«Amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais agradável,
que todos os homens se irmanem, no suave adejar da Alegria!»
Schiller
O ponto de vista do equívoco é a lei do pensamento e da acção, vigilantes, e ninguém poderá dizer-nos apáticos, sim reivindicativos: como poucas vezes na História, portugueses e restantes europeus, o mundo ocidental tentam não direi entender-se, mas congregar interesses, na intenção de menorizar o prejuízo, a uns cabem mais maçãs que a outros, não por plantio de pomares, mas por estratégia de colecta e cedência.
Sendo que a alegria só é possível entre pessoas que se sintam iguais, toda a infelicidade dos homens provirá da esperança traída, desmotivando-se assim o coro do hino Europeu: permanece o enunciado musical de Beethoven, o estro inconfundível; contudo, as vozes da Ode à Alegria esmoreceram, nada pode imitar o júbilo, e não é menos verdadeiro que processos inconscientes ditam atitudes interiorizadas.
A sabedoria, que emprestou ao mundo social conceitos e instrumentos de conhecimento, permitirá reelaborar capacidades, associar problemas considerados legítimos e dignos de discussão pública. Por outro lado, desde sempre, a delinquência, a educação, a pobreza variaram, segundo a flutuação social do momento. E assim o mundo construía a sua figuração, consciente de uma certa pressão clandestina sobre si exercida, perante os media ou em função de trabalhos de vários sociólogos. Como sair desse labirinto? Não o abandonando, mas como que aproveitando o pretexto para alargar estratégias, sobretudo uma reserva de confiança: desde que atinja a idade da responsabilidade, o indivíduo necessita de esperar o dia seguinte com o sossego mínimo para desligar-se, ainda que por algumas horas, da realidade. A utopia continuaria disponível, qual reserva de ilusão, para um qualquer estado de emergência, pois todos aprendemos, desde cedo, que não é matéria que possa desperdiçar-se.
Chegámos ao final de 2011 em carência incorporada no drama colectivo, e bem podemos indignar-nos, culpabilizar este ou aquele país ou grupo de países, ainda interesses, estratégias, incompetências, que tudo irá desaguar em frustração. A somar a incontáveis dificuldades, instalou-se a ideia, na sociedade portuguesa da última década, de que a restante Europa, a América do Norte seriam inevitáveis, na aplicação de energia e conhecimento de jovens ou menos jovens quadros portugueses. Nos anos mais recentes, era corrente a ameaça de abandono do país - pela falta de oportunidade -, optariam por outros que lhes conferissem, de certo modo, estatuto. Desatinaram, com a declaração do Primeiro-Ministro, Angola, Moçambique, o Brasil - enquanto países lusófonos - poderiam ser lugares convenientes, dado a afinidade histórica e linguística; mitigar-se-ia, em parte, por essa via, o desespero de quadros portugueses, sem colocação a breve trecho.
Vejamos: será desprestigiante o facto de licenciados «excedentários» ali aplicarem, eventualmente, os seus conhecimentos, em prol da consolidação das Letras ou das Ciências, Tecnologia, pela legítima remuneração e possibilidade de progredir na carreira, em vez de lugares similares noutros países? Afinal, nem todos podem ser cientistas eméritos, em universidades emblemáticas, embora tendam a tomar a nuvem por Juno. Logo, animado o Chefe do Governo de certo idealismo, não considerou - e teria de fazê-lo, se foi democraticamente eleito e actuando pelas melhores razões? - quão poucos portugueses vêm, com naturalidade, «estar de novo», ainda que pela primeira vez, na África lusófona. Não ocorrerá a tais seres escandalizados que será bem melhor dar continuidade à energia portuguesa em lugares do passado - atendendo às condições, se favoráveis -, que entregá-la a países chauvinistas; interessa abandonar, sobretudo - creio -, a angústia da incerteza em pano de fundo, sempre, qual pesadelo do quotidiano. Optaram pela indignação, quando, afinal, mais de 100 000 portugueses emigraram este ano e consideramos a perda de soberania, em nome do euro.
Entre as duas guerras, acreditava-se ser em nome da Pátria e não do Estado que se sugeriam à nação testes de serenidade e bom senso. Por ela agia o Estado. O discurso vigente frisava que a Pátria portuguesa não fora o resultado de ajustes políticos, criação artificial mantida pela acção de interesses rivais, sim feita na dureza de batalhas, na febre esgotante das descobertas e das conquistas, do engenho, era o resultado de esforço sobre-humano na terra e no mar, aspecto que desloca o tempo do enunciado, assim as ausências dilatadas (pela emigração), a dor e o luto. Foi gente enérgica a que amalgamou, fez e refez (e continuará a reforçar, no presente da acção) a História de Portugal, aderimos à querela por atavismo, notemos que a história de um povo também se consolida dia a dia, desaire a desaire, e sempre com laivos de esperança. Portugal ainda está a fazer-se, refazendo-se, da descolonização, da unificação europeia, da adesão monetária. Mas cuidemos em não errar o alvo.
Foi, consideremos, na tradição republicana que a ideia de Pátria assumiu um carácter sacralizante, agora bem mais realisticamente diluído, o que não aliena da cidadania, conjunto de deveres que qualificam uma identidade nacional, o «ser português». Ainda saberemos o que tal implica, de tão «europeus»?
«Temos sido, numa palavra, enxovalhados e vexados. Ora, há portugueses suficientemente orgulhosos da sua qualidade de portugueses para sentirem isso como uma afronta pessoal; e para, chegada a ocasião (...) sem exageros, sem agressividade, sem declarar quixotescamente guerra ao mundo, aos países (...) se imporem»; estas as palavras de Salazar (espantosa a sobreposição à actualidade, e no aqui mencionado não se pretende, por óbvio, qualquer similaridade com o momento político, sequer social), no Prefácio de O Homem e a sua Obra, nos anos 30, a caminho da Segunda Guerra, quando a visão da realidade do país veiculada pelos portugueses era marcada pelo universo ruralista - entretanto desaparecido, é uma evidência -, levando a que, fora de fronteiras, Portugal fosse representado como uma grande aldeia, onde o português vivia com «a mulher e os filhos, a velha casa, o trabalho diário, o campo, a horta, o pinheiral». Os valores portugueses, a ideia do «épico» e da «predestinação», a reconstrução do País, a expansão das virtudes da nação portuguesa, através da emigração, eram olhados de modo semelhante ao da antiga colonização, enquanto atributos da cidadania e da imagem do verdadeiro português: a valentia sem alardes, a facilidade de adaptação e, em simultâneo, imprimir no meio exterior os traços do modo de ser próprios.
«Não há dúvida de que o português, transplantado, brilha entre os primeiros nas Academias e Universidades estrangeiras», acrescentava-se. Logo, a ideia de emigração ligava-se ao progresso, já na altura. Não se supunha que o mundo rural desabaria, deixou de trabalhar-se, entretanto, a terra, poucos sabem amanhá-la ou transmitir esse conhecimento milenar; a maquinaria, em si mesmo, pouco resolveria, a terra está morta - dizem os que de tal entendem -, por não produzir há demasiado tempo. Induziram a que não cultivássemos, não pescássemos. Assim fizemos.
Sem dúvida, a emigração, na década de 30, ia ao encontro da modernidade, noutros países, nos grandes centros urbanos onde se fixasse, e ainda hoje percebemos quanto a "terrinha" é importante para quem vive fora, a pátria ainda lhe parece bela, apesar da famigerada aldeia global, que nivelou pela promessa e agora pelo dislate. Como nas paixões infelizes, a ausência dilatada do país, disseminado pelo corpo activo da nação portuguesa, limava arestas - na fase de emigração activa - e tornava a distância menos dolorosa. A afeição talvez permanecesse, mero trejeito sentimental, mas só a presença actua, embora cientes de que a emigração da época, que reproduzia no exterior uma identidade cultural própria, seria hoje impossível: o grande problema era o da adaptação plena, sem tergiversar, a uma realidade, a um modelo alheio, ao passo que, na «aldeia global», desavinda, a homogeneidade é falácia: os que agora saírem, provavelmente não voltam, e muito menos farão de Portugal o seu mealheiro.
Recordemos que, no ano da implantação da República, o número de emigrantes para o Brasil, destino natural da emigração na época, aproximou-se de 32 000, atingindo em 1912 o mais alto nível, cerca de 75 000. Durante a Grande Guerra, verificar-se-ia uma baixa de números, recuperados logo que cessam as questões económicas e de comunicação inerentes ao conflito. Alguns, talvez pensem, lendo-me, que nada disto interessa, e eu fingirei concordância. Todavia, como entender o presente sem cotejar o passado, para que possamos ser justos, antes de mais com nós próprios? Se nos não estimarmos, quem nos prezará?
Todavia, supõem uns tantos - e volto ao motivo de discórdia recente, pois têm sido várias, ao longo de um ano tenebroso - que a tentativa de progredir em Angola ou no Brasil - enquanto exemplos de espaços lusófonos - lhes retiraria prestígio profissional, denotando falta de imaginação, apesar de sabermos que a guerra colonial criou o interdito, no trânsito secular por lugares africanos. Esquece-se ou desconhece-se que foi o ultramar que nos permitiu sobreviver com dignidade, durante a Segunda Guerra Mundial, em relativo sossego, entregando-se até em Espanha produto excedente, o que não ocorria com outros países europeus; e não recorremos ao plano Marshall. Entretanto, teremos sido esquecidos por Mnemosina, a Musa da História, embora acredite que fomos nós a desprezá-la.
Irritados - são tantos os motivos -, muitos de nós, portugueses, vituperando a possível "saída" para a América do Sul, provocámos a terra brasilis. Daí, a advertência: «Não precisamos...» Por que haveriam? Nós somos também o que fomos - e deveríamos evitar o escândalo pela possível travessia, ao encontro de uma solução para a vida, ainda que temporária. O Brasil sempre foi um lugar onde os portugueses puseram à prova qualidades que, a bem da verdade, com tristeza o digo, não estou certa de ainda possuirmos. Afogados em problemas de toda a ordem, na generalidade, esquecemos que o atavismo funciona nos dois sentidos: perante a colérica recusa portuguesa, chegou eco do grito do Ipiranga, após quase duzentos anos. Acho que deveríamos endereçar mensagem amável à potência americana que fundámos e ofendemos, por andarmos desorientados.
Por outras palavras: considera-se prestigiante leccionar ou prestar serviços na Europa e na América do Norte, degradante, se em África ou na América do Sul, até em Timor. E lembrarmo-nos que, há pouco mais de uma década, fomos para a rua protestar pela pressão exercida pela Indonésia sobre a antiga parcela do império, considerada ainda lugar espectral da Língua portuguesa, pugnando pela sua independência! A gesta finou-se? Recordar a indignação patriótica será benéfico, ainda que incomode.
Tornámo-nos um povo imprudente, com a adesão cega «à Europa», onde somos olhados de esguelha, enquanto países do sul. De facto, nas descobertas disseminámo-nos, com afoiteza, quem dera, em dobro, o que esbanjámos então, em energia; no temor da incerteza da vida, a natalidade contrai-se, ai de nós! Por outro lado, as gerações mais novas provêm em parte de famílias cujo trauma continua a ser a antiga África portuguesa, por motivos óbvios, talvez ainda recordados dos problemas da reinstalação em Portugal, de certo estigma, porém, agora, tais dificuldades são as que a maior parte, infelizmente, experimenta. Temem aquele mundo, apesar de tantos africanos palmilhando as ruas, vindos no nosso encalço, com as independências, ou pela guerra civil de Angola; por outro prisma, ainda para formar-se, antigo esse trânsito pelas universidades portuguesas, os Estudantes do Império constituíram-se fundamentais, no estreitar de laços que perduram até hoje e na estruturação de novas nações; do Brasil, ainda no século XVIII, chegavam filhos de famílias prósperas, para frequentar a Universidade de Coimbra, embora no mesmo século XVIII, a «sangria das gentes» fosse denunciada por D. Luís da Cunha. Seria tema de polémica, desde a segunda metade de Oitocentos, nas esferas políticas e nos meios intelectuais.
Mais tarde, restrito o debate aos especialistas, durante a República, ganharia, apesar de tudo, outro fôlego com o novo regime, a partir de 1926. Entretanto vista a emigração como «mal inevitável», são procuradas medidas de controlo, sob responsabilidade da acção governamental. Assim, em 1929, no Congresso das Beiras, o emigrante, misto de vítima e herói, adquire um perfil singular, de destaque, enquanto «representante da Pátria», que lhe era atribuído pelo discurso oficial, problema comum aos restantes países europeus, com as suas colónias de emigrantes no Novo Mundo, destaquem-se as medidas tomadas pela Itália em relação aos denominados «italianos ausentes». Por essa altura, entre nós, o emigrante era o «brasileiro» em especial, pelo que mereciam destaque factos que marcassem a vida da colónia portuguesa naquele país, noticiados no «Diário de Notícias». Em comunicação apresentada pelo Dr. Manuel da Rocha Páris, no Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, realizado já em 1942,o médico e inspector de bordo considerava que os portugueses emigravam «por ambição», «para pagarem dívidas contraídas», «para viverem de rendimentos», ou por que «se aborreciam na sua terra», sendo, por regra, pequenos proprietários, pois «o verdadeiro pobre não emigra». E criticava-se a emigração de famílias, já que a saída privaria «a Nação do seu trabalho». A emigração era encarada como um dado incorporado na realidade portuguesa, coexistindo, em alternativa, o desvio de emigrantes para África, sobretudo na década de cinquenta. Mas, em 1940, nas telas dos nossos cinemas, a película de António Lopes Ribeiro, Feitiço do Império, mostrava ao público cenas ali rodadas, extraídas de documentários realizados pela Agência Geral das Colónias.
Algumas curiosidades:
Determinado folheto intitulado «Informações Úteis», para quem desejasse emigrar, indagava, em 1958, o seu suposto leitor: «Se pretende deixar a sua terra para melhorar as condições de vida de que desfruta, porque não procura tornar-se colono em vez de emigrante?» Deste modo, evitar-se-ia a saída do território português ultramarino, embora o Brasil surgisse como a escolha preferencial, pelo que no mesmo folheto se adiantava: «Mas, os que não estiverem interessados no Ultramar ou não reúnam as condições exigidas para tal, devem pensar primeiramente no Brasil, cuja língua e costumes são os nossos, pródiga aquela Nação em bem estar e riqueza» O Brasil continuaria a ser a grande saída, entre 1930 e 1960, também por motivos políticos.
Se nos voltarmos para a literatura da época sobre o tema, encontraremos Ferreira de Castro, Joaquim Paço d’Arcos, o primeiro debruçar-se-ia para a a própria experiência, na roça Paraíso - ali fora trabalhador -, o segundo, emigrante de elite, denota na abordagem o distanciamento social, embora não deixe de revelar o lado dramático da emigração. Terminada a Segunda Guerra, o Brasil cresceu em estatuto, para ali iria quem não pretendesse tornar-se colono em África. Assim dizia o folheto apelativo à preferência: «Ao Brasil - um dos maiores países do mundo - ligam-nos laços espirituais, morais, étnicos e linguísticos inquebrantáveis (...)». Vejamos, apesar de tudo, como se expressa a personagem do emigrante, em O Segredo do Brasileiro, de Miguel Trigueiros, queixa-se aquela de ter emigrado para o Brasil em 1915, altura em que passara «pelos maiores vexames». E porquê? «Porque nesse tempo ainda não havia um governo português que regulamentasse e orientasse...» E acrescentava: «Uma pessoa quanto mais não seja por brio patriótico, não deve sair do seu país para trabalhar no estrangeiro sem ter a certeza de que vai bem preparado, em instrução, em conhecimento do seu ofício, em disciplina de trabalho, na sua educação geral; a culpa dos males de outros tempos - reforça - não pertence ao povo: pertence aos governos antigos, que não fizeram o seu dever». E interroga: «Você já pensou na responsabilidade que leva consigo um homem que sai da sua Pátria para ir trabalhar noutra?» Acredito que sim, todos o consideramos ainda.
Aliás, a dicotomia que dividia os emigrantes em vitoriosos e fracassados apareceria mais tarde, quer em reflexões e palestras de Miguel Torga («nas estações do nosso itinerário mental, a mais demorada deve ser o Brasil»), que continuava a ser o maior troféu sobre o tema, quer na obra Quando os lobos uivam , de Aquilino Ribeiro, proibida pelo regime.
De nada valeriam, ainda hoje, tropos de retórica sobre a possível emigração portuguesa para a América do Sul de língua portuguesa, continua a ser «terra de promissão» e a memória colectiva é monumental: se lutarmos com ela, ferir-nos-emos; ninguém deve - sem grave dano - tentar modificar o passado. No texto presente, coexistem modos de ver. Vivemos em democracia há trinta e sete anos; o arco do tempo estabelece, apesar de tudo, nexos cruéis e imprevisíveis.
Acreditemos que, no futuro imediato, a fugitiva Alegria retornará, apesar de caprichosa. Aguardemos, confiantes, caros amigos, o suave adejar da exultação: «a ânsia indomável torna-nos errantes».