Por Filomena Cabral
O TRAMPOLIM DA LINGUAGEM
As últimas semanas constituíram exercício prático esplêndido da memória da história e da força e efeitos da retórica.
Estremecendo a nação por mexericos de ordem político-social, em mescla de ira e troça, desavença generalizada, Angela Merkel decidiu depreciar a Ilha da Madeira, jardim cultivado no Atlântico ao longo de séculos, parcela do território português que jamais foi desdenhada, apesar de desavenças com sucessivos governos; reuniu desta feita consenso: amamos a ilha belíssima, integra o território nacional desde o século XV; preocupe-se o conselho europeu com o primordial. Dispensamos, do mesmo modo, comentário ao nosso relacionamento com Angola, frustrada porventura a Alemanha, desde após Weimar, no século XIX: com a ajuda dos pernambucanos expulsos do Recife, na segunda metade do mesmo século, mantivemos à distância, em África e em síntese, a insaciável gula do povo germânico. No agora da acção, ainda mais unidos portugueses e angolanos, reencontro, de certo modo, entre nós a indignação experimentada por impor-nos a Inglaterra o «ultimatum», ainda que de diferente ordem; a partir dali, tudo mudara. E continuará a mudar.
Talvez o declínio da Europa possa mitigar-se, pelo que nos respeita, enquanto país soberano, dado a percepção internacional do poder económico da potência africana emergente, o nosso bom relacionamento. Mas o mundo nunca se distrai de Angola.
O artifício oratório - muito usado nas argumentações político-sociais - é entre nós matéria de culto, embora a superstição dos números tenha tomado vulto, enquanto nova figura da retórica: a citação estatística, para a maior parte, constitui prova que ajuda a parecer indiscutível qualquer tese a demonstrar.
Nas últimas décadas, temos vindo a assistir ao uso de figuras de retórica que mais não são que desvio, em relação ao discurso funcional, seja recorrendo à hipérbole ou à metáfora, ainda comparações, linguagem mímica, pelo que, na ausência de políticos viciados no "trampolim" da linguagem, quaisquer que tentem dele abdicar, proferindo discurso minimalista, incorrem no risco de causar irritação: um político que use vocábulos singelos, desorienta a polis, prefere-se um parecer, ainda que truculento, provindo de cabeças encanecidas; do mesmo modo o discurso rasteiro - venha de onde vier -, similar ao escárnio utilizado nas campanhas eleitorais, por figuras que ninguém enaltece.
É sabido que o luxo da linguagem, na vida política, não é mais que encontro e desencontro de vários pontos de vista e interesses, arbitrado pela diplomacia interna ou externa, sendo que dentro dos próprios países também os pontos de vista individuais e de grupo variam, daí a existência de partidos políticos, para que a relação de forças possa definir-se numericamente.
Aspecto de grande interesse, mas complexo – convenhamos - fartamente experienciado, em anos recentes em que campanhas eleitorais em cadeia motivaram alguma devastação neuronal. Assim, à mais pequena coisa - tal o stress -, a polis reage de modo extemporâneo. Se, em determinada semana, tivermos sido, como fomos, irritados por declarações menos felizes do poder, estariam criadas as condições para agravar a declaração inesperada do Primeiro-Ministro, adoptado um modo amigável: - «...não sejam piegas...» -, numa frase compósita, toda ela apelando à realidade dos factos; de imediato lhe colaram incomodativa complacência, pela adversidade do momento.
Incorrendo no risco de irritar alguns - estar na arena, ainda que de papel, é não agradar nunca a toda a gente -, enveredo por este texto por considerar estimulante tudo o que reverta para efeitos da linguagem (preferência compreensível) e ainda pela circunstância de considerar não ter o poder verbalizado em excesso, dizendo com naturalidade, na intenção de estabelecer empatia com o auditório. Todavia, quem não teme cordeiros, hoje em dia? Acresce o facto de haver «códigos» que funcionam a determinado nível e são deslocados noutro. Dias depois, alguém perguntava a certo governante: «...Acha que somos piegas?...»; «Claro que não, claro que não!» - respondeu. Sossegaram então, por estranho que pareça, quando, de uma vez por todas, nos vinculávamos, por moto próprio, à pieguice.
Os portugueses não apreciam ser tratados no mesmo plano; nisto terá consistido a omissão do chefe do governo: de um modo geral, andamos afastados da interpretação do logos. Tudo o que seja implícito, ou irónico - o sujeito a troçar de si mesmo, pois se entende enquanto peça do mesmo jogo -, por aqui não vinga, seja no discurso político, seja no discurso literário. Nisto deu a viragem para a tecnologia: despreza-se o subliminar, exalta-se o inócuo, o vulgar, até o escatológico. Se alguém nos pedir para não sermos piegas (termo em desuso, num país de truculentos), não afirma que o somos - pondero -, nem sugere que nos tomemos enquanto tal. Todavia, teria de considerar-se o vocábulo enquanto admoestação, para que se descarregasse a ira acumulada na semana anterior...
A indignação seria aceitável, quanto a mim, se encontrada, de igual modo, na possível restrição das comemorações, ou outros, do 5 de Outubro e da Restauração de 1640; perdemos, é facto, a noção do valor da Independência, talvez desde que passámos a comprar caramelos do lado de lá da raia, mais ainda com a adesão ao euro; para tal concluir, não necessitamos dos pastores de Sá de Miranda.
Alguém esqueceu o modo como nos temos entregado à balbúrdia eleitoral, absolutamente grotesca, aos excessos de ignominiosos «carnavais»? E que isto não pareça cruel: nem todos perseguimos o essencial. Observar cabeçudos nos desfiles, «figuras» obrigatórias, sempre as mesmas, a que se lhes muda, por vezes, a máscara? Desta vez, haverá estreias, mas as preocupações são tantas que, em quarta-feira de cinzas, amaldiçoarão a festa, a pensar nas amêndoas que não podem fruir, obcecados pelo que constitui a preocupação maior, o emprego; no fundo ou à superfície, pretendem alienar-se por 1 dia ou 2, entre 365.
De resto, apreciamos o novo governo; mas, enquanto portugueses, gostaríamos de sentir orgulho de nós próprios, cada vez mais envergonhados pelo pesadelo que herdámos. Fere-nos a imagem de Portugal no mundo, acabamos por abominar toda a gente, desconsiderar até o poder, ainda que eleito democraticamente; problemática a benquerença, na generalidade - até nos respectivos partidos. O que não significa que não se modere a linguagem, entendo que a violência é destrutiva em si mesmo.
O poder só consegue manter-nos refastelados na poltrona - em aparente bem-aventurança -, quando se descreve a si mesmo no passado, em narrativa plena de façanhas políticas e pessoais, como acontece com o Doutor Mário Soares, jamais consensual, ao longo de décadas, e acredito detestaria que assim não fora. Combativo, respeitável, laureado, uma memória viva, ri de si mesmo, protegido pela névoa do tempo, que tudo dilui e submerge. As «pieguices» de Mário Soares, as suas palestras, remetem para situações de um passado político próximo ou remoto, em evocações que nada poderá redimir, constituindo-se «corpus» da história de Portugal, dos últimos 60 anos.
Sempre que vejo e ouço Mário Soares, Adriano Moreira - este admirável sempre e ainda há dias - entre alguns outros de que não arredarei, muito pelo contrário, José Hermano Saraiva - fala-nos da História portuguesa, há quatro décadas -, ao primeiro regressando por ensinamentos diversos, sinto que a minha opção pela historiografia, na criação literária, tem sentido, ainda mais no mundo de hoje, em que somos actores forçados na encenação do mundo.
Por mal nosso, não temos tido oportunidade de afeiçoar-nos aos governantes, a não ser que sejam repetentes – o que, à luz da actualidade, nada parece garantir. Enraivecemo-nos, não com o novo poder, mas com a vida a escapar-nos: nada volta, a distância em relação ao que fomos vai aumentando, tudo se torna ínfimo, como se nada tivéssemos possuído ou edificado, o futuro incógnita aflitiva. Como culpar, no entanto, o governo, por estabelecer corajoso diálogo, procurando entendimento com forças exteriores nada lamechas - a tempo inteiro?
Um léxico pobre, redundante, em que os mesmos termos são usados até à saturação, palavras com efeito pavloviano e restrito, a terminologia repetitiva, como que conduzindo à afasia - pela modorra neuronal - de súbito, sofreu como que sobrecarga, pelo acréscimo de um «termo» a remeter para a infância. Quem consegue ser lamecha em maturidade? Todos nós, uma vez ou outra. Achei graça ao vocábulo inusitado, numa frase ministerial, pretendia-se um efeito óbvio de cumplicidade, apelando «aos bons tempos juvenis», em que nos estimulavam no sentido da coragem: «enfrente os seus medos, não seja piegas...» Ninguém se ofendia, quando a célula familiar estabelecia rotinas de relacionamento caídas em desuso, os mais novos aceitando as normas da educação, do condicionamento familiar, com vista ao relacionamento futuro. Hoje, investe-se na artimanha.
Inconscientemente, ter-se-á agarrado a maior parte ao vocábulo para alhear-se de problemas graves, estratagema comovente do colectivo; em tal recurso não encontrei graça, evidencia o estado emocional caótico que se vive no nosso país.
Terminemos, apesar de tudo, recordando a última palavra de «Os Lusíadas»: «inveja»; permanece viva, em olhares exteriores dirigidos a Portugal, para nossa surpresa e alento. Extraordinário.