Fly me to the Moon (...)
Let me play among stars (... )
Fill my heart with love
Let me sing forever more ...
Desdobram-se pela Lua forças virtuais, acreditem, produto de utopias emaranhadas no sonho, tem de existir um ponto de convergência da teimosia falhada de gente desafiadora, à luz da racionalidade pura, suficientemente longe da Terra, para que lhes seja impossível, às utopias, o regresso extemporâneo e perturbador, levariam à incoerência, a inúmeros equívocos; suponhamo-las com a agilidade de Mercúrio, logo com mobilidade exterior ao pensamento dos homens. De Mercúrio a Vénus é um pulo de corça, entre Vénus e a Terra um poema de amor basta, chegamos lá no alinhar de um verso, regressamos no verso seguinte , qual "space shuttle" lírico, em contínuo. O que nos salva, perdidos sempre, é a ironia, caros amigos. Mobilidade essa ainda possível quando da alunagem, todos admirando a calote celeste, redescobrindo estrelas. Com a década de sessenta a terminar - « Fly me to the Moon /let me play among the stars» -, um poema de amor nascia de cada vez que um homem e uma mulher se enlaçavam, murmurando frases sedutoras. O ritual amoroso perdeu-se, submetido à vulgaridade, a sinonímia enredou-se, aviltado o sentimento: foi então que se deixou de fazer amor e se iniciou a experimentação cínica e apressada das emoções.
Quando o homem pisou a Lua, eu vivia em Luanda, junto a um parque luxuriante; a vizinha americana colocara no gira-discos o vinil, a voz langorosa de Sinatra escorria pela ramagem das acácias , faria com que estremecessem, soltassem pólen. Na rua que prefigurava um mapa geoestratégico de interesses futuros, perturbados pela agitação dos donos os cães latiam. O meu "setter" irlandês, de cauda pendente, circulava inquieto, entre o portão e o fundo do jardim, o "grand-danois" do vice-consul alemão, do outro lado da rua, estático, rosnava, fixando o astro magnífico, enorme , qual disco de porcelana translúcida, deixando adivinhar presenças, as dos astronautas. « ... Lhe´stá vendo, lá ... », brincava o criadito africano, indicando o animal. E eu, sorrindo de um modo que já esqueci, olhava o vice-cônsul, que talvez murmurasse, para vizinho ouvir , parodiando Habermas: «Nós, alemães, temos a nossa própria validade, e é esta que devemos ter em conta».
Depois da Segunda Guerra, segundo Rorty, Habermas e outros verificavam que não pretendiam ser alemães, sim racionais. Isto talvez explique, reforçaria Rorty, a razão porque a liberdade é uma noção mais transparente do que a racionalidade:« o que os nazis teriam de errado não era serem irracionais, mas sim não permitirem aos outros terem alternativas ao nazismo». O facto óbvio de que restringiam o alcance da liberdade a si próprios parece-me ser a crítica mais simples e lúcida que poderá ser-lhes feita. «Todavia sobre as responsabilidades globais - reforçaria Richard Rorty, em devido tempo, evidentemente - não vejo como tal nos possa ajudar!» Estava já o mundo dividido em todo o tipo de povos, pretendendo coisas diferentes, e raramente o mesmo.
E insistindo ainda em Rorty, defende o filósofo sobre os direitos humanos universais e o essencialismo, não entender que seja possível ter uma teoria dos direitos humanos universais sem ter ideia do que é essencial para a humanidade. Considerando que os direitos humanos são invenção recente da Europa, uma ideia que tem sensivelmente trezentos anos, e ainda que se restringe a uma pequena parte do globo, não se trata de uma evidência para todos os habitantes do mesmo! Nós, europeus, recomendámo-la a outros, é facto, como que dizendo-lhes:«Tentem, tudo melhorará!», tanto no domínio do progresso como no da justiça, principalmente neste.
Recordemos: há quinhentos anos, não se imaginava uma sociedade justa sem a divisão em três classes, uma das quais era o clero. Talvez fosse falta de imaginação, no entanto como poderiam supor a Revolução Francesa? Daí que seja pertinente a interrogação:«Quem sabe o que a História nos trará?» Hoje, poderemos ainda perguntar-nos: «Ficará alguém para contá-lo?» Que para apagar há sempre alguém disponível,tal a comemoração da Restauração de Portugal, a Revolução de 1640. Parece supérflua a efeméride e talvez o seja, já que Lisboa poderia ser a capital de uma utópica Península Ibérica, Portugal tem o Mar em volta, mestre em cruzá-lo e na semeadura portentosa da estima, ao contrário da crueldade andaluza, resultando daí inúmeras vantagens práticas, nos tempos próximos, até porque Madrid obrigaria a um tgv incessante ( nas calendas, creio); e cumprir-se-ia assim o anseio de D.Afonso V, sonhara unir a Península, permanecendo a Corte em Lisboa, um utopista avant la lettre. Beltrán, segundo parece, impedira D. Joana de ser rainha de Portugal. Ai, Beltrán , Beltrán ...
Que, na altura da alunagem, séculos após, cultivavam-se sentimentos puros de intenções já a tender para o obscuro domínio da traição, em Angola, a conduzir alguns à morte entre nós, os portugueses ali vivendo - e tantos, tantos, por aquela terra fora, de arma na mão, no preciso momento em que a pégada de um homem se inscrevia algures, na galáxia!
Ah, dói-me o peso de lágrimas que recuso soltar; chega uma altura da vida em que homem ou mulher que se preze abandona o choro, comporta-se como quem estando ainda no mundo, seja isso o que for,vai adoptando a expressão dos que já partiram, isto é, nem lágrimas nem suspiros,sim máscara: os risos, cruzando a rua, na noite de Julho, sob acácias, pertencem a uma outra era. Em redor, o perfume e o voltejar do salalé; nós, jovens e belos, tomávamos as rédeas da vida com firmeza, puros, demasiado puros, crédulos. Ainda hoje, alguns pretendemos a bondade, a solidariedade, em diálogo truncado,e sofre-se para dentro, até emudecer. Terá decorrido tanto tempo assim? Não acredito e, em simultâneo, não tenho a menor dúvida.
Quando o homem pisou a Lua, viam-se livros abandonados pelos recantos de nossas casas, nos cadeirões do jardim, lia-se «Tempo para Amar e Tempo para Morrer», «O Muro Branco», de Redol, ainda na memória o exacto lugar onde eu o deixara, na mesinha junto de uma enorme, desmesurada planta - nós éramos os que amavam, os que morriam seriam sempre outros ; ali não havia televisão, daí que todos olhássemos o céu, na circunstância. Cacimbava. Creio que desde essa altura, é nesse muro branco de Redol, qual tela, que eu (entre outros) tenho vindo a projectar fantasmagorias do afecto e do desafecto, das tragédias histórico-sociais. Redol foi o meu primeiro contacto com o neorrealismo (sobre isto falei numa palestra, na Universidade de Assis, durante um Congresso de Língua e Literatura Portuguesa, a cidade de vivendas de um piso rodeadas de jardins, similares a cidadezinhas angolanas, o mesmo cheiro da terra, das plantas, vindo à superfície da memória, quais bolhas sulfurosas rebentando no pântano de emoções putrefactas). Chega-se a um ponto da vida e tudo é dor.
A noite parecera curta, a madrugada avançara, retirando brilho ao satélite devassado. Sinatra, que dera vez aos Beatles, regressara, repetindo o tema, e começara a cansar-nos. Meu filho Pedro, de quatro anos de idade, loiro, lindo, brincara com os filhos de Jude, americana e quase amiga, adormeciam, no jardim, encolhidos numa cadeira de baloiço, cansados de estrelas, estou certa. Alguém, generoso e bravo que partiu há demasiado tempo, recolhera, e o alemão desaparecera da vista. Olhei a rua deserta, com a irmã solidão, o silêncio por fim instalara-se, o que estaria muito mais de acordo com o lugar : nos vastos espaços tropicais, os ruídos da Natureza misturam-se de tal forma que deixam de ser perceptíveis; homens e bichos, no umbral do mundo, éramos afinal idênticos aos do dia anterior e do seguinte.
Na Lua, longínqua, os astronautas, estremunhados, enternecer-se-iam com o planeta Terra, azul, precioso, por longínquo;
era a época do grande debate europeu e ocidental da Guerra Fria, debate decisivo para a sobrevivência da Europa e da democracia. Na Guerra Fria a separação entre políticas internas e externas não existiria, a fronteira estratégica atravessava os Estados e a decisão poderia depender de lutas entre os partidos, enquanto se assistia a uma certa brutalidade, pela necessidade de dar forma a um "partido americano" dirigido pelos socialistas, pelos trabalhistas e pelos democratas cristãos europeus, quando os princípios e a eficácia estratégica exigiam separar águas para demarcar a coligação ocidental dos interesses coloniais: os que liam Raymond Aron iam aprendendo que a pior maneira de tentar moderar o futuro seria proteger os imperialismos do passado. A consciência clara de que tudo estava em jogo, levaria à severidade na análise e à moderação estratégica. Em suma, tentar-se-ia (e ainda perdura) impedir o regresso da guerra total e evitar o suicídio europeu na sequência e só da revolução atómica , obsessão que permanece. A dialéctica entre a guerra e a revolução, a cadeia diabólica das guerras totais eram, então, tema de uma concepção trágica da história do século XX. Recordei neste momento, vejam, a problemática do eterno retorno, a memória é uma armadilha, se bem que «ver a realidade seja a primeira e mais excelente característica do espírito político», no dizer oitocentista, porém actualíssimo, de François Guizot.
O bem e o mal no mundo não mudam de acordo com os nossos sonhos. O mundo tem que lutar contra o mal ( sempre a mudar de reduto), luta equilibrada então, acreditava-se que o pior era possível, mas «nem sempre certo». Agora, pelo contrário, duvidamos é da possibilidade do bem, apesar de o conflito político nunca se basear em causas «puras», as batalhas políticas são «equívocas», elementos imorais são sempre introduzidos. Escolher entre o «preferível» e o «detestável», apesar da contingência, nunca é arbitrário, a isto chama-se «pensar e agir politicamente» ( perdoe-se-me a audácia: não será este o dilema dos portugueses, hoje?) De qualquer modo, dos anos 50 aos anos 70, sob o ponto de vista da força demográfica ou militar, a Europa podia apresentar melhores estatísticas económicas que os Estados Unidos: até ao princípio dos anos 80 era costume falar-se do declínio Americano,sendo que a ideia de «declínio» é relativa e «não corresponde à decadência», definida por Maquiavel como «a perda de vitalidade histórica»; a decadência, a incapacidade das nações saírem da indolência, ao contrário do declínio, parece envolver fortes juízos de valor, aspecto actualíssimo, na segunda década do séc. XXI.
E será o mesmo, este nosso mundo e o da alunagem, em 1969? Sim, enquanto astro, mas de tal modo descrentes que nos interrogamos, em solilóquio, se terá valido a pena essa liberdade poética(quase) de desafiar o infinito.
Porque escrevi este texto? Gosto pouco de desvendar aspectos pessoais. Há, porém, evocações de amor e desespero que, por autênticas e longínquas, nos dão uma vontade irracional de gritar pelo tempo da vida ditosa.
Se conseguirmos levar o próximo a perceber como outras pessoas são magoadas pelo que ele faz ou diz, de modo a torná-lo sensível à existência de modos de ser diferentes - fundamento da educação , ainda que possa parecer supérfluo, pois todos temos ideias, heróis e privilegiamos modelos - escreveremos as nossas histórias ou os nossos romances, ou assumiremos os nossos mitos, de modo a dramatizar as virtudes de seres de eleição. O herói de Platão era Sócrates, o de Homero era talvez Aquiles, mas duvido que haja um critério para escolher heróis.
O meu continuará o de sempre: Portugal.