A vida é procura, necessidade essencial, ainda que o arrebatamento ou lógicas opcionais nos conduzam à articulação do tempo, à descoberta da finalidade, uma vez que «o comum existir não se pode negar. Nem invalidar», para aqui arrastando Irene Lisboa, segundo a qual «temos de acabar o que começamos (...)». Sim, com alguma sorte. Mas, o «comum existir» daquela exime-se, em Ilda Figueiredo, à banalidade do culto das pequenas coisas, evitada a prática da desventura, antes pelo contrário: militante empenhada, sempre lutou por acordos regimentais. Jamais abandonará, creio, o vício da alma ou prática de vida que a tem levado a encontrar, a par das grandes causas, pequenos espaços de recolhimento, esboçada cartografia de afectos, se preferirem, em absoluta reserva, assim evitando como que profanar o grande projecto, o compromisso.
Múltiplos lugares foram assim constituindo rede de responsabilidade e, em simultâneo, de afectividade, na surpreendente poetisa, em consonância com a tradição: enquanto portugueses, instaurámos uma poética do olhar transmitida ao longo de gerações - a que a própria se não esquivou -, redefinindo a pertença (e o compromisso), embora os planos não possam misturar-se: existem barreiras de acesso ao sentir, por vezes aparentes, já que o limite de determinada área ou actividade cessa, quando se interrompem os seus efeitos, ainda que no plano do simbólico. Afinal, a ideia moderna de objectividade - inseparável da informação e da notícia, que não são o mesmo - remete para o comum existir que se não pode negar ou invalidar, o eco da existência é impreterível, sintetizando este enunciado, tanto quanto posso ousar, um livro de poemas comovente, em alguns dos seus aspectos: Ilda Figueiredo manteve afinal dentro de si, como acontece com mulheres fortes, luas quebradas, poalha de arco-íris, suspiros e anseios, num reduto de possibilidade diferida, por intuir ser a acção, não a contemplação, a sua finalidade.
A ex-deputada europeia - no prosseguimento de intensa actividade política - sempre soube que no mundo exterior, consentâneo, apesar de tudo, com a actividade desenvolvida, reencontraria impressões dispersas: o seu estro poético surge como que reunido à fluidez do modo de sentir e ver, destacando lembranças; e tudo mergulha num passado indefinido: «(...) Só a manhã correu célere nas conversas /Que permitem a compreensão / Do sistema que explora quem trabalha. / Mas a dúvida cresceu até atingir a ponte pênsil / Que balanceia no rio caudaloso / - Prenúncio da cheia que se avizinha / E ameaça a segurança de todos: / Haverá nova tragédia das barcas? (...)» (pág. 18). Entendo que, entretanto, já ocorreu, ainda que simbólica, as travessias parecem condenadas pelas tempestades, até pontes do imaginário estremecem: mera réstia de fidelidades seculares parece segurar barcarolas da ilusão.
Demonstra este belo livro de poemas que, por um lado, a função de comunicar é perturbada pelo jogo de viver, por fazê-la coexistir com uma rede de relações internas e externas. Aliás, criar é fuga e regresso; condicionamentos auto-impostos levam à escolha de materiais, transfigurando: «Vou encher a bilha e trago-a / Vazia como a levei / - Mondego, que é da tua água/ Que é dos prantos que eu chorei. ( em «Fado de Anto»).
Inscreve-se Ilda Figueiredo em galáxia sonora em expansão, num páthos idealizado, a voz repercutindo-se noutra voz, alheando-se de concepções rígidas. Afinal, toda a promessa de felicidade reside no passado, no que nele se não realizou mas persiste, como um dos seus possíveis; a relação com a ausência torna-se deste modo essencial ao corpo do texto.
Perante a abundância de sugestões, a vida activa e a criação engendram, em metamorfose, espaço próprio de intervenção e de osmose com o meio, pelo que a alegoria determina não só a poesia como toda a escrita literária, havendo como que um código individual, permitindo o trânsito entre a história individual e/ou colectiva: destaque-se, insisto, o empenhamento político, o programa de vida da Autora, militando em causas aparentemente perdidas e, em simultâneo, ganhas - ou o inverso -, uma vez que, no caudal do tempo, situações ultrapassadas regressam, conferindo, a vidas como a sua, a função de exercício de fidelidade contumaz; o instante contemplativo perambula, nos seus poemas, reconstituindo uma unidade perdida, extraindo o eterno do transitório: «(...) Ficaram momentos belos e intensos. / Muita incompreensão, algum desvario, / Uma certa dose de sonho / A raiar a utopia ou a loucura / De quem vê estrelas na Palma da mão, /Como dizia José Gomes Ferreira.» (pág.24); o próprio aqui acrescenta mais um fadário, levando a que o poema de Ilda se projecte no de Ferreira, em consonância, se não de vozes, de projectos, lealdade, mantido compromisso comum.
Pormenor a assinalar, entre vários que sensibilizam no livro, o espectro da dor abrangente: multidões infelizes, em momentos perturbantes, são contempladas de longe, de modo a que tudo se relativize e, em simultâneo, se agudize, pois «Agora, o coro dos gemidos / já não chega às multidões:/ A paz impôs-se / Com os voos da NATO. / E, na ONU, apenas alguém se absteve/ Por ter ainda na memória / Um laivo das alucinações / Que mancharam / A história recente de algumas nações (...)» E surge a grande interrogação, no verso seguinte: «Para quando a paz semeada / Nos campos verdes / Da verdade / E construída / Com o pão cozido / no forno da solidariedade?»
A dialéctica da razão apresenta-se, desde os primórdios, como um processo contraditório, em qualquer de nós; o movimento que permite a fuga à dissolução do indivíduo no todo que é a natureza - e, por conseguinte, fuga ao terror imposto por esta -, conduz à absolutização do eu, enquanto poder de dominação das forças que lhe são exteriores: o mundo moderno privilegia a rasura da razão em prol do entendimento. E se «as instituições sem conceito são cegas», segundo Kant, o próprio como que se apieda, afirmando ser «a mão o pensamento exterior», pelo que estamos em tudo o que escrevemos.
Revelada decisão, desde logo, na escolha dos poemas, apesar do «jogo» do que se diz, sem nunca o dizer, ser influenciado, segundo Adorno, pelo acaso, corresponderá o impulso mimético à capacidade de assemelharmo-nos, relacionando-nos com o outro, através de uma simpatia primordial: «(...) Nos olhos tristes / Da menina cor de chocolate / E na voz rouca da criança loura / Vê-se a angústia engolida / Na noite dos voos rasantes,/ Dos bombardeamentos cirúrgicos /que transformaram a praça no lamaçal/ E das bombas que, por engano, destruíram a escola, / Mataram a mãe e os irmãos / Bombardearam o bairro e o hospital - Iraque, Médio Oriente ou Afeganistão,/ Líbia, Kosovo ou Sudão(...)» (pág. 34); ensimesmada, traça a Autora, em compaixão, o esboço de um mundo em sobressalto.
Sequer poderemos duvidar que, na abordagem de qualquer texto, se encontra a intensificação da vida, o intento de fundamentar perspectivas, novos possíveis, em que o subjectivismo aspira à ausência do sujeito, para sentir-se mais livre: a mútua interferência entre o pensamento e a vida é a base de toda a construção da leitura - e da escrita de «Geografia do Olhar» -, numa química de representações e sentimentos morais e estéticos, emoções experimentadas em face das grandes e pequenas correntes da cultura e da sociedade: mesmo em solidão, a inevitável solidão criadora, persiste uma ideia da arte, enquanto modeladora da alma do colectivo; nesse caso, a poesia será o equivalente do mito e a linguagem o reconhecimento de uma capacidade de questionar - até de inventar ou imitar -, ponto em que se completam. De qualquer modo, desde Petrarca, «desvelar e glorificar a verdade das coisas» não evita a opinião pública, antes a incentiva:
«(...) Entre a dúvida instalada, /o descrédito de quem exerce o poder /E a incerteza do futuro /Circulam as vozes do conformismo:/ Arma dos que dominam no redondel / Mesmo quando o pó se começa a erguer /E a tarde se adivinha (...)»; (pág.42). A dor da compreensão talvez seja o primeiro motivo dos poemas de Ilda Figueiredo, que tentei aqui iluminar, como quem acende fósforos, soprando os dedos, dado que, para destacar um aspecto tive de silenciar outros, pormenor comum à arte da política - onde se opta pelo que parece essencial, em detrimento do restante. Tal não significa ausência de enganos: disso - de tudo, aliás - sabe Ilda Figueiredo mais que eu. E não invalida compromissos, todavia, por parte de quem comenta, aqui e agora. (Há demasiado tempo, unimo-nos em torno de um projecto. Era um mundo diferente: a esperança, salpicada de espuma salina, adejava com as gaivotas.)
Destaque-se a beleza das ilustrações de Agostinho Santos, estabelecendo linhas de continuidade feliz com os poemas.