«Na decisão de agir por dever, é a lei moral que se impõe à vontade. E nisto
consiste, de certo modo, a austeridade».
Schiller
Reflecte a austeridade o poder do indivíduo sobre as suas inclinações ou desejos, o exercício da vontade. Se a necessidade, já no século XVIII, se tornara soberana e a utilidade o ídolo do tempo - lê-se nas «Cartas» de Schiller -, mais uma razão para sublinhar a sua importância. «A arte, de que os Gregos nos deixaram modelos, ajudará os modernos a restaurar a natureza, a renovar os caracteres e os costumes. Até lá, o Estado racional e estético só poderá existir nas almas (... )», frisava. Arrasto para aqui o necessário modelo, não pelos acontecimentos na praça Sintagma, há semanas, mas por um compromisso cultural: somos helenos e renovaremos caracteres e práticas, recuperando a utilidade do belo e da harmonia, a dignidade.
Todavia, no presente, a falsa ideia de transparência associada ou não à austeridade , contenção estóica, terá levado ao conceito de que tudo deverá ser discutido sem reserva, até porque, nos últimos anos, a maior parte encontra prazer no acto de revelar-se, em despudor grotesco do corpo e da alma, patenteando por vezes o vazio que a habita. Cumpre-se, no entanto, o desejo alienante de confesso, não com a humildade do crente, diante do altar, mas na ilusão imbecil de que a liberdade transporta consigo o direito ou o mester de dialogar com o estranho acerca do particular, ou de seleccioná-lo enquanto tema, dando-lhe corpo em palavras e actos: na praça pública, desvenda-se o privado, táctica de aproximação ridícula e pouco perspicaz, pois ninguém deseja rever-se no problema do outro, sobretudo se esse outro está acima na hierarquia social ou política. Perdida a noção do relativo, apela-se ao mimetismo social quando, em boa verdade, no espaço das categorias, tendo em conta a complexidade de relações que estruturam um juízo, se tornarem indispensáveis a referência a um fundamento, o correlato e a representação, remetendo assim para um interpretante, seja quem for.
A opacidade, acredito, deveria ser um direito, sobretudo em processos negociais ao mais alto nível, uma vez que a ânsia ou a ilusão da transparência, a todo o custo, conduz a preço desmesurado: a diplomacia é a arte de persuasão, não conversa de vão de escada; incontestável a utilidade da discrição - embora com prazo quase sempre limitado: nada permanece em sigilo, hoje em dia, perdido o decoro, o buraco da fechadura foi substituído pela teleobjectiva.
A ideia de informar, sem comedimento, retira o direito à reserva, infecta a sociedade portuguesa, incentiva a aversão, o desrespeito. Os jovens de hoje crescem sem que lhes transmitam os limites do público e do privado, do decoro, da respeitabilidade: uma criança tem de aprender que não pode jamais desconsiderar os seus governantes eleitos em democracia, num regabofe alienante dos adultos, estimulando-as nesse sentido. As crianças, os mais jovens não têm critério de avaliação, chegando a ser influenciados, de modo irresponsável, arrepiante, na verdade. Dantes, com as primeiras letras aprendia-se o respeito pelos símbolos nacionais. Agora, em democracia, a ditadura do achincalhamento; oxalá se nos não depare, um dia destes, a bandeira portuguesa em farrapos, por iniciativa perversa, brincadeira, «criancice».
O homem - ser sensível e racional - vive na indeterminação de um composto de espírito e matéria, rondando os limites da «esplêndida inutilidade», que para nada serve, sem função, como que - citando de novo Schiller - numa «agradabilidade imediata (sem conceito) que o belo produz, pela concórdia que estabelece entre as competências, já que, pela sua universalidade, a beleza tem uma estreita analogia com a moral». A esse respeito, Kant é inequívoco: «O belo é o símbolo do bem moral (... ) Por essa razão, designamos muitas vezes os objectos belos da natureza ou da arte com nomes que parecem retirados de uma apreciação moral. Dizemos, ao falar de edifícios e árvores, que são majestosos e magníficos, ou dos campos, que são ridentes e alegres; as próprias cores se dizem inocentes, modestas, ternas» - ilustra; a grandeza de um pavilhão - acrescento -, no plano do simbólico, síntese orgulhosa da consciência nacional. E voltando a Schiller, conclui o filósofo que «o gosto torna por assim dizer possível, sem salto demasiado brusco, a passagem da atracção sensível ao interesse moral, dado que representa a imaginação na sua própria liberdade, condicionando o entendimento ou a relação com ele». Eduque-se então, nesse sentido.
Na hierarquização dos valores, o sentimento pode estar ou não presente, aspecto que levaria Schiller, ainda, a uma notável reflexão sobre estética teórica. O objectivo, ao escrever as suas «Cartas», é mostrar «que as questões estéticas têm um interesse prático, um interesse de actualidade política e que podem servir para a reforma do Estado, contribuindo para a felicidade da humanidade». E por aí se assemelha a Kant: «os grandes valores são o ético e o político; o estético, estando-lhes subordinado, mais não faz do que servi-los.» Visava Schiller resolver «o problema da liberdade política», chegando a afirmar, pela poderosa influência de Kant, que, na decisão de agir por dever, é a lei moral que se impõe à vontade. E nisto consiste, de certo modo, a austeridade.
Para reforçar a austeridade, Platão expulsa da sua República os poetas - nem todos -, sim aqueles cujos modos musicais langorosos «perniciosos até para as mulheres» levariam à moleza e à preguiça; ficavam os que levassem à coragem é à constância, na guerra e na paz. De um certo ponto de vista, Platão parece não ter estética nenhuma: depois de se perguntar o que é o belo - se é o «conveniente», o «útil», o «agradável» -, chega à conclusão de que não é nenhuma destas hipóteses, tal como não é também o «bom». Isto é, parece ser alguma coisa, mas quando se vai a ver o que é, nada aparece, ainda que reduzindo o belo ao bom; sob influência pitagórica, punha a beleza em termos de harmonia. No entanto, a expulsão dos poetas e criadores da cidade reflecte a própria consciência de Platão do seu poder (apetite a atingir vários, em qualquer tempo ou circunstância).
Porém, curiosamente, se atentarmos em Aristóteles, na sua definição de tragédia - já que vivemos num clima de fatalidade -, aquela destina-se, sem dúvida, a «suscitar a piedade e o temor, levando à purificação pelas emoções», o que parece pô-la ao nível da ética. E se lermos a sua «Poética», encontraremos, na substância da obra, os sentimentos, o prazer e a dor, as emoções e as comoções, o «pathos». Acrescentando o «evento patético» à peripécia e ao reconhecimento, assevera: «o evento patético (e tantos têm ocorrido entre nós) é uma acção que leva às agonias expostas em cena (ou num cenário político), as dores lancinantes, as feridas (ainda que sociais).
Todavia, para reforçar o trágico, tornando-o mais intenso, Aristóteles exige que as personagens sejam «amigas», por exemplo «um irmão que mata o irmão». Conclui-se então que o trágico tem elevado custo. E Plotino, por sua vez, identifica o belo ao bem e ambos ao Uno, dizendo-nos que «sem dúvida a inteligência é bela; mas essa beleza é inerte, enquanto a luz do bem a não iluminar».
E nós, em Portugal, circulando numa zona de penumbra, talvez concluamos, parafraseando Plotino, que «a vista jamais veria o sol se não tomasse antes a sua forma; do mesmo modo a alma não poderá ver a beleza se antes não se fizer bela a si própria».
Estaremos assim tão necessitados de um olhar bondoso e justo sobre nós e os outros? De um modo geral, deixámo-nos tomar pelo rancor e, na medida em que execramos tudo e todos, será no espelho dos outros que nos avaliamos. Condenados à prática do estoicismo, a regra do domínio das emoções negativas transformadas em energia, o que remete para a sabedoria, tentemos vislumbrar no horizonte vestígios de esperança - mero recurso poético, aqui e agora: os prodígios sucederam sempre por vontade e engenho do humano, desde a Teogonia, na Grécia antiga, à fundação de Portugal.
Cansados, vogando no incerto, somos, pela inteligência, estóicos, embora a santidade não figure no nosso projecto: recusamos, em qualquer circunstância, o martírio.