Em quarenta anos de experiência democrática, perdemos a inocência, tornámo-nos reivindicativos, desconfiados: quais marinheiros de Ulisses, poderemos até supor que qualquer portento aziago alegue intenções genuínas, mas no íntimo desconfiaremos sempre, inscritos na memória do colectivo efeitos perversos. Todavia, prestemos atenção a quem souber o que diz, convicto das consequências - tambores de ressonância da media encarregar-se-ão da réplica discursiva, comentadores desdobrando-se em análises. O colectivo, prudente, tem por si a sabedoria, quantas vezes a sagacidade, os portugueses tudo glosam – atitude impensável antes de 1974.
Dado que qualquer enunciado se refugia, por vezes, na omissão, enquanto modo de destacar o subliminar, a nação - ainda que tímida - tentará, em 2014, esquecer o abismo, afinal fractura tectónica. Inspiro-me, com distanciamento e de modo lacunar, no discurso de Ano Novo de Sua Excelência, o Presidente da República, segundo o qual parece haver vantagem num programa cautelar (avant la lettre). Em determinado passo da comunicação, no molde habitual, soubemos que o país «saiu da recessão, em que estava mergulhado desde finais de 2010», sendo apesar de tudo «uma ilusão pensar que, no dia em que encerrar o actual Programa de Assistência Financeira, todos os nossos problemas ficarão resolvidos». «Queremos (cremos?) que o período de pós-troika seja um tempo de crescimento da economia, da criação de emprego, da melhoria das condições de vida…», auguraria Sua Excelência. Se tal fosse convicção e não aspiração seria alguma coisa, não que estejam em causa anseios: qualquer português deseja o melhor para o seu País, sobretudo os responsáveis pela governação.
E assim se pretende - ao mais alto nível - estimular a esperança dos portugueses, num futuro relativamente próximo; mas, dado que o tempo tem a elasticidade do prazo que resta a cada qual - o futuro é sempre incógnita a prazo -, uma ínfima coisa é susceptível de alterar a leitura oracular. Tal porvir, envolto em ambiguidade, considerado o cauteloso optimismo presidencial, interessa aos mais novos, semeadores de ilusões por natureza, logo coniventes – por bem e necessidade moral – com políticas de esperança de longa duração.
«Que posso saber?» - «Que devo fazer?» - «Que me é dado esperar?», questiona Kant, na «Crítica da Razão Pura».
E vai esclarecendo que só há dois modos de saber: pelo que for posterior à experiência e pelo conhecimento puro, que por não depender dos sentidos é independente da experiência universal. Já em relação aos juízos de síntese e analítico «a priori» obrigam a que, através da junção de informações distintas, se chegue a uma nova informação, de modo a que nada mais surja. Neste pormenor residirá, considero, o risco do apriorismo: o mundo parece resvalar numa superfície opaca feita de lama, sangue, desilusão e medo, inviabilizando a resposta ao breve questionário kantiano acima, creio que a humanidade vive uma das suas fases mais funestas, parecemos regressados ao medievo - agora sem o arrimo da expectativa: deixámos de olhar o horizonte longínquo, de escutar o grito de gaivotas em terra prenunciando tempestade, tal a indiferença que nos toma. Até a odisseia europeia, que ora parece enviar sinais de recobro, nos deixa num estado larvar: recorrendo a Kafka, tememos ver-nos, após noite de pesadelo, transformados numa espécie monstruosa de insecto, qual Gregor Samsa, obrigado a tornar-se caixeiro-viajante para sustentar a família dependente de si para tudo. Avisar dos comportamentos humanos, do desespero do homem perante o absurdo da existência, eis a função de A Metamorfose, texto escrito em 1912. Tal como Samsa, acabaremos por habituar-nos a novas situações, sem realmente percebermos no que nos tornámos? Ou seremos já outra coisa, enredados em situações labirínticas para onde nos lançaram, perdidos em obsessão e culpa induzida - pois nos deixámos arrastar, num misto de impotência e desespero, para um modo de estar nem português nem europeu? Então, por castigo e defesa, deveríamos acordar empedernindo, a cada dia que passa… Abandone-se, todavia, o surrealismo retardado - assim no-lo permitam as circunstâncias.
Como escutar o discurso de Ano Novo sem um frémito de inquietude? Por mais bem-intencionado e fundamentado, como conseguir - utilizando informações distintas - que nada surja susceptível de alterar o prognóstico? Quando o tempo se deixava enredar nas roldanas dos cronómetros, segundo a segundo ou gotejando em clepsidras, teríamos noção dele. Agora, de modo inopinado, conscientes da aceleração - que já vem do século XIX -, murmuramos preces mudas, conscientes de que as palavras de governantes ou não governantes espelham o pavor do silêncio que tudo igualiza. No século XIX, preparava-se já o estremeção que eclodiria na revolução marxista, agora quase secular. De grito em grito, de perda em perda, o soturno rumor dos desesperados: «Prá morte!», na pretensa conjugação - entre nós, à época - de uma visão social e política reaccionária com o culto de uma mística que se pretendia simultaneamente cristã e de apologia à degenerescência genial misturada à do povo anónimo.
Nós sempre desafiámos potestades, pelo que nos vão cabendo, por castigo e em sufrágio, réplicas monocórdicas. Todavia, os simples, perdida a singeleza, ambicionam recuperá-la, parece verificar-se interesse genuíno pela ruralidade em novos moldes. Os valores transfiguraram-se, tal a perigosidade de políticas económicas letais que apontavam para um «século de lazer», este em que nos encontramos. E assim se amputaram gerações.
Aliás, desde os anos 60, famílias eram estropiadas na alma e no corpo – tal não significando que dantes o não fossem. Na maior parte, já deixaram o mundo, permanece a memória a ensombrar os dias dos que restam; quando se aproximam as comemorações de 40 anos da revolução de 1974, os portugueses deixam o país aos milhares, desde os anos mais próximos! Não o abandonam por motivos ideológicos, sim por razões económicas não coincidentes com as do século XX, resultantes de políticas que nos vão tornando um país rarefeito: colocada a juventude autêntica ou aparente num pedestal de hipocrisia, permite-se que se desligue da pátria para ter nela a garantia de remessa de poupança!? Não bastará o abandono da família, dos lugares, da raiz? Assim que deixarem os que partem de exprimir-se, em momentos de alegria ou pena, na nossa língua, este país secular ser-lhes-á distante da alma: a expressividade na emoção necessita de aprendizagem, nem que seja por decalque – esta era também a função da educação, estabelecendo linha de continuidade que nos ia caracterizando enquanto povo.
Hoje, numa pré-confederação europeia, as Américas continuarão baluarte de cumplicidade antiga sempre a renovar-se. Também, no que nos respeita, acreditemos que África manterá laços difíceis de cortar. E não valerá a pena iludirmo-nos, somos o que configuramos: filhos de Europa. Nada mais nos resta.
Este ano, as eleições para o Parlamento europeu congregam vontades e interesses, constituem momento democrático a incitar desafios, tais como a revalorização da Europa a 28; países e cidadãos, unidos pela diversidade - no apelo de Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Europeia -, tentarão decidir do que se segue na aventura comunitária. A política comercial, nestes tempos de negociações transatlânticas, o problema migratório, o empenhamento diplomático e militar dos europeus, pelo menos na vizinhança próxima, beneficiarão de cuidado. Anseia-se que a Grande Europa, mercado único, deva permitir a livre circulação de trabalhadores, a harmonização social e fiscal, para que se atenuem, no futuro, tensões entre Oeste e Leste centro e periferia. (Sempre se aprende alguma coisa.)
Completar a união económica e monetária, conferindo-lhe dimensão social específica, promover a construção europeia com base em alternativas claras, outro dos objectivos. Será pois com a formação de uma agenda dupla e positiva ao nível da EU e da zona euro que será possível dar todo o sentido à campanha eleitoral a desenrolar-se em dois registos complementares.
Trata-se, afinal, de reafirmar a confiança na construção europeia, valorizando as suas realizações fundamentais, o espírito de reconciliação e o princípio de livre circulação. A visão ampla das oportunidades e das ameaças geopolíticas que enfrenta, obriga à abertura de espírito - defendem os responsáveis. Em tal contexto, os candidatos à presidência da Comissão - antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros e Primeiro-Ministro português, José Manuel Durão Barroso, desempenhou dois mandatos sucessivos -, perante o debate e o escrutínio no grande acontecimento democrático da próxima Primavera, tanto em Portugal como na Europa, terão a possibilidade de aferir, à distância, certos apriorismos presidenciais, na intenção de erguer o ânimo dos concidadãos, anulando a disparidade entre «crer» e «querer».
Esperemos que sim, pois acreditamos em ti, «Europa, filha de Elíseo! / Que os teus encantos unam novamente/ o que o rigor dos costumes separou (…) / Que todos sigam o teu rasto de rosas.»
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