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Índice:

72 - O grito da garça

71 - MORTE EM DIRECTO, NÃO!

70 - ALEA JACTA EST

69 - CONFRONTO – Porto 1966 – 1972 – Edições Afrontamento

68 - PARVOS NÃO, ANTES CRÉDULOS

67 - DA PERTINÊNCIA & DO ABSURDO

66 - MORTINHOS POR MORRER

65 - VENHA BISCOITO QUANTO PUDER!

64 - VERDADE E CONSENSO

63 - LEAKINGMANIA

62 -SESSÃO DE LANÇAMENTO NA LIVRARIA BUCHHOLZ

61 - UMA APAGADA E VIL TRISTEZA

60 - IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS

59 - NO DIA DE PORTUGAL

58 - FERREIRA GULLAR- PRÉMIO CAMÕES 2010

57 - BENTO XVI - PALAVRAS DE DIAMANTE

56 - O 1º DE MAIO / LABOR DAY

55 - BULLYING E KICKING

54 - O AMOR EM TEMPO DE CRISE

53 - FÁBULAS E FANTASIAS

52 -THE GRAPES OF WISDOM

51 -Do Acaso e da Necessidade

50 - deuses e demónios

49 - CAIM ? o exegeta de Deus

48 - Os lugares do lume

47 - VERTIGEM OU A INTELIGÊNCIA DO DESEJO

46 - LEITE DERRAMADO

45 - Casa de Serralves - O elogio da ousadia

44 - FASCÍNIOS

43 - DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES

42 - TOGETHERNESS - Todos os caminhos levaram a Washington, DC

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - ?I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil?

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN ? Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL ? OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES ? Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz-te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA ? O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implicauma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezesda actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todosos acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivasem que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma práticajornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectivacultural especifica ou informativa, numa área não suficientementerígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        2011-05-21

O grito da garça

Profª Drª Telma Mafra (*)

(Facultado pela Professora Doutora TELMA MAFRA,
a quem agradecemos,
é com muito prazer que divulgamos esta sua análise
sobre O GRITO DA GARÇA,
da nossa colaboradora FILOMENA CABRAL)
A direção da UNICEPE,


“Os mitos são como a Fênix,
renascem. E poderíamos renascer
sem morrer?”

(Filomena Cabral)



O Grito da garça é a primeira publicação dramatúrgica de Filomena Cabral. No entanto não é esta a primeira intenção da autora em imergir no universo do teatro. Em 1985 escreveu Tarde de mais Mariana, que inicialmente seria um texto para figurar nos palcos. Acabou, no entanto, modificando-o e publicando-o como romance. Eis então que, quase duas décadas depois, a autora - filha da “ousada gente”, como aclamou epicamente Camões - surpreende o leitor, publicando uma dramaturgia em meio aos seus muitos romances, novelas e textos poéticos. A ousadia referida à Filomena Cabral justifica-se pelo fato de estarmos diante de uma criação que é, ao mesmo tempo, metateatral, historiográfica, literária e mítica.

O enredo, como a própria autora aponta de início, trata do processo de criação – e das dificuldades que isto envolve – de um jovem dramaturgo, Raul, que busca escrever um texto o qual atribua um novo tratamento para o amor:

          A representação transita entre a actualidade e a Idade Média. Um jovem escritor deixa-se obcecar pela idéia de debruçar-se sobre a fatalidade no Amor. (...) acaba por escrever sobre ‘o mito amoroso português’. (CABRAL, 2001:091)


Com essa citação, que aparece já na primeira página da obra, Filomena Cabral oferece ao leitor o leitmotiv da obra, ao evidenciar que o jovem escritor, ao escolher falar sobre Amor, o fará a partir do mito que envolve Dom Pedro I e Inês de Castro. Quando faz essa opção, concede ao amor uma dimensão universal, mítica e transcendente.

A história de Pedro e Inês tem merecido espaço nas mais variadas formas de arte, no decorrer dos séculos. Figura na música, na pintura, na poesia lírica, na épica e no teatro, atraindo a atenção de notáveis autores, como Garcia de Resende, Fernão Lopes, Camões, Antônio Ferreira, Miguel Torga e outros que ressuscitam o mito. A história inesiana comove até hoje, talvez por contrapor as razões do Estado às do coração e pela dificuldade em delimitar o que é realidade e o que é ficção.

A interpenetração entre amor e mito é, nessa obra, não apenas o tema ou o modo de composição, mas também o subsídio para a compreensão das personagens-mito, as quais passam a ser delineadas por seu próprio discurso e por discursos alheios.

Sendo amor e mito a dimensão basilar da obra há aqui uma mitologia do amor ou, caso se prefira, um congraçamento do amor mítico.

Um mito narra fatos importantes e centra-se em um sistema de símbolos e arquétipos, organizando-se, geralmente, em forma de narrativa. Não possui um autor, pertence ao povo e encarna-se na tradição, por isso é incessantemente recontado.

Segundo Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. Essa referência deve-se ao seu caráter de existência e de não existência. O mito é uma vibração mágica, um anseio utópico do que já não é. Assim, vão-se (re) apresentando Inês, Pedro e Constança (a qual sempre teve diminuta participação no mito romântico português, mas que agora, nessa narrativa, adquire firme existência na recriação). As personagens-mito vão plasmando o movimento tendencial do amor, deformando e reformando o mito.

Jamais houve narrativa portuguesa que abordasse relacionamento tão estreito entre Inês e Constança, como o que surge na peça de Filomena Cabral. Constança, assim como Pedro, parece seduzida pela presença da galega aia: “(...)a seu lado, sinto-me humana, viva! Ela sabe fazer-me interessar pelas pequenas coisas. Que estranho! Ouvindo-a, sinto-me quase ansiosa pelo que me diz.” (p. 66).

Depois, quando passam a dividir as atenções do mesmo homem, Inês e Constança são tomadas por um ressentimento mútuo, e seus “olhares nunca mais foram cúmplices”, agora nublados pela imperfeição passional. As personagens passam a se construir a partir da ação arrebatadora das pulsões e das paixões.

Em O grito da garça, Constança, ao fim da vida, perdoa a Inês e a si própria, culpando o fado por iludi-las. Estão agora irmanadas nas mesmas lembranças, nas saudades comuns da terra natal, malfadadas pelas mesmas paixões, arrebatadas pelo mesmo homem.

Constança retira do dedo o anel de ouro e rubis, primeiro presente de Pedro, e oferta-o à Inês. O mesmo anel que firmara o compromisso entre o casal, agora sela metaforicamente a relação entre Pedro e Inês, sob o consentimento de Constança.

Há entre essas três personagens um forte laço, sedimentado desde o primeiro encontro, quando Pedro “confundia a noiva com a aia”, e enquanto colocava o anel no dedo da noiva e olhava Inês, embriagado com sua beleza. As três pontas desse triângulo, em sua paixão, desarticulam o mito. É um novo amor que ameaça o referente, uma vez que envolve personagens duais, fragmentadas, contraditórias, e por que não dizer, humanizadas.

Pedro, Inês e Constança são personagens passionais, engendradores de universos que se atraem e se destroem na chama do amor, que é, ao mesmo tempo, infernal e paradisíaca.

Pedro, nessa obra, é apresentado ao público como uma personagem perturbada, inquieta pela proximidade de Inês, a quem tenta resistir, por Constança e por ele mesmo. Diante dessa realidade, entristece-se e tem dificuldades em não se deixar inebriar pela jovem bela: “(...) a minha carne estremece pela privação, quando revejo a insensata, rondando-me, parecendo sair do próprio fogo” (p.51). Esse sentimento acaba por consumi-lo e ameaça estender-se a outras questões, podendo levá-lo à perdição:

          “No campo de batalha, o braço treme quando a alma é branda, e o meu vai-se adestrando como se na forja fosse. Não é o ânimo que me preocupa, sim o sangue, a latejar-me nas têmporas: sufoco! Impede-me o endurecimento do coração, enterneço-me. (...)A ternura enfraquece a mão.” (p.58)

O sentimento que Pedro cultiva por Constança e por Inês abranda-o. Apenas quando ocorre a morte das duas mulheres é que ocorre aquilo que seu pai, Dom Afonso, prenunciara: “A cólera desvenda o homem” (p. 58). É então que Pedro rebela-se contra o pai, monta um exército e vinga-se contra os responsáveis pela morte de Inês.

Histórica e concretamente, nada se sabe da personalidade de Inês de Castro, além da beleza. No entanto, o mito a constrói, associando-lhe as mais variadas características, de obra a obra. O certo é que Inês de Castro apenas passa a ser conhecida pelas condições trágicas de sua morte, as quais a fizeram sair do anonimato.

Em O grito da garça Inês é envolvente e sedutora, de olhos azuis instigantes, de belo porte e brancura – a que merece o codinome de “colo de garça”. Ardilosa, consegue “incendiar sem arredar-se da virtude”, é sigilosa ,doce, encantadora e orgulhosa. Inês é frequentemente associada ao fogo: “ Pedro entreabre os olhos, tem a visão deliciosa de Inês, manipulando o fogo” (p.41), “(...)Tento distrair-me de Inês em incêndios alheios(...)” (p.62), “(...) (Inês) parecendo sair do próprio fogo” (p.51).

O fogo é um símbolo que se associa ao ato de transcender a condição humana - e ascender, neste caso, à condição de mito. Também é tido como um elemento sacrificial e purificador, como se o Amor/Fogo que consome Inês, Pedro e Constança pudesse salvá-los de todas as suas imperfeições, conforme diz o visitante de Raul, o dramaturgo, “o amor tem um poder transfigurador” (p. 25).

O fogo associa-se ao bem, sendo um calor vital; e também ao mal, sendo um símbolo de destruição. Da mesma forma é o Amor/Fogo que envolve o triângulo amoroso desse texto trágico: o amor eleva, é uma “simples circunstância que nos aproxima dos deuses” (p.85), abranda os corações; mas ao mesmo tempo é “febre, febre devoradora” e leva as personagens à morte e à destruição. Além dessas associações, o fogo também é símbolo da paixão que consome, a mesma paixão que envolve Pedro, Inês e Constança..

A cor do fogo está também nos frutos do laranjal - outra imagem recorrente na peça. O cheiro que daí exala parece afetar a todos, espalhando sensualidade no ar. Dom Afonso diz a Pedro: “o cheiro do laranjal até a mim perturba...” (p.59). Passeios são feitos pelo laranjal e janelas são abertas para que o odor seja inalado, insuflando os desejos já tão latentes. A laranja é um símbolo de fecundidade e conta-se, em uma lenda grega que as ninfas as cultivavam nos Jardins das Hespérides e quem provasse dos frutos tornava-se imortal. É exatamente isso o que acontece com Pedro, Inês e Constança, os quais imortalizaram-se no mito.

Ainda tratando desse enredo mítico, há que se evidenciar a figura de Dom Afonso, pai de Pedro. Descrito como um homem precavido e impiedoso, é o responsável pela morte de Inês, tal qual também ocorre no mito que serve por referência. É um homem previdente, que se acautela sobre tudo o que acontece à sua volta: “ O importante é anteciparmo-nos, em assuntos de Estado e do coração” (p.57). É um monarca intolerante, autoritário e que deve ser temido, na visão de Inês.

Afonso acredita que “todos os vícios são desculpáveis, desde que os misturemos às virtudes” (p.57). É marcado pela cupidez, pela luxúria e pelo ódio. Sua caracterização prepara o leitor, evidenciando uma índole capaz dos atos que cometerá contra Inês, para não colocar em risco a soberania da coroa portuguesa. Na visão de Afonso, “quando está em causa a nacionalidade, justifica-se a guerra” (p.70). Dom Afonso sobrepõe-se ao amor, na defesa da pátria, e só passa a fazer parte do mito porque ordena a morte da “colo de garça”.

Essa narrativa em dois atos exibe vários componentes trágicos (um amor interrompido; um pai que trai o filho, irrompendo em sua casa para matar sua mulher; o coroamento de um cadáver, na tentativa de reversão da perda; a vingança para remediar as injustiças cometidas e para eternizar o amor), mas muitos desses recursos e motivos já se encontravam nos textos em prosa e em verso, que anteriormente trabalharam o mito. No entanto, Filomena Cabral, se não apresenta originalidade no tema, apresenta-a no tratamento que a ele oferece, construindo um expressivo ritmo nos diálogos e entretecendo os tempos e as personagens de diferentes obras dramáticas. Atribui nova exterioridade e profundidade ao mito e, apoiada na tradição clássica, imprime seu estilo de modernidade, ao criar um metateatro.

Em O grito da garça, o metateatro não é tão somente um teatro dentro do teatro, mas sim um recurso narrativo de valorização e de retorno ao mítico. Há várias peças dentro daquela criada por Raul: o enredo de Pedro, Inês e Constança, o enredo de Isolda, o de Celestina, o de Lady MacBeth - são vários os entrelaçamentos, mas uma única busca: a circularidade da ação mítica.

          Por estranha ocorrência – que os criadores são useiros e vezeiros em fomentar -, Isolda surge no cenário, aninha-se no tapete, a seu lado, Raul tenta semi-erguer-se. Receia que o movimento contribua para a desaparição da figura, e logo decide aproveitar a ocorrência: muitos afirmam que os escritores são predadores, ele tentá-lo-ia.


Este é o momento em que Isolda adentra no cenário e a partir daí, passa a travar um curioso diálogo com Raul, o personagem dramaturgo. Entretecimentos de enredos como esse espalham-se pela obra, enriquecendo as informações, agregando visões de mundo, dando conta de fatos de outras época e de outras realidades. Essa mistura de enredos reforça ao leitor a idéia de que os mitos não morrem; ao contrário, circulam à volta, sempre acessíveis àqueles que os buscam.

Com esse recurso, as personagens passam a ter uma maior consciência dramática – a exemplo de Isolda – e considerações costumam ser feitas sobre as fronteiras que delimitam o real e a representação do real – como o faz Raul. É uma manipulação da ilusão.

A metalinguagem tem se tornado uma marca nas artes, por propiciar a reflexividade e o questionamento. Nessa obra, tal tendência é explorada por Filomena Cabral, ao tratar de questões relativas ao teatro e à sua composição: “Enfim, tudo é teatro, até o tempo tem uma arquitetura teatral. Se a autenticidade implica o verdadeiro, a poesia não será fingimento?” (p.26), ou ainda na passagem, “Enfim, seduzir a imaginação, eis o essencial, a cena tem de estar de acordo com a moral do auditório, assemelhar-se o mais possível à vida de todos os dias(...)” (p.25). Torna-se clara a intenção de ser o texto teatral um canal de comunicação entre um enunciador, que é o dramaturgo e um enunciatário, que é o leitor ou o público que assiste à encenação. Esse diálogo reflete sobre as condições de produção e de recepção do texto, questionando a representação do real e a abrangência e importância do mito.

Em O grito da garça há um tempo cíclico, no qual o ato mítico é constantemente atualizado. O espaço deixa de ser físico para tornar-se metafísico, já que abarca o plano da realidade, da história, dos vários mitos e ainda o da música.

Ao longo do texto, a música demarca, por associação de idéias ou imagens, a intensidade do sentimento de amor, de desejo ou de dor. A canção é o tema do Desejo, tomado por empréstimo do prólogo da ópera de Richard Wagner, Tristão e Isolda. Tal escolha certamente se justifica pelo fato de ser esta uma ópera de grandes desejos e fortes sensações.

Ouve-se também, a dado momento, a ária de morte, cantada no momento em que Isolda se debruça sobre o corpo morto de Tristão, na mesma ópera. Na peça de Filomena Cabral é o instante em que surge Isolda como uma aparição, diante de Raul. Vestida com uma túnica medieval, estabelece diálogo com o jovem dramaturgo:

          Devo dizer-te que não entendo este lugar, nem adivinho o motivo que me trouxe aqui: Tristão não és, o barco onde fui rainha e cativa perdeu-se, tal como a guerra, e até hoje ainda ninguém percebeu completamente o drama em que me inseriram: a música é o filtro da morte sonâmbula. Sou, em último caso, uma envenenadora... (p.29)


Raul chama Isolda de “eco da própria voz de Wagner” e afirma que foi o compositor que, em um ato de generosidade, teria enviado a fantasmagoria até ele. O jovem ainda diz que esperava por Inês de Castro e não por Isolda, no que esta lhe responde que teria encontrado com “a colo de garça” no tema do Desejo e que depois a vislumbrou no tema da Traição. Com essas referências, esclarece-se ao público que ambas as personagens foram acometidas pela paixão e tiveram seu destino arrastado à morte, devido a uma traição. Como a própria Isolda afirma, “ambas relembramos tragédias eternas” (p.29).

As duas mulheres eternizadas no mito são cúmplices da mesma realidade de ausência, pois Isolda busca por Tristão, sem encontrá-lo, e Inês foge de Pedro, que a procura com os corações ensangüentados que retirou para vingar a morte da amada. Ambas negam-se às paixões humanas e às inquietações, que são para os vivos, conforme afirma Isolda. Esta ainda diz que agora ela e Inês são apenas “seres de papel ou de sons” (p.31).

As personagens que transitam por essa dramaturgia percebem com clareza as contradições que as aproximam ou distanciam, sabem a que trama pertencem, distinguem o mito do real, conhecem o todo, justamente por viverem em uma supra realidade, que é mítica e atemporal. Inegavelmente, O grito da garça tem um grande potencial para a figuração dos mitos, os quais transcendem a realidade como se fosse esta um microcosmo da junção de todos os planos.

O olhar do espectador incide sobre o torvelinho dos acontecimentos e deve fazer a compreensão do que representa cada órbita, percebendo os entrecruzamentos. Filomena Cabral investe na transversalidade histórica dos tempos e dos mitos, na urdidura das situações narrativas. Para tratar do mito inesiano, apóia-se em personalidades de variados tempos e criações, como Isolda, Celestina, Lady MacBeth e as feiticeiras do drama shakespeariano, as quais tomam por títeres algumas personagens e situações.

Se na história de Tristão e Isolda a poção do amor ingerida por ambos foi o gatilho para o impulso cego do amor, na história de Inês foram os encantos das feiticeiras que causaram a paixão. São elas que ensinam Inês a seduzir, são elas que acentuam em Pedro o desejo, fazem predições para que o mito se cumpra: “Silêncio, o encanto pronto estará! Obra, poder oculto!” (p.55).

As feiticeiras são imagens recorrentes nas artes. Guardam proximidade com Circe, presidindo as metamorfoses - internas ou externas – e alterando a ordem estabelecida. Comandam os elementos e muitas vezes fazem a mediação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Seu poder constrói-se no discurso, revelando-se como palavra-ameaça, palavra-vaticínio ou até como palavra-morte.

Na peça de Filomena Cabral, as feiticeiras deixam MacBeth e introduzem-se em nova cena, propiciando ao espectador um inusitado mergulho no misterioso e no sobrenatural: “Entradas inesperadas em cena. Chegam as três feiticeiras do drama shakespeariano, Raul identifica-as, vira-as representadas noutros cenários” (p.37).

Inicialmente as feiticeiras repetem falas do drama de MacBeth, como se a elas estivessem por demais habituadas ou como se coubessem a todas as tragédias: “Redobraremos de trabalho e de canseira,/ Que o fogo se avive! Que ferva a caldeira/ Espíritos negros, alvos,/ Escarlates e cinzentos, / Misturai com toda a arte/ Mostrai que sois uns portentos” (p.38). Em outras situações, assumem discurso específico a essa peça e ao mito inesiano.

Assim que surgem, Raul questiona o que fazem ali e elas, em coro, respondem: “Obra sem nome!”. Da mesma forma que em Macbeth o discurso das feiticeiras é por vezes ambíguo, aqui também notamos essa qualidade. Ao responderem que farão uma obra inominada, podem referir-se ao fato de serem aquelas que incitarão às ações, sem no entanto cometê-las, ou podem ainda representar a voz autoral, que modestamente considera sua obra pequena.

Curioso é notar que algumas das profecias feitas pelas feiticeiras simplesmente reforçam os anseios das personagens, os desejos que intimamente cultuam, mas que são censurados por contrariarem qualquer ordem que não seja a do coração: “Ele imagina o que pensas; ouve o que irá dizer-te, mas não murmures uma só palavra. Não consente que ninguém lhe dê ordens. Aí vem um poder mais alto que o primeiro” (p.44).

O número três marca a fala das feiticeiras, que também são três, assim como são três os amantes:

          “Somos muito irmãs as três feiticeiras, / da terra e do mar fatais mensageiras. / E dadas as mãos giremos assim / Três voltas por ti / três voltas por mim / Ao dar outras três só nove haverá. / Silêncio! O encanto pronto estará!” (p.43)


Simbolicamente, o número três é bastante significativo. Associa-se às três formas do agir: por pensamentos, palavras e obras. Assim é que as feiticeiras, valendo-se do discurso, lançam seus encantamentos, interferindo diretamente nas ações e no destino das personagens.

O número três associa-se também à composição do homem, em sua divisão em corpo, alma e espírito e às esferas do universo, que classificam o natural, o humano e o divino. As personagens históricas, as fantasmagorias, as figuras míticas e as feiticeiras representam todos esses planos.

Em O grito da garça, a constância do ternário pode ainda fazer relação com os ciclos da vida – nascimento, vida e morte -, pode representar a instabilidade do número dois (Constança e Pedro), pode simbolizar a perfeição do que existe por si próprio - no caso, o amor.

As feiticeiras, sendo três, remetem à lembrança das parcas, que são a personificação do destino. Por origem, o termo parca significa parte - de existência, de felicidade ou de infortúnio. As três fiandeiras de Filomena Cabral, qual Cloto, Láquesis e Átropos, manipulam o fio da existência, de forma por vezes impiedosa:

          1ª Feiticeira
          A tua Constança morrerá, e nem assim Inês o trono ocupará!
          2ª Feiticeira
          A parca avisou, contra o destino não há vez nem vontade!
          3ª Feiticeira
          Alvoroça-te e actua!
          As 3 Feiticeiras
          Tece o mito! (p.63)


Curioso é notar que as moiras, nessa obra, não só tecem o fio da existência das personagens, mas também, ao fazê-lo, tecem o próprio mito. Da mesma forma que manipulam a vida, também manipulam o mítico e o literário, selam destinos, fazem críticas, escarnecem, predizem: “Nem rei nem soldado, sequer capitão adivinham as riquezas que do mar hão-de vir!” (p.71).

Também merecem atenção as indicações de cenas feitas em O grito da garça. As rubricas descrevem o que ocorre em cena, situam o leitor e orientam a atuação. Elas correspondem a um paratexto e podem ter caráter objetivo ou subjetivo. A primeira classificação refere-se à descrição de movimentos, posições e gestos das personagens, Por exemplo: “(...) sentado Jorge no canto do sofá, tomando a cerveja (...)” (p.12), “ Raul (entreabre a janela e volta a sentar-se)” (p.25). Já a descrição de caráter subjetivo atende aos estados emocionais das personagens ou ao seu tom de voz: “Constança (ansiosa)” (p.66), “(hesita entre a raiva e o descaso, orgulhoso)” (p.68). Assim, as rubricas são textos-guia que atendem a ordenações de espaço e tempo, além de dizer respeito à interioridade das personagens e à ambiência das cenas.

Mas nessa obra, as rubricas que realmente despertam maior interesse são aquelas intensamente subjetivas, nas quais Filomena Cabral lança indicações cênicas quase poéticas. É então que as indicações cênicas perdem seu caráter puramente utilitário e possibilita que a encenação ganhe em inventividade: “Desfocagem tênue intensificará a ambiência irreal, da ordem da imaginação tumultuada... Por fim, o sonho sem sono...” (p.28) ou ainda “ No pomar das laranjeiras, o olhar de Inês vai separando as sombras. De igual modo, Pedro.” (p.51). Como representar essas indicações? Como poderia um diretor coordenar essa encenação, tentando atender fielmente ao criador do texto?

Metatextos como esses respeitam a arte da interpretação, na medida em que podem suscitar novos e diferentes entendimentos, a cada leitura. Assim, O grito da garça é um texto dramático carregado de literariedade, mas isso não lhe tira a funcionalidade cênica, uma vez que traz um campo de imagens facilmente materializável.

Outro ponto de interesse em O grito da garça é a fragmentação do mito e também do conteúdo histórico, os quais são apresentados a partir de várias consciências que se pretendem à verdade. Assim, os mesmos fatos em diferentes emoções são relatados por Pedro, por Inês, por Constança, por Afonso – cada qual mostrando o que lhe parece autêntico.

Nessa construção pluridiscursiva, todos dialogam entre si e com o leitor, exibindo um espelho de várias faces. Cada uma das personagens explicita um naco de sua dor, envoltas pelo mesmo conflito. Isso fica claro na fala de Inês, ao confessar-se à Constança, “Eu era faminta, e o lobo não teve compaixão pela vítima, jamais tem. Vós vistes em mim a loba e não o era, e também não fui o inocente cordeiro. (...) Vim para confessar-vos que sofro, que sou mísera, o amor estrangula.” (p.76). Também Constança mostra seus sentimentos a Inês: “Confesso ter desejado tanto o vosso desaparecimento, tanto, que anseio estranho me empurrava com ímpeto para os braços de Pedro. Quem sabe não terão sido os meus filhos gerados na raiva e no desejo por vós...” (p.77). E Pedro também se mostra, “Tento distrair-me de Inês em incêndios alheios, finjo conceder meu favor a outras (...) Tomá-la-ei, cederei ao desejo, quando me for completamente impossível refreá-lo.” (p.62) Afonso, em solilóquio, também deixa ao leitor as suas impressões: “O importante é anteciparmo-nos, em assuntos de Estado e do coração. Terá Constança notado a perigosa beleza de Inês? Não me enganam os olhares desatentos de Pedro” (p.57).

Assim, essa narrativa caleidoscópica, prismática, traz um discurso que só se concretiza no conjunto de vozes.

Na obra aparece ainda uma grande marca de Filomena Cabral, que é o uso da crítica, muitas vezes aliada ao humor ou à ironia. Na obra é possível notar críticas que vão sendo diluídas ao longo do texto, tendo por alvo o comportamento masculino ou feminino, os portugueses, a igreja. Exemplos respectivos estão na fala de Inês a Pedro, “Os homens pouco adivinham, para além da conveniência do seu ardor!” (p.78), no discurso de Inês, ao comentar a história de Castela, “Minha mãe (...) afirmava rindo que quem governa na Península são as mulheres (...) As mulheres acendem paixões e tecem intrigas!” (p.60), na voz das feiticeiras quando profetizam as grandes navegações, “Nem rei nem soldado, sequer capitão adivinham as riquezas que do mar hão-de vir (...) Vivem a pensar em vingança e fornicação” (p.71) e na fala solitária de Pedro, após seu diálogo com o pai, quando fica a refletir sobre seus sentimentos por Inês, sobre a reação de Constança e sobre as sanções sociais: “para além de que teremos a Igreja a vigiar-nos passos...” (p.63).

Na obra, as incitações ao riso apresentam-se ora abertas, ora sutis, por vezes permeada de fina ironia. Esses recursos, acompanhados da crítica, fazem com que a obra transcenda à simples função estética e/ou catártica.

É assim que Filomena Cabral manifesta-se através da voz de Raul, que não conhece o amor e que, portanto, apenas pode falar pelas vozes daqueles que viveram com intensidade esse sentimento, mesmo que pertençam a outros planos e a outros tempos. É um discurso de mescla, em que se faz a cessão de direito de voz, em que se resgata registros anteriores, de fatos, de mitos e de arte.

E é nessa mistura de tempos e de consciências que a autora resgata uma antiga prática da dramaturgia: o coro. O chorós era uma prática usual nos enredos encenados na Grécia Antiga. Por detrás das máscaras, as vozes coletivas ampliavam a ação para além dos dramas individuais, equilibrando as emoções e comentando os acontecimentos. Com a evolução do teatro, o coro passa, por vezes, da posição de voz sem rosto para a de personagem, a qual expressa opiniões, oferece conselhos e levanta questionamentos.

Em O Grito da Garça, o coro vem permeando os acontecimentos, representado pela fala das feiticeiras shakespearianas – e que aqui foram tomadas de empréstimo por Filomena Cabral. Essa fala conjunta torna-se um elemento ativo da peripécia, na medida em que vai anunciando uma nova realidade, um novo sentimento. Por serem feiticeiras – e mito – não lhes falta a consciência da dimensão do conflito a ser enfrentado pelas demais personagens.

Apesar de haver vários episódios de coros, enunciados pelas feiticeiras, é no final da peça que a dramaticidade atinge o mais alto nível, quando o coro passa a ser a voz tríplice de Inês, Pedro e Constança.

Essa proximidade entre as personagens, a qual já se anunciava, primeiro nos olhares, depois nas mãos entrelaçadas, agora dilata-se em nível discursivo. Já não são mais seres únicos e interdependentes. Unidos pelo mesmo amor e pela mesma sorte malfadada, detêm agora a mesma consciência, os mesmos sentimentos e as mesmas palavras. Conhecem universalmente a dor e falam dela ao público, em tom elegíaco, numa interpenetração profunda:

          Não eviteis jamais o tremor que vos agita o peito, ainda que a ingratidão vos leve à mais vil tristeza! No riacho das palavras de bem querer, misturai as vozes. Mergulhai as mãos nessa água pura, nessa água cálida, misturai os vossos ais aos nossos suspiros de amor, mas recordai, sempre, as falas de amor dos nossos poetas maiores! Não são estes conselhos esperados de simples fantasmas, mas, como sabeis, no teatro do mundo, na representação do tempo, nas encenações perversas ou amorosas de cada um, acontece um momento, uma simples circunstância, que nos aproxima dos deuses. (p.84,85)


O próprio coro dos amantes propõe que as vozes de todos os apaixonados se misturem às deles, em sincronia, formando um coro maior, em expressão realmente coletiva. Esse coro assume a função de elemento impulsionador da reflexão e, consequentemente, da emoção.

E então, quem nunca amou, que se imiscua de participar dessa voz conjunta, que se cale diante do sentimento maior, que não pactue das mesmas incertezas, enfim, que se encaixe na mísera condição de jamais chegar a ser mito...

1 - Todos os fragmentos da obra O grito da garça , neste capítulo, serão indicados apenas com o número da página, visto que pertencem à mesma fonte de referência: CABRAL, Filomena. O grito da garça. Porto: Campo das Letras, 2001.

(*)Telma A. Mafra possui Doutorado e Mestrado em Letras (Literatura Portuguesa) - títulos respectivamente obtidos nos anos de 2008 e 2002-, pela Universidade de São Paulo (USP). Essas pesquisas debruçam-se sobre a  contemporânea literatura  portuguesa de autoria feminina e trazem como títulos "Marias e Marianas: relatos de coragem" - um estudo sobre a obra de Filomena Cabral, Maria Judite de Carvalho e as três Marias, autoras de Novas Cartas Portuguesas -  e "O silêncio e a palavra truncada nos contos de Maria Judite de Carvalho". A autora possui experiência de 20 anos na área de Letras, como docente nas disciplinas de Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Comunicação Empresarial. Atua ainda na coordenação de cursos de graduação e de pós graduação, em pesquisa e em iniciação científica.




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