«O prémio encoraja e responsabiliza»
José Manuel Durão Barroso
De modo lapidar, o Presidente da Comissão Europeia assim fez a síntese do motivo e da consequência da honra que a União Europeia - 27 países - alcançou num dia a recordar, 12 de Outubro de 2012, precisamente o ano em que se disseminaram tumultos não belicistas mas populares, unidos pelo mesmo motivo: a inquietação do presente e a preocupação pelo futuro. Assim, numa decisão extremamente inteligente - e quem serei eu - decidiu o Comité Nobel considerar países desavindos, unidos pelo infortúnio alguns deles, e todos responsáveis pela edificação do futuro, assim como foram obreiros do passado da Europa, enquanto plataforma originária do Ocidente, que governava o mundo e tinha a sede geográfica da sua administração na mesma Europa.
De facto, a concepção continental e a concepção oceânica não foram exclusivamente portuguesas - se virmos a obra épica de Luís de Camões enquanto manifesto político -, antes eminentemente europeias, com as variantes que a História fixou.
De qualquer modo, o projecto de uma Europa Unida foi o vencedor do Nobel da Paz, grande honra para 500 milhões de europeus orgulhosos.
A inquietação em que tem vivido a comunidade internacional - vítima de contenda em progresso, filiando-se num paradigma sem precedente histórico, o de todos falarem com voz própria na defesa dos seus interesses, dos seus projectos, até das suas frustrações, esquecidas porventura as utopias - talvez seja mitigada por esta decisão «moral e política», a atribuição do Nobel da Paz.
Seguindo um trajecto conducente a um resultado que faria coincidir a Nação e o Estado, as soberanias, na experiência anterior dos povos ocidentais, lidaram com a pluralidade cultural e dramas sofridos pelas minorias, cuja afirmação global seria fixada por Wilson, no final da guerra de 1914-1918, líder do Movimento Progressista Americano eleito para a Presidência, pelo partido Democrata, em 1912, eleição centrada na Primeira Guerra Mundial e subsequentes negociações do Tratado de Paris. O seu slogan de campanha apelava ao não envolvimento na guerra, embora a neutralidade tivesse sido desafiada em 1917, quando o Império Germânico tentara fazer do México seu aliado.
Durante as negociações do Armistício, em 1918, precisamente, emitiria os famosos Catorze Pontos, ou o modo de evitar, na sua perspectiva, outro terrível conflito. Dirigindo-se a Paris, no mesmo ano, ali criou a Liga das Nações, esboçando-se o Tratado de Versalhes, com atenção especial ao estatuto de novas nações emergindo de impérios em declínio. O internacionalismo de Wilson levou os Estados Unidos para a arena mundial na luta pela democracia. Esperemos que assim continue.
Certos aspectos haviam sido obscurecidos à medida que a Europa ia criando um império euromundista que, entre a Conferência de Berlim de 1855 e o fim da Segunda Guerra, 1939-1945, levariam ao conceito do « resto do mundo», posto que habitado por povos bárbaros e selvagens e que obrigara a uma missão europeia: os peninsulares tinham-se empenhado na evangelização, os franceses disseminando as luzes, enquanto os ingleses invocariam o pesado encargo de levar a civilização aos povos que viviam em terras distantes.
Este sistema euromundista - que sofreu uma espécie de fractura com a independência dos Estados Unidos da América - não conseguiu eliminar a competição interior europeia pelo centro do sistema, aspecto que, por duas vezes na mesma geração, atingiria extremos com as chamadas «guerras mundiais» de que ainda há testemunhas, afinal exclusivamente europeias e ocidentais, cujo desejo de imaginarem-se capazes de organizar um futuro mundial pacífico, após o conflito de 1939-1945, levaria à Carta da ONU, em que os intervenientes fundadores eram apenas ocidentais, assim os seus valores e perspectivas, pelo que viriam a ser surpreendidos pela realidade, processos de descolonização considerados na Assembleia Geral até serem maioria, os Estados nascidos do tal «resto do mundo», de onde tinham sido retiradas as legiões do poder colonial europeu.
Um aspecto curioso, embora trágico, seria a leitura e interpretação feita pelos novos Estados dos textos escritos pelos ocidentais que, para além da paralisação do Conselho de Segurança, teve efeito nas guerras marginais, designadamente na Indochina francesa, versão americana do Vietname, na Argélia, nos treze anos de guerra no ultramar português, na Guerra Fria por meio século, finda com a queda do Muro de Berlim em 1989. O desencontro entre os conceitos que sobreviveram à ruína de estruturas políticas entregou a ordem mundial ao equilíbrio instável dos Pactos Militares. Tal não inviabilizou que os valores comuns da Humanidade pudessem ser respeitados, desenvolvendo-se uma linha humanista valiosa sustentada pela UNESCO, pela FAO, pela OMS, que lembram aos governos responsáveis o clamor dos povos desamparados e o apelo dos valores de Cícero, entre os quais o de que «o pensamento é livre».
A linha do poder político ocidental, defrontada com a globalização, viu acentuar a crise dos Estados soberanos, com muitos deles a decair, a solidão rodeando a superpotência sobrante, enquanto a sociedade civil desenvolvia tendências e estruturas transnacionais e transfronteiriças; a opinião pública mundial sonhada por Wilson, na paz de 1918, despontou com a libertação de Timor; «autoridades novas», «o poder dos sem poder» afirmam-se nos domínios da ciência e da tecnologia, da espiritualidade, ou atingem os extremos da «guerra assimétrica», como acontece com os agentes do terrorismo global.
A eficácia da ordem internacional das soberanias até ao esgotamento do império euromundista desactualizou-se, novas propostas doutrinais são frágeis, o tempo exigido pela elaboração científica é ultrapassado, em muitas áreas, pelo tempo acelerado de mudança. Os internacionalistas, desafiados pela referida aceleração, tentam conservar o modelo de ordem secular, enquanto outros apelam à anarquia, sem esperança de organizar o caos. Regressam os mitos raciais que a Unesco combateu, aparecem mitos culturais, provocando o aparecimento de colónias interiores de imigrantes, conflitos internos de alta intensidade, e tensões que apontam para a subida aos extremos da mencionada guerra assimétrica.
«O conflito começa no coração dos homens», convergência fundamentada na percepção da unidade do género humano, a viver na casa comum que é a Terra, e iluminada pela experiência já adquirida de que a paz é indivisível, num mundo unificado pela globalização das interdependências, facto demonstrado em duas guerras mundiais, exclusivamente ocidentais pelas causas e mundiais pelos efeitos hoje chamados colaterais, que atingiram todas as áreas culturais, todas as etnias, todos os lugares da orbe.
No Ocidente, foi o conceito de «nação» que se tornou relevante, mas não aconteceu assim em todo o globo. Mesmo no Ocidente, e não obstante a existência antiga, só no século XIX é que o princípio se transforma numa base da organização política ocidental. Entre o Tratado de Vestefália (1648), em que o Príncipe dá carácter ao Estado, e a Revolução de 1789, que atribui à Nação o poder inalienável de organizar o Estado, é o princípio da autodeterminação dos grupos que se afirma, enquanto princípio fundamental do fenómeno político ocidental. O grupo ao qual se atribui esse direito é a Nação, um conceito fluído mas limitado em termos gerais pelo pensamento de Renan e Fichte.
Logo, o despotismo metropolitano prontamente seria posto em causa pela Declaração da Independência dos 13 Estados Unidos da América (1776): «um povo dissolvia as bases políticas que o ligavam a outro e assumia, entre os poderes da Terra, a separada e igual posição para o qual o qualificam as leis da Natureza e a vontade de Deus». E assim se conectava à política internacional o novo proclamado direito à insurreição, que tornaria evidente, sobretudo depois da guerra de 1939-1945, que a autodeterminação não está necessariamente ligada ao fenómeno nacional.
Se, a partir da Revolução Francesa a autodeterminação ocidental teve como base a nação, o princípio perverso da viabilidade limitaria o rigor da aplicação da regra. A conjuntura internacional de cada época era determinante. Se o Luxemburgo foi viável, não o foi a Áustria durante o período nazi, como a Estónia, a Letónia e a Lituânia foram viáveis no intervalo de ambas as guerras mundiais e deixaram de o ser no fim da última. A viabilidade política, em função da conjuntura, veio sempre limitar o princípio da autodeterminação nacional, assim como a autodeterminação dos povos não precisou de se fundamentar na nação sempre que a conjuntura internacional o exigiu, sobretudo depois do fim da última guerra.
De facto, o conceito nacional, em vigor no Ocidente, oscilou sempre entre um critério subjectivo francês (Renan) e um critério objectivo alemão (Fichte). Se o primeiro apelou para a comunidade do passado histórico, vida em comum e projecto de futuro participado, o segundo, mais ligado à comunidade do sangue e das origens, dispensou a vontade de pertencer à mesma nação e apelou à imposição, embora ambas as orientações convergissem no princípio das nacionalidades, que, no discurso pronunciado pelo presidente Wilson no Congresso, em 11 de Fevereiro de 1918, enunciava: «Todas as aspirações nacionais bem definidas deverão receber a mais completa satisfação que possa ser concedida sem perpetuar antigos elementos de discórdia ou de antagonismo susceptíveis, com o tempo, de romper a paz da Europa e por conseguinte do mundo».
Foi esta concepção que transitou para o Pacto da Sociedade das Nações, na evidência de que era de um mundo governado pelo Ocidente que se tratava, e que a autodeterminação nacional apenas respeitava a ocidentais. Mas assim mesmo, os Estados plurinacionais, as nacionalidades divididas e as nacionalidades inviáveis com independência política nunca deixaram de caracterizar o panorama ocidental europeu. Por outro lado, o movimento das regiões na Europa, mostra que a criação das nacionalidades europeias, obra de Estados centralizadores monárquicos, não foi em muitos lugares inteiramente consolidada, como o vão demonstrando a Espanha, e até Portugal, com os casos dos arquipélagos do Atlântico.
O resultado de tudo isto leva a que o internacionalismo tenda a inspirar outras formas de organização política, das quais aparentemente se vão detectando as autoridades supranacionais ou internacionais, que absorvem parte da tradicional competência dos Estados; pulverização do Estados em regiões com mais ou menos autonomia, constituindo células que podem agregar-se em novas definições políticas, grandes espaços que superam a incapacidade dos Estados - este último aspecto, certamente o de maior relevância - volta a repor toda a problemática da subordinação de grupos culturalmente diferenciados a uma autoridade comum, à margem do fenómeno imperial que persiste. O princípio político e não jurídico das nacionalidades independentes cede perante a exigência da viabilidade de Estado.
A tradição próxima neste domínio tem muitas conexões com a violência, foi esse o caso da doutrina do III Reich, inspirada nas concepções da geopolítica, invocando a legitimação ideológica da desigualdade das raças. A primeira definição formal deste objectivo encontra-se no Programa de 25 Pontos, apresentado em Munique em 1920. Mas foi no Mein Kampf, de Adolfo Hitler, que a doutrina encontrou formulação definitiva. Escreve: «O fim da política estrangeira é assegurar a existência da raça organizada no Estado. Deve haver uma relação normal entre a importância do povo e o seu crescimento e quantidade do solo do território. O povo deve ser alimentado no seu próprio território, e por isso é necessário que o território esteja em harmonia com a importância do povo».
Esta doutrina do espaço vital definia-se em função das necessidades do povo alemão, a expensas de qualquer outro povo, e ao arrepio de toda a doutrina tradicional de fixação de fronteiras. Assim, no «Pacto Germano Italiano», de 22 de Maio de 1939, foi estabelecido que «o povo alemão e o povo italiano resolveram intervir em conjunto para assegurar o seu espaço vital e para manter a paz». A posterior assinatura da aliança tripartida com o Japão, exigiu definitivamente a formulação de uma política internacional que se baseou ideologicamente na teoria do espaço vital e teve como fórmula, a dos grandes espaços. O mundo deveria ser dividido em grandes espaços: dentro de cada um deles estabelecer-se-ia uma hierarquia dos povos abrangidos, assumindo o povo dominante a função de Estado director (é espantoso como as teorias invadem o cerne da questão, o código genético: decorridas décadas, das mesmas regiões continuam a emanar concepções do Instituto da Guerra para a Política e Direito Internacional, segundo a doutrina de Carl Schmitt).
Imaginemos um Estado director, no tratado tripartido entre a Alemanha, a Itália e o Japão, em que a directiva é clara: «Os Governos alemão, italiano e japonês, considerando que a condição primordial da paz durável é que cada nação do Mundo receba o espaço que lhe pertence, decidiram assistir-se mutuamente e colaborar nas suas aspirações relativas ao espaço da grande Ásia extremo oriental e outros territórios europeus; o Japão reconhece e respeita a direcção da Alemanha e da Itália, que reconhecem e aceitam a regência do Japão na criação de uma nova ordem na Ásia.» Isto, hoje, causa calafrios.
Os responsáveis pela doutrina trataram de a aproximar da Doutrina de Monroe americana, que exclui a presença de soberanias europeias naquele continente - Portugal e Espanha, entre as mais velhas e respeitáveis nações europeias, perderam assim os vastos territórios americanos -, e atribui aos Estados Unidos da América uma função de directoria da área, facto que obrigou Roosevelt, em 1940, a encarregar Summer Wells de explicar à Europa que não havia semelhança entre as duas orientações. Mais tarde, ao abrigo da Carta da ONU, afirmou-se que os Estados membros se absteriam de recorrer à força contra a integridade de qualquer Estado, tratava-se expressamente de repudiar a doutrina nazi dos grandes espaços. (A narrativa da Europa é fascinante, um contínuo vaguear rente ao abismo.)
Todavia, a guerra que foi desencadeada contra essa concepção levou a uma paz em que os Estados vencedores, sobretudo as metrópoles europeias, se encontram na incapacidade de continuar a desempenhar, soberanamente, as funções do passado, por terem consumido a própria substância no combate. Esta era a outra face da moeda. Pela tecnologia, a arte de fazer a guerra pelos blocos militares demonstra que a teoria dos grandes espaços tinha passado a ser uma variável na competição de que, felizmente, estamos afastados, sem verba para o combate.
Poderia ter ido por outro caminho - evidentemente - escrevendo um texto pleno de ditirambos, lançando-vos flores, mas preferi parodiar o corvo incómodo, crocitando, teimar em trazer para o presente o passado, enunciando a crueza da memória, dado que o presente é o resultado dele: os traumas do século XX avassalam o sentir dos europeus. Todos fazemos parte do mistério da vida, mas somos diferentes ainda que iguais, o resultado de leituras, liturgias, pensamento, do encontro com mensageiros imprudentes, manifestando-se através dos textos, gerando inquietação bendita. Preconizou Malreaux que o século XX seria religioso, jamais imagináramos que a profecia alastraria, na sua ambiguidade, pelo século XXI, qual chaga pútrida.
A União Europeia, justamente orgulhosa, reparte por 27 países um sorriso incrédulo: o desassossego, a tentativa de superação, desavenças, manifestações das gentes em pânico já deixaram de espantar, magoam, no rosto múltiplo, o de todos, ainda que ali não estejamos. E, no entanto, a Paz, ideal supremo das sociedades, incentivando a fraternidade, entra-nos pela janela, qual luz outonal adeja pela ramagem de tílias, choupos, atinge o verde pino, lenho de aventura cruzando oceanos, levando a matriz europeia para outros continentes, fazendo deles, afinal, aquilo em que se tornaram. O símbolo da Paz, a pomba branca com um ramo de oliveira no bico, enternece-me, nesta madrugada em que, mais uma vez, me fui aventurando na memória dos povos e das nações, memória por vezes cortante, mas fundamental.
Termino, apesar de tudo, com o Ultimatum Pessoano, de que transcrevo fragmento: «Tudo daqui para fóra! Tudo daqui para fóra! / Ultimatum a elles todos, e a todos os outros que sejam como elles todos!» .