«Porque fui envolvido na grande missão chamada actualidade? Não posso escolher? E onde está quem manda - eu tenho algo a dizer! Quem manda? A quem me queixo?»

Kierkegaard

A morte pode sempre esperar. O isolamento existencial resulta de estarmos no mundo e dele fazermos parte, numa relação intersubjectiva com os outros e permanecermos indissociáveis do mundo que partilhamos; nunca se conhece completamente o mundo, o semelhante, e morreremos num acto único, individual, solitário. Sejam quais forem as circunstâncias, isto será igual para todos. Todavia, as circunstâncias podem determinar a diferença: hoje, quinta-feira, em Kiev, a Praça da Independência, transformada em campo de batalha – o dia mais sangrento -, levou a que a circunstância individual de dezenas de homens e mulheres ficasse enredada no colectivo, contrariando a similitude com o isolamento existencial, o tal vale de solidão: a confrontação com a morte e com a liberdade, em vórtice de violência e raiva, faz com que as imagens que chegam até nós relembrem outros tumultos: este braseiro de ira e frustração, desespero, ânsia recorda-nos que a paz - não a passividade - é um bem precioso, inigualável, e que os grandes conflitos começaram de modo aparentemente controlável.

Decorridos cem anos sobre a Grande Guerra, a Segunda Guerra - afinal uma guerra civil europeia - quando transcorriam duas décadas sobre a anterior, o rasto sangrento no dédalo da memória intensifica-se, tem atingido na actualidade vários lugares do mundo, a esperança traída ou sufocada até ao desespero afinal conducente a realidades assustadoras: um enorme braseiro não será extinto com um sopro, pelo contrário, alimenta-o, e a inquietação é já europeia, Kiev pode não resumir-se a um motim regional. Após reunião com os ministros francês, alemão e polaco, o líder da oposição Vitali Klitschko afirmava que não havia ainda acordo. O primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, declarava que os ministros da União Europeia teriam obtido, em Kiev, o acordo do Presidente ucraniano Ianukovich, para convocar eleições presidenciais e parlamentares antecipadas, ainda este ano, e que será criado nos próximos 10 dias um governo de unidade nacional - ainda segundo declarações de Tusk. O que parece ter-se confirmado, entretanto.

Após algumas semanas de calma aparente, nos últimos três dias Kiev voltou a ser palco de violentos confrontos, entre activistas antigovernamentais e forças de segurança, contando-se cerca de uma centena de mortos. A Praça da Independência de Kiev transformou-se em campo de batalha, em resultado da rejeição, em Novembro passado, de um acordo com a União Europeia, optando parte da Ucrânia - recordemos que são 50 milhões - por reforçar laços com a Rússia. Entende-se a ambivalência, a Ucrânia, apesar de tudo, foi parte da Rússia, potência cuja soberania assentou, totalmente, neste continente, não além-mares. Existirá talvez naquele país , decorrido quase um século sobre a revolução de Outubro, a nostalgia de um império perdido, estado de alma comum a todas as nações que foram «imperialistas». Apesar do tal rasto sangrento de que falei acima, não espanta que parte da Ucrânia queira permanecer ligada, noutros moldes, à mãe Rússia, já não totalitária. Moderada, defendendo-se de erros do passado, são esbatidos em grande parte rancores entre si e países europeus: agora, Jukov não alcançaria Berlim, contribuindo para a derrota da Alemanha, encurralando um psicopata monstruoso. Pelo contrário, decorridos quase setenta anos, Merkel bate os calcanhares, alinhando com Putin e Obama, o próprio Putin ciente de que a «contenda do petróleo» não justificará mal-entendidos com velhas potências, a aldeia global mais global que nunca. A Alemanha, logo a União Europeia, os Estados Unidos e a própria Rússia, como que chamam a si a neutralização pacífica do conflito.

As relações entre a União Europeia (EU) e a Rússia, durante anos, constituíram narrativa de frustrações e divisões, mas também de algum sucesso, estabelecidos acordos importantes com Moscovo, acima de tudo pela crescente unidade europeia em relação àquele país, considerado prioridade estratégica: afinal, no plano económico, a União Europeia é o maior parceiro comercial do País das estepes, o primeiro fornecedor de gás na Europa, e os estados-membros os melhores compradores. Para além disso, a EU e a Rússia enfrentam ameaças comuns, o terrorismo, a proliferação nuclear, entretanto controlada, quando o relacionamento entre os Estados Unidos e a Rússia assentou na fluidez.

Afinal, na actualidade, todos sentimos medo. Estadistas ou gente comum compartilham do receio do futuro, e essa ideia de futuro, que parecia, quando parecia, aproximar-se sorridente e ensolarada, apresenta-se-nos agora enquanto cúmulo da inquietação, com a UE a velocidade desigual aguardando as eleições de Maio. Precisamente, quando os países cuidavam de reforçar estratégias comuns e particulares, no quadro de uma Europa que se deseja unida pela esperança, tentando neutralizar aspectos menos felizes, o petardo Ucrânia fez com que acordassem de acalento ansioso.

Decorrido o dia mais sangrento, diz-se - desde a sua independência, há duas décadas -, no teatro político de Kiev as manobras intensificam-se; os partidos das regiões votam no Parlamento contra a violência, impondo o regresso da polícia aos quartéis: a partir de hoje, polícia é sinónimo de criminoso. A directiva, pelo seu radicalismo, terá de ser autenticada pelo Presidente do Parlamento, sendo ideia geral dos ucranianos que, se nada mudar, todos sofrerão mais. Na Praça da Independência, reforçando barricadas, defendiam-se os manifestantes de atiradores furtivos; manifestantes que haveriam de fazer reféns 67 polícias dos quais se ignora o paradeiro; os corpos dos mortos por atiradores especiais, amontoados, são lugar de romagem aflita de muitos. Mais de 1000 pessoas foram feridas nos últimos três dias. «Laissez-moi!»- gritava alguém.

As últimas notícias reforçam a ideia de acordo entre a Presidência e a oposição, as forças em campo ainda instáveis, circulando urnas de manifestantes na Praça da Independência.

«Laissez-moi! »- laissez faire, laissez aller, laissez passer!

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