim a vejo, pois acredito que nada se perde, tudo se transforma, criando -, poderemos concluir que José Saramago não traiu o idealista e comprometido Abel ansioso pela transformação do mundo - que afinal se degradou, e muito, mas já não poderá comprová-lo: a melhor entrevista do nosso Nobel até 2050, pelo menos, quem saberá se o único, seria talvez a que poderiam ter-lhe feito, a entrevista total, se publicado mais cedo Claraboia, este fecharia afinal a obra sem a beliscar, pois espelha outra geração literária, embora o empenhamento político seja uma evidência, ao longo dos textos. Assim, enquanto patamar primordial, certos embora que Diógenes e a sua candeia, o semeador por excelência da rebeldia, há-de iluminá-lo, permanecerá este livro talvez desgarrado da obra, beneficiando do prestígio do Autor e de constituir um documento lírico, ao conjugar a estratégia do documento social com a da introspecção subjectiva das personagens, para gerar no leitor a preocupação com questões de ordem social e política, um pouco ao modo de Graciliano Ramos - agrada-me Claraboia com parentesco no Brasil, ali amam deveras Saramago -, pela quase imparcialidade, a empatia endereçada a Silvestre, o sapateiro, inquilino do rés-do-chão, embora se perceba quais as personagens com quem simpatiza; e com algumas é cruel, sobretudo com as mulheres, desconheço os seus modelos femininos na época. Todavia, José Saramago transformou-se de tal modo, que o próprio definiu, nos seguintes termos, o texto afinal póstumo: «É a história de um prédio com seis inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo. Acho que o livro não está mal construído. Enfim, é um livro também ingénuo, mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser». Notem o seu cuidado: quem falava era o homem despretensioso, mas consciente da responsabilidade de ser o Nobel de Língua Portuguesa.
Apesar de ninguém ser eterno, certas ausências acabrunham, para além de sentirmos a falta da inquietação que a edição dos seus livros implicava, pela positiva ou pela negativa, arrancando o país da modorra, arranhando a vaidade dos mesmos, e até a esses fará falta, pois os empurrava para a escrita... Os «inimigos» contribuem para a obstinação; os amigos, que sempre elogiam, pela estima, permitem momentos de entrega à simplicidade, à descontracção, mas o escritor permanece barricado no arsenal discursivo.
No mundo da Literatura Portuguesa - apartando novatos com vícios inerentes aos mais velhos e sem obra que se veja -, há quem pretenda vencer a contenda elevando-se em falsa contenção ou evidenciando avidez indisfarçável, estimulando alguns sacristães de serviço: querendo dar um ar da sua graça, embasbacados pela «ansiedade do conhecimento» em milhares de caracteres, lançam-se em panegíricos repenicados, quando a dita ansiedade ficou lá atrás, no acto de pesquisa e de selecção de materiais, pelo Autor, durante a produção do texto exigente. Agonia de conhecimento, isso sim, a de quem se escusar a procurá-lo pelos seus meios, atolando-se no melaço, caindo de cabeça no pote.
Actualmente, só entendo profícuo o texto trabalhoso, segundo as capacidades de cada qual, num ideal humanista, pois lhe está inerente o sentido universalista do «Não!», levado a horizontes mais longínquos, ao coração dos homens e povos que, no silêncio e na agonia do seu mais vivo e fundo anelo, sofram a dor da opressão. Esse grito, eco de um Prometeu humanista - e no aqui dito não traio os ideais de José Saramago, muito pelo contrário - que rouba aos deuses para entregar aos homens, dar-nos-á uma nova e íntima luz, a sua «esperança imorredoira», em si, nos homens e na vida. A liberdade obtém-se pela esperança. E se a intenção da escrita for de outra ordem, não valerá a pena: o mundo, atribulado, não necessita de egos doentios, malbaratando o que jaz no arquivo da memória dos homens! O mundo soçobra em dor, novo paradigma pode conduzir a um estado das coisas que supusemos vencido, e tudo terá de ser refeito, durante anos e anos! E apesar disto, intelectuais patéticos continuam sentados no rebordo do lago, imitando Narciso. Desejo-lhes o mesmo destino.
No monumento da criação, é urgente uma clarabóia que nos proporcione fragmentos de céu limpo de nuvens, um instante redentor. Num mundo atribulado, repito, teremos de imitar a filantropia de Titã que, no dizer de João de Barros, sonha esse instante em que, partidas as algemas, trará de novo aos irmãos homens o perene alvor da Inteligência. Sobre tal alvorada devemos debruçar-nos, quando produzirmos os nossos textos: a finalidade do escritor não é a exibição farisaica, mas continuar atento ao mundo em risco, a História - e a actualidade - não podem nem devem alterar-se para satisfazer o enredo, sequer o dos dirigentes do mundo, como se a destinássemos a imbecis. A imparcialidade é impossível! Vá lá, lancem-se na inquietação construtiva! No vestíbulo do intelecto, no campo limite da realidade exterior e da consciência interior, encontraremos o conhecimento limitado pela irredutibilidade das sensações umas às outras, e das sensações às ideias. Afinal, se o leitor se vir privado do futuro narrativo, isto é, do «e depois», excepto aquele futuro que o próprio leitor estiver preparado para criar, em textos narrados no tempo presente, deixados os tempos subsequentes fora das páginas do livro, estes tornam-se necessariamente obras abertas, usando a terminologia de Umberto Eco. Tal abertura inclusiva ajudará a criar um efeito de empenhamento, especialmente se a dinâmica textual exigir uma resolução que o próprio texto não fornece. Modo de narrar subversivo, talvez. E subversivo sempre o foi, José Saramago.
Vejam o que Claraboia iluminou: tudo depende do olhar que dirigimos aos textos, estes podem ser, se o merecerem, a luz inundando a vida ou o desejo de ver resolvidos os problemas do universo da ficção, enquanto retrato de vida real.
«À memória de Jerónimo Hilário, meu Avô», lemos em dedicatória acrescentada, creio, pelo próprio punho do neto, o Nobel José Saramago. Logo, aceitemos que esta foi a última frase denotando, para sempre, a fidelidade à raiz.
Permanecem vivos os que continuam no coração do mundo.
Entre Livros:
(1)«As Pequenas Memórias», 11.11.2006
(2)«Caim», 17.10.2009
JN, «Notícias Magazine»:
Nos anos 90, no Notícias Magazine, «O Evangelho segundo Jesus Cristo» e «Que farei com este Livro?» (teatro).
FC.