«Tudo no Estado, nada fora do Estado, ninguém contra o Estado»
Benito Mussolini
De súbito, nos últimos dias de Verão, neste ano em que o mundo inquieto parece decidido em fazer triunfar o rancor - vejamos os distúrbios no Oriente Médio, e até no Norte de África, o braseiro pode chegar-nos, num ápice, aos artelhos -, a nação portuguesa decide introverter, tomar consciência do estado das coisas, com uma demora de anos talvez, precisamente quando deixou de ter o poder de decidir, persistindo a tarefa mesquinha de cumprir acordos muito para além da vontade individual ou colectiva, impedidos os portugueses de dizer - como se ainda fossemos imperialistas ou colonialistas - «não queremos, não permitimos!», apesar de marchas ordeiras de protesto contra o Governo, reprovando o modo de administração da massa falida. E nada ou muito pouco há-de alterar-se: infelizmente, a nação deixou de ser quem mais ordena.
Os portugueses, tantos de nós, perderam, há décadas, a capacidade - e a vontade - de pensar o mundo e a existência. Se não tivessem, demasiados, feito parte de hostes de má memória dos yuppies & cia., cujos filhos ou os próprios andam por aí, possivelmente, ainda em estratagemas, teimando nos zeros à direita; se não tivessem, tantos, alinhado pela novela da vidinha, contarelos para gente ausente da realidade, produzidos por ignaros escribas veneradores e gratos a um público que aprecia «histórias bem contadas», isto é, que espelhem a vida alheia como se fosse a dele, elevada ao estatuto do literário, textos incapazes de veicular para além do sentimentalismo serôdio, talvez a desagregação do mundo não surpreendesse tanto alguns. Por vezes, o que distingue o literário é uma diferença moral, um motivo profundo de todos os actos de inteligência e de consciência.
Seja em que tempo for, a arte de conquistar o poder é uma arte essencialmente militar, estratégia e táctica de guerra aplicadas à luta política, isto é, a arte de movimentar o eleitorado, qual exército no terreno da competição política. Talvez seja interessante repescar nomes esquecidos, Meinecke, p.ex., e as suas opiniões relativas à utilização científico instrumental de uma ideologia sobre a componente maquiavélica do fascismo atribuída às massas então ditas proletárias, as quais se apoderaram da chave do armário dos venenos - onde estavam guardadas as essências do maquiavelismo que se tornara burguês - para poder apelidar-se de maquiavelismo das massas. Ugo Spirito, no seu Maquiavel, identificava o maquiavelismo moderno com o socialismo, o qual não teria outro fim além do meio: a política. Mas, se atentarmos em Maquiavel, o próprio aparecia como o defensor do príncipe, não seguia nenhuma lei moral, os seus métodos de governo eram o veneno e o punhal, não respeitando a palavra, denotando de imediato a indiferença moral como factor político do poder.
Não digo que, enquanto portugueses, nos tenhamos tornado florentinos, Maquiavel não desprezaria a moralidade como factor de soberania: só considerava irrelevantes a autenticidade ou a falsidade do carácter, a concordância ou a discordância entre a fachada moral e os sentimentos pessoais de quem os ostentava. Os sentimentos, na medida em que são socialmente irrelevantes, também são encarados com indiferença por Hegel, tidos como impotência da individualidade particular, e, para Nietzsche, como irrelevância da pura interioridade. Maquiavel, para o qual a fundação de uma boa ordem social é o fim supremo do agir histórico, julga os caracteres a partir da sua relevância política, e não a partir da moralidade subjectiva.
Ora o ponto de contacto com a actualidade portuguesa talvez seja, precisamente, a relevância política e não a moralidade subjectiva: é por isso que o maquiavelismo implica um governo fortemente centralizado. Aliás, o próprio Napoleão teve a preocupação de reconstituir a ordem burguesa depois da desordem revolucionária, para inspirar a segurança que o povo tinha perdido, e, quando alcançou tal objectivo, foi abandonado pela burguesia de que tinha sido o instrumento.
Assim, num espantoso livro, «Técnica do Golpe de Estado», Curzio Malaparte, quando aborda o discurso de Napoleão, fala dos «erros», de «obstinações» e das «dúvidas» de um homem do século XVIII, que tivera de resolver problemas novos e delicados, problemas complexos, do Estado moderno. O mais grave destes erros observa o autor da Técnica, foi ter baseado o plano do 18 Brumário no respeito da legalidade e no mecanismo do processo parlamentar que o revelaram sensível ao povo, nas suas difíceis relações com o Estado.
«Apesar dos erros de concepção e execução», escreve Malaparte, «o 18 Brumário continua a ser um modelo de golpe de Estado parlamentar: a sua actualidade» - e ele reportava-se aos anos da proximidade da Segunda Guerra Mundial - « consiste no facto de que na Europa moderna não pode dar-se nenhum golpe de Estado parlamentar sem erros de concepção e de execução». Seria o caso de Primo de Rivera em Espanha, Pilsudski, na Polónia, e doutros. Era uma Europa que lutava pela sobrevivência do Estado parlamentar (liberdade e democracia) contra os adversários declarados, porque, ao lado dos fautores de uma política de equilíbrio interno (embora os conservadores fossem dos liberais da direita aos socialistas da esquerda), também existiam partidos que consideravam a questão do Estado exclusivamente na perspectiva revolucionária. Eram as formações partidárias da extrema direita e da extrema esquerda.
Os primeiros, que encaravam o Estado como valor único e primário e o seu absolutismo como função centralizadora do anti-liberalismo e da função autoritária da anti-democracia, só viam os perigos que podiam causar a este Estado a desordem, a debilidade do governo, a incapacidade dos funcionários irresponsáveis, enquanto a possível defesa da liberdade estava na ordem, ou antes, o conceito de ordem estava ligado ao da liberdade, no momento em que era uma garantia contra a ameaça totalitarista. Como exemplo desta tese, Curzio Malaparte referia a afirmação de Mussolini: «Tudo no estado, nada fora do Estado, ninguém contra o Estado». Pelo contrário, a esquerda, tinha como objectivo final a conquista do Estado: «onde há liberdade não há Estado.» - frisava Lenine.
O trágico da questão seria que tida como certa a existência de uma táctica fascista e de uma táctica comunista, Malaparte observava contudo não ter ainda concluído se as suas tácticas se diferenciavam por características particulares ou se convergiam em analogias comuns.
Pelos anos 30, aparecem alguns ensaios particulares voltados para a análise de uma Europa revolucionária e contra-revolucionária, escritos esses que conferem a Malaparte (escolhido o pseudónimo literário parodiando Bonaparte) uma dimensão europeia, pela sua posição sempre singular, no âmbito do fascismo. Um dos aspectos sobre os quais se debruçara fora sobre o transformismo parlamentar oitocentista: evidenciando bases, compromissos históricos , alianças absurdas, e os interesses mais descarados - utilizando até documentos da História de Itália, de Croce -, Malaparte, mais una vez, tornava pública a confusão, a desordem, a estupidez que atingia o cidadão na liberdade, na segurança, na substância e na honra, e não hesitava em declarar que o «Governo, ligado ao jogo parlamentar dos compromissos, já não podia tentar nada que não lhe fosse prejudicial».
E assim, tanto Kapp como Primo de Rivera, Pilsudski ou o próprio Hitler, para justificaram a atitude sediciosa, declaravam-se servidores do Estado, quando na realidade eram seus inimigos. Isto porque o seu objectivo táctico era o Parlamento, através do qual queriam conquistar o mesmo Estado, enquanto o poder legislativo, facilmente influenciável - segundo Malaparte - pelo «jogo» de compromissos e de cumplicidades, podia ajudá-los a englobar o facto consumado da ordem já constituída, introduzindo assim a violência revolucionária na legalidade constitucional.
Encarado o Parlamento como cúmplice e vítima do golpe de Estado, o inimigo a combater era a liberdade porque ou o Parlamento aceitava, legalizando-o, o novo caminho para transformar o golpe de Estado numa mudança de ministério, ou os catilinários estavam em condições de dissolvê-lo, para o substituírem por outro organismo que legalizasse a violência revolucionária. Na realidade, os exemplos de Kapp, de Rivera, de Bonaparte e doutros tinham demonstrado que o perigo dos generais estava sempre presente, embora parecesse eliminado com o aparecimento das democracias parlamentares na Europa.
Curioso: Curzio Malaparte andaria pois há muito a elaborar uma doutrina política que já não tivesse em conta aspectos ideológicos do Estado (ideologias que devessem garantir a sua sobrevivência), mas as formulações técnicas que decretariam a sua manutenção ou destruição.
De todo o modo o modelo de Bonaparte não foi o da conjuração de Catilina e dos seus cúmplices com os quais se entrelaçavam ambições, insídias, receios, vilezas e baixos instintos da plebe e dos nobres romanos. No fundo, Catilina é um «herói falhado, um político sedicioso sem audácia e com demasiados escrúpulos», enquanto naquela ocasião Cícero tinha sido um «extraordinário chefe da Polícia». Muito mais materiais de análise ofereciam Sila e César que, na conquista de Roma, revelaram o seu génio militar e não o seu génio político.
A arte de conquistar o poder é, por conseguinte, uma arte essencialmente militar: estratégia e táctica de guerra aplicadas à luta política, isto é, a arte de movimentar multidões, no terreno das disputas políticas, tendo como pano de fundo, ainda e sempre, a Europa - uma vez que nos situamos na Europa. Mas o processo será o mesmo noutro continente qualquer.
O motivo deste texto foi o mero exercício especulativo: ter noção das armadilhas de que nos livrámos, poderá contribuir para que as evitemos. E daí, não estou bem certa: o apelo da destruição parece irresistível.