«Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos
que criar um Novo Mundo!»
Álvaro de Campos
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Entrando talvez em processo de catarse, reviveremos a tragédia ática que, ao fundir-se na acção com o mito, nos faculta a representação directa do drama, da intriga, indo ao encontro da nossa primazia, personagens atormentadas pela malvadez, pelo desejo de represália. Por instinto, aproximamo-nos de Eurípedes, em cuja trama o herói, reconhecido o erro e castigado pelos deuses, transmitirá, na ágora, consequências moralizantes, assim se distanciando da tragédia aristotélica, onde viveria acções mais torpes, intensificada a identificação pelas emoções (pathos). E de nada valeria condenarmos a desmesura da hybris, a soberba, no desempenho não obediente a determinados preceitos, os países europeus detestam-se entre si: se, no século XX, se acumularam sucessivos e conhecidos traumas, no século actual a expiação será inevitável. A mimesis derradeira, sempre adiada, representaria a retribuição pelo agravo, pelo que o castigo recebido conduziria a sentimentos de piedade e temor: purificando embora a mente das paixões negativas, longe de nos conduzir à sabedoria, lançar-nos-ia no paradigma intolerável do desespero. O melhor será continuar em espera.
A nação portuguesa, vivendo a parte que lhe cabe no «coro», desdobra-se em diegeses, como que tomando o pulso à adversidade, nada nos fica de emenda, somos, na generalidade, primários na análise das situações, o subliminar não existe para a maior parte, embotada pela amargura: insensível a subtilezas, fica-se pelas palavras de ordem, venham de onde vierem. No quotidiano, apesar de tudo, a aleivosia vigora.
Eis senão quando, no 1º dia do ano de 2013, Sua Excelência o Presidente da República, dirigindo-se aos portugueses, decidiu aconselhar ao Governo patriotismo e responsabilidade - alguém considera que o Governo não seja patriota? Teria sido proveitoso o aconselhamento na especificidade, para que entendêssemos, enquanto leigos, quando começou o que nos conduziu ao quotidiano funesto, em vez do aviso de auditoria permanente: a espiral sócio económico e financeira - anunciada e classificada pelo próprio -, alucinante, acelerada, não dará descanso a ninguém, nem concederá a serenidade necessária à administração em exercício. Pretenderia, Sua Excelência, ser louvada por tais medidas, frases compassivas, na sua prédica; todavia, a mensagem de Ano Novo reforçou que a húbris se apoderou da Presidência, desafia-nos a vigiar o destino - pobres de nós -, remete-nos, de vez, à tragédia, pelo acréscimo desumano de amargura. Nenhum português ignora o poder de Bruxelas: seremos por isso menos patriotas?
Apesar de atribulados, a intuição diz-nos ser a desdita do «herói trágico» necessária: se, por um lado, nos submetemos a diatribes, por outro beneficiaremos do contexto, enquanto espectadores, já que a tragédia, até a de decidir do destino de uma nação, é simulacro: o que for da alçada da chefia da nação ou do governo, deslizes à parte, é de sua responsabilidade, sempre. As consequências são o passo seguinte.
Ponderemos, todavia: se, exaltado o pathos, tais personagens relevantes optarem por surgir enquanto vítimas de arbitrariedade circunstancial, visarão aproximar-se dos menos favorecidos, assumindo-se acicate político, para além de que a tentação de seduzir o colectivo, arredando-se momentâneamente da hierarquia, será mal recebida, ainda que sincera. A hierarquia é indispensável, alguém tem de motivar-nos para que acatemos, apesar de os cargos serem temporários - daí que se não seja presidente mas esteja presidente, ou ministro, por determinado período, não importa a sua pessoa - embora possam agradar-nos mais ou menos, elegemo-los -, sim o modo como desempenham a função.
Aqui reside o problema ou parte dele. Atendendo a que o «directório» europeu colocou o acento tónico na circunstância grega - mantenhamos a tragédia ática - nós, apesar de helenos e ambivalentes na sua circunstância, invocamos argumentos. Pelo efeito da húbris, a Inglaterra, com insolência, Espanha - a primeira persistindo em caprichos seculares - ultrapassam o senso da medida; todavia, contemporiza o directório com o nosso vizinho, cultor de aparato régio prudente, apesar de laivos circunstanciais do antigo imperialismo. Pormenores desta ordem levam à emenda constante do «monólogo», seja quem for a personagem. Portugal aproxima-se da tragédia ática, sempre que um homem - o protagonista - se dirigir ao «coro», agora desgarrado, tentando dizer a sua verdade.
A consonância de vozes, da esquerda à direita, por absurda, seria preocupante, interessa alcançar a eficácia. Experimenta-se a «entente», durante breve período; mas logo a húbris subordina o sujeito à insolência e tudo parece desmoronar, a democracia é rectificação incessante; todavia, somos um povo sem direito à ilusão: no dia 1 de Janeiro, foi-nos declarado, invocada a esperança (!), que este ano seria pior que o anterior. As sucessivas notas de rodapé, nos noticiários televisivos, induzindo adendas ao discurso do Chefe de Estado, contribuíam para o desalento.
Portugal, qual carro de Téspis - carroça onde viajavam o coro e aquele que se destacava dele, o protagonista, o próprio Téspis, considerado o primeiro comediante (isto é de lã caprina) -, deixou-se dominar pela (des)confiança desmesurada; em consequência, o coro, excessivamente falante, perdeu a noção dos limites humanos nos outros, e agora exige realizações temerárias, quase obriga a que o sujeito - o interlocutor, eventual protagonista - supere as suas limitações, numa espécie de «deuteragonismo», arte de representar personagens distintas de uma só vez, usando duas máscaras, uma no rosto e outra na nuca, desafiando os deuses, o destino.
Em tal exigência reside o busílis: para que um homem comum - ainda que governante - se transmutasse, modificando a sua personalidade, no intuito de ser visto qual herói, vivendo o mito do homem que busca a efectivação da tarefa, precisaria de fazer despertar em si um Fausto adormecido, aquele que, não conhecendo barreiras, se reconhece pela inquietude e rebeldia. Teria de chamar a si o daimõn, génio maligno, para que este o modificasse; sucedendo-lhe o mesmo que a Goethe, seria presa de Mefistófoles, e qual Fausto perder-se-ia, seria o tirano que não desejamos; daimõn a que Fernando Pessoa não resistiu, escrevendo «Fausto: Uma Tragédia Subjectiva»; que Guimarães Rosa interpelou; que Valéry, Thomas Mann, na peugada de Puchkin, provocaram ou aliciaram; no cinema, Murnau, lançado na obra de Goethe, qual danado ele mesmo, deixou imagens sensíveis.
Sempre disponível, o daimõn espera que o invoquem, apesar de encontrarem alguns em Fausto a síntese do autoritarismo, do germanismo - tropeçamos sempre nisto -, cuja essência é negar tudo o que nasceu dos povos meridionais da Europa, antecipando, em Eufórion, ideias racistas e tresloucadas. Apague-se Goethe? Não, mil vezes não! Para sempre viva, no seu Fausto, na sua genialidade: apesar de desorientados, oxalá consigamos ainda separar o trigo do joio, misturados andam, em demasia.
Quando embirramos com alguém, faça o que fizer, diga o que disser - ainda que atravesse o Tejo sem molhar os sapatos -, ansiamos que soçobre. Aguardemos que desapareça a mazela do rancor; daqui a um ano, a milhares de portugueses ser-lhes-á indiferente o discurso da Presidência, o estado da nação, porque recém-nascidos ou mortos de carência, velhice. Pergunto: por onde anda o respeito mútuo? O discurso oblíquo do Chefe de Estado, reforçando o paroxismo de uma crise sócio económica não é exemplo que se colha, remeta-se ao daimõn, a arrogância camuflada é prepotência: diante do descalabro geral, a própria desgraça torna-se menos pesada - para tal concluirmos não necessitamos de conhecer a tragédia ática.
Tornámo-nos um país de hipócritas, invocando os necessitados e, em simultâneo, não perdendo oportunidade de aviltar. Portugal, com a pirâmide social achatada, incorre no perigo de ser tubo de ensaio pelo acicate de perversa luta de classes après la lettre, como que num corte telescópico, pela desagregação dos laços temporais: criar abismos, deixando ilusório barranco, é método para regressar ao ponto do corte no tempo e, desde logo, ao momento em que o tempo histórico, ilusoriamente, deixa de correr. A continuidade atrapalha alguns, leva à tentação de conceber o presente enquanto futuro passado histórico: daqui para trás, só houve dragões, ilusões, voltemos a página! Todavia, não será possível, somos demasiados, e a tragédia, por definição, destina-se a suscitar o temor - e a piedade - depurando as emoções. Estaremos suficientemente enérgicos para experimentá-las?
«A ordem e a desordem dependem da organização; a coragem da cobardia, das circunstâncias; a força e a fraqueza, das disposições. Quando as tropas ocupam uma situação favorável, o cobarde torna-se bravo; se estão perdidas, o bravo acobarda-se. Na arte da guerra não existem regras fixas, apenas podem ser talhadas segundo as circunstâncias» - quem o diz é Sun Tzu, em «A arte da Guerra».
Ainda assim, lutaremos, como sempre lutámos, embora poetas compulsivos:
«Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que criar um Novo Mundo!
Quem há na Europa que ao menos saiba para que lado fica o mundo a descobrir? Quem sabe estar em um Sagres qualquer? (...)» . Nós, os portugueses.