Entre Livros       

Índice:

62 -SESSÃO DE LANÇAMENTO NA LIVRARIA BUCHHOLZ

61 - UMA APAGADA E VIL TRISTEZA

60 - IMPLICAÇÕES ÉTICAS E POLÍTICAS

59 - NO DIA DE PORTUGAL

58 - FERREIRA GULLAR- PRÉMIO CAMÕES 2010

57 - BENTO XVI - PALAVRAS DE DIAMANTE

56 - O 1º DE MAIO / LABOR DAY

55 - BULLYING E KICKING

54 - O AMOR EM TEMPO DE CRISE

53 - FÁBULAS E FANTASIAS

52 -THE GRAPES OF WISDOM

51 -Do Acaso e da Necessidade

50 - deuses e demónios

49 - CAIM ? o exegeta de Deus

48 - Os lugares do lume

47 - VERTIGEM OU A INTELIGÊNCIA DO DESEJO

46 - LEITE DERRAMADO

45 - Casa de Serralves - O elogio da ousadia

44 - FASCÍNIOS

43 - DA AVENTURA DO SABER , EM ÓSCAR LOPES

42 - TOGETHERNESS - Todos os caminhos levaram a Washington, DC

41 - Entrevista da Prof. Doutora Ana Maria Gottardi

40 - ?I ENCONTRO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA DE ASSIS, Brasil?

39 - FILOMENA CABRAL, UMA VOZ CONTEMPORÂNEA

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN ? Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTINUO

26 - ÁLVARO CUNHAL ? OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES ? Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz-te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA ? O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implicauma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezesda actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todosos acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivasem que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma práticajornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectivacultural especifica ou informativa, numa área não suficientementerígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        2010-11-13

SESSÃO DE LANÇAMENTO NA LIVRARIA BUCHHOLZ

(1)

Filomena Cabral    




«romance sombrio do crepúsculo de uma geração»
(Os Pavões de Gori) «um livro proustiano, de “não entretenimento”»
(Ardor Selvagem)

“As palavras sangram, são vasculares e vivas” Montaigne

Realizou-se, no dia 4 de Novembro deste ano inquietante de 2010, a sessão de apresentação conjunta de dois livros de minha autoria, «Ardor Selvagem», pelo Prof. Doutor Fernando Pinto do Amaral, e «Os Pavões de Gori», pelo Prof. Doutor Fernando Rosas.

Que Fernando Pinto do Amaral começasse por referir a «originalidade da escrita da autora, não de agora», instituído o texto enquanto instrumento de renovação, foi-me extremamente grato, aspecto destacado aliás desde Óscar Lopes a Álvaro Manuel Machado, de Haquira Osakabe a Nelly Novaes Coelho, Isabel Pires de Lima, Fernando Guimarães, Ana Maria Gottardi, mais recentemente Telma Mafra - atrevendo-me a mencionar, à margem, por singular, Eduardo Lourenço, elogiou “Ornato Cantabile” -, constituindo-se “Ardor Selvagem”, de certo modo, enquanto «livro de memórias, perpassadas de vozes, gritos, fantasmas» (acto de ventriloquismo e mimetismo dirigido a certa literatura brasileira, desde Erico Veríssimo a Guimarães Rosa, Clarice Lispector, os dois últimos no inter-texto da página final do livro), estabelecida assim uma linha de continuidade pela dita renovação e afirmação de um projecto de escrita de décadas que tem sido avaliado, nas sucessivas fases, por especialistas exigentes.

Demonstrando sensibilidade a elementos que entendeu fundamentais no texto em causa, desde logo «a savana, enquanto lugar de eleição» (por estratégia de sobrevivência, por intuir a autora através da personagem, será de notar, que é no presente que se morre), menciona Fernando Pinto do Amaral, entre outros aspectos, o «processo meta literário, em que a narrativa se vai fazendo sob o olhar do leitor, revelando-se desde o início como um livro de ‘não entretenimento’, levando o leitor a navegar nas próprias memórias», e alude ao gineceu familiar, lê fragmento em que, uma vez ainda, evoco as mulheres da minha família, (pág. 25), dadas às artes, não à escrita, sóbrias, provocadoras sem gratuitidade, creio que, afinal, me ensinaram tudo: “o que nos faz vivos é a memória do nosso relacionamento com o mundo”. Quase forçosa então a existência de pontos de confluência entre a lisura de quem escreve e a de quem analisa, digo, atentos à memória dos homens, em que ambos também se inscrevem, cientes de que a moderação é a arte da existência; (o tempo expande-se ou contrai-se, segundo o desespero ou a felicidade – afirma-se a certa altura, em “Ardor Selvagem”. A amargura tem uma elasticidade inerente; a saudade da ânsia, no eco de uma oralidade imaginária, levara a personagem narradora a valorizar a paciência e o rigor: enquanto autora, concluí que antigas alusões necessitam sempre de ligeiros reajustamentos.)

Nesta procura do passado perdido, «a similaridade com Proust» é um dos pontos destacados pelo ilustre apresentador; mas só por isso mesmo, entendo, pela procura, a sensatez tem sempre a inteligência de guarda; (na perturbação de escutar, em circunstância de imensa responsabilidade pessoal - a apresentação dos seus livros -, alguém desenvolvendo pensamento estruturado no saber e na competência, o autor obnubila - assim me aconteceu - e intui que recordará da única forma que conhece: ensaiando a análise da competência sobre a própria efabulação). Não me cabe enumerar panegíricos, seria ridículo. No entanto, o pormenor de ter o académico decidido ler fragmento do texto (pág.45), entre outros, denuncia alguma sedução textual. Do mesmo modo a alusão à “corça” que cruza o livro (objecto de ternura da narradora; na corça, o formidável salto de uma criatura, na vida e na morte, quando o tempo se suspende). Aqui chegada, decido iniciar uma digressão útil, aliás retirando fragmentos do “corpus” do mesmo “Ardor Selvagem”. «Em proliferação de andamentos, sem sinfonia que nos contenha, enquanto ficcionistas» - importa o modo de conduzir a vida e as narrativas -, compartilhar a natureza do mundo pode tornar-se inquietante, tanto para quem escreve como para quem lê, especialista ou não, disto já concluíra «Emerson, nos tempos da Guerra do México, época do transcendentalismo americano. Em pleno século XIX, o de conferencistas modelares, aquele proferia: ‘Um homem é um deus em ruínas’, em evidente inspiração espiritual de Shakespeare, o que não impediria afirmasse que é ilusão a maior parte do que vivemos, pois até nos sonhos parece haver uma justiça poética, «os credos são uma doença da inteligência». Qual Goethe, Emerson era sereno, mas quem ficou encurralado diante do abismo foi Nietzsche: ´Entre a dor e o seu sentido intervém uma memória da dor que se transforma depois num sentido memorável´».

«Muito haveria ainda de acontecer até que se chegasse ao pluralismo, igualdade de culturas e etnias», afirma-se a páginas tantas: «O mito da raça ariana, que ensanguentou a Europa, levaria, após a guerra de 1939-1945, a Declaração da ONU; a partir de então, os homens reclamariam o direito de serem diferentes e tratados como iguais, não obstante serem diferentes. Assim se chegaria ao pluralismo, igualdade de culturas e etnias, quer a acção se desenrolasse em África ou não, interessa o concreto dos lugares e da História, sendo este pormenor que garante a imprescindível coerência do livro. E voltando-nos para Portugal, recuemos até 1937, ano do célebre atentado bombista a Salazar, o governante sai incólume; entre os responsáveis pelo atentado, Emídio Santana, precursor do movimento anarquista em Portugal; Espanha batia-se na Guerra Civil, Salazar assegurava apoio a Franco, para cujo país eram enviadas ‘sobras de Portugal’ (isto hoje parece miragem, acrescento aqui e agora), toneladas de alimentos garantidos pelo ultramar português, por onde lavraria o pensamento único, território eivado de opositores ao regime, anarquistas, comunistas confinados à prisão - o que já viria da Inconfidência Mineira, em pleno século XVIII, com os revoltosos brasileiros, por directriz da Coroa portuguesa», tudo isto ainda no corpo do livro em causa. A determinada altura, comenta-se que a História não volta atrás (?) - desde que tal escrevi algumas certezas sofreram forte abalo, basta estar atento aos acontecimentos.

«Seria facto: depois do fracasso da greve geral, em 18 de Janeiro de 1934, as prisões estavam repletas de militantes anarquistas e a juventude portuguesa, através dos cursos de formação política e intercâmbio com a Juventude Hitleriana, refiro-me à Mocidade Portuguesa, contribuía para o triunvirato de interesses e cumplicidades mórbidas, Portugal de Salazar, Itália de Mussolini e Alemanha de Hitler, chegada ao nosso país uma viatura Mercedes, oferta do último» (continuo a transcrever “Ardor Selvagem”.)

«Tudo acicatava ao anarquismo» - afirma-se - «se bem que controlado pela polícia do estado. Ainda em 1871, Antero de Quental e outros revolucionários portugueses reuniam-se em Lisboa, com delegados de associações internacionais libertárias. E nos anos sessenta voltam a fazer-se ouvir, aliás agora em todo o mundo, relembro as lutas estudantis de 1968».

«A luta contra a distância, entre as declarações, as acções e os factos, nem sempre é animada pela intenção e pela autenticidade, que ficou ferida, assim acontecera após a Declaração dos direitos do Povo feita pelos soviéticos em 4 de Janeiro de 1918» (continuo a transcrever de “Ardor Selvagem”, fazendo já ponte com “Os Pavões de Gori”). «Num plano geral, devemos referir-nos à Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, cujo primeiro antecedente célebre fora a Declaração da Independência dos Estados Unidos, em que se afirmava a igualdade e que o fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Deixava todavia espaços de divergência entre os factos e as normas, onde não cabiam os não proprietários, as mulheres, os menores e os escravos, se bem que posta de lado a Inglaterra e a sua colónia americana – embora a filosofia, que os colonizadores transportavam para os territórios em processo de colonização, tivesse sido bebida da Declaração francesa ou no Código Napoleónico, todo elaborado na base dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.» E continuando a transcrever: «Certos mitos emperravam a execução autêntica das declarações de direitos que, a partir de 1789 (a revolução francesa), aparecem repetidas noutros textos constitucionais. Pelo seu lado, a ONU, desde a sua fundação, consideraria essencial complementar a Declaração dos Direitos do Homem, na intenção de reconhecer a dignidade inerente a todos os membros da família humana. Data de 1963 a Declaração sobre a Promoção do Respeito Mútuo, da Compreensão entre os Povos».

Todos estes aspectos concorrem para a espessura que, de facto, possui ARDOR SELVAGEM, na medida em que são, de certo modo, motivados em Guilherme, anarquista, putativo pai ficcional da personagem situada na savana, cujo lema era o da filosofia estóica de Ader: «Quando os homens são razoáveis e seguem o seu instinto natural, unem as fronteiras e constituem o cosmos». Ideias estas próximas das ideias utópicas da revolução francesa, de Rousseau, Diderot, Rabelais e Fenelon, que só não vingaram devido à vigilância da Igreja Católica, também enraizada em Angola.

«Decorridas décadas sobre a descolonização, a autodeterminação anticolonialista do séc. XX constitui mais uma separação das antigas metrópoles que um movimento nascido dum sentimento comunitário nacional. Os novos regimes viriam a aceitar, da acção do colonizador, as fronteiras físicas na época da expansão colonial. Dentro do território tornado independente, ficariam as populações ali instaladas, pelas acção colonizadora ocidental, sem tradição que não fosse a antiga submissão ao mesmo poder colonial. Pela heterogeneidade dos grupos, sem língua em comum, haveria que utilizar a língua do colonizador, antes e depois das independências, tal levaria o ‘projecto nacional’ das respectivas novas nações africanas para a tentativa de amalgamar os grupos, de forma a corresponder ao conceito nacional de nação. Pela violência sempre. Tal aconteceria na Nigéria, no Sudão, na União Indiana, na Indonésia, na Indochina, levando a verdadeiros genocídios de grupos que rejeitassem o projecto nacional». O mesmo sucederia em Angola. É NESTES ASPECTOS INERENTES AO TEXTO E NÃO NOUTROS QUAISQUER QUE SE ESTABELECE NEXO ENTRE A PROBLEMÁTICA HISTORICISTA DE ARDOR SELVAGEM E OS PAVÕES DE GORI, SENDO QUASE ANTI-NATURA SER O AUTOR(A) A FAZER UMA APROXIMAÇÃO DENTRO DO QUE SE ESPERA DA LITERATURA COMPARADA, EM RELAÇÃO AOS PRÓPRIOS TEXTOS, sem o que o seu projecto de escrita corre sério risco de ser empurrado para a enxurrada do aparentemente ditado pelo capricho memorialista/narcisista - circula por aí a rodos, percutindo a tecla da vulgaridade,sobretudo sobre Angola, quando não da aberração -, coisa que não me orientou, com toda a certeza. Todavia, na medida em que privilegiei o historial de aspecto políticos de Portugal e do Mundo, inalienáveis da época a saber, entre os anos 30 e 70, a narrativa, desde que se não aluda a tais aspectos, parece perder pertinência, torna-se rede de evocações e pouco mais. O que para mim seria o absoluto menos, nem sequer a escreveria.

Se não for explicitado que são os factos de ordem “política” de “Ardor Selvagem” a estabelecer nexo com aspectos da mesma ordem em «Os Pavões de Gori” - apesar de narrativas autónomas -, poderá criar-se a falsa impressão de que o autor(a) teve o capricho de apresentar dois livros em simultâneo, em exibicionismo gratuito. JAMAIS TERIA PROPICIADO TAL LANÇAMENTO, NÃO FOSSE A COERÊNCIA DAS LINHAS DA MEMÓRIA DO COLECTIVO, EM ÉPOCAS DISTINTAS, QUE SE CRUZAM ENTRE AS DUAS OBRAS, LIGANDO-AS, a Segunda Guerra não só destruiu países europeus, levaria ao desfazer dos impérios coloniais, das “europas” fora da Europa. Enquanto Guilherme, em “Ardor Selvagem”, ingenuamente edifica, no final da década de 30, um futuro ilusório em Angola, preocupado com o autoritarismo na Metrópole, e, mais tarde enleado numa rede de contactos perniciosos com os EUA, na época McCarthista, o fascismo estabelecera-se na Áustria - em “Os Pavões de Gori” - ali «a Frente Patriótica era composta de partidos heteróclitos: intrigavam, conspiravam, manifestavam desejo de liderança; as suas brechas permitiam o derrame do nacional-socialismo e a infiltração de forças revolucionárias. O terrorismo nazi (antecipava afinal, acrescento, em três décadas, a guerra colonial nos territórios de Portugal em África) perturbava o país, recorrendo a bombas e metralha: agressões e atentados teriam tido, no dia 20 de Julho de 1934, o ponto culminante. Frequentemente, as autoridades simpatizavam com os terroristas e reprimiam a esquerda. No entanto, Thomas Kressler, a personagem motriz de “Os Pavões de Gori”, esbracejava no tempo, muito deveria calar ou revelar, outro tanto lhe assomava ao espírito como que empurrando-lhe a mão, a pena. Os pavões gritavam, assim o vizinho, quase desafiando-os, fora gaseado na Primeira Guerra».

«A escalpelização literária, histórica, cronológica» são de imediato apontadas por Fernando Rosas, Historiador insigne (muito nos ensinam os seus livros, as suas intervenções), do mesmo modo «a ética, esperanças, (des)ilusões»; e logo afirma «não tratar-se de um livro de acção, mas da moral da acção»; («na realidade, Thomas Kressler aprendera a humildade como quem apanha uma doença. Em breve reproduziria o vizinho gaseado, pretendia deixar o mundo com dignidade. ‘Não posso mais!’ Entre as duas guerras, porém – e ainda no segundo quartel do século XX -, o que representava a consciência dos lugares moribundos, de onde a energia do pensamento, a vontade eram ausentes, seria a teimosia, persistindo qual vício da alma, talvez espasmo da vontade, Irma a ferida narcísica, a batalha do amor perdida; os restos das Brigadas Internacionais refugiavam-se em França».«Livro triste»,frisa Fernando Rosas, e menciona «o suicício de Otto no longínquo Gobi, por desilusão política e pela perda da amante judia».(« Ainda a Wehermacht não atingira o Cáucaso, Thomas Kressler procurara o irmão, suicidara-se, encontra-o enforcado. Recordando-o, também dessa vez o grito dos pavões o perturbara, assemelhava-se ao estertor de moribundos roucos de desespero, convencidos de que a morte nunca toma os que ainda têm voz e a usam»). E relaciona o Historiador o livro em causa com «o crepúsculo de uma geração». ( De facto, longe iria, acrescento, a adesão a um viver inquieto, em clandestinidade, Thomas aliciado por Walter Taub, teatrólgo checo, para adesão à Frente Vermelha. A vida é representação, as guerras são o grande desmesurado palco sangrento do mundo). Refere ainda «Myrthe, misteriosa e dúplice», Gertrude, talvez, não estou certa, cuja morte é um momento forte do livro. («Mas, entretanto, no país das estepes, os primeiros soldados do Exército Vermelho surgiam diante de Thomas, bandeiras tremulavam, em pequenas elevações de terreno; comovera-se, mero figurante num retrato inacabado».) «Herbert, o amigo traidor e espião», do mesmo modo seria mencionado, destacados os pavões de Gori, terra natal de Stalin, eu, autora, agasalhada uma vez ainda no pensamento de Walter Benjamin, “a ética e estética são um”, atenta ao vórtice do mundo: os pavões, em Gori, recentes os tumultos, permanecem de guarda aos sonhos, por entre a neblina dos tempos, « num livro centrado na Internacional Comunista» – frisa ainda o Historiador. E termina encarando o texto, definitivamente, enquanto romance sombrio do crepúsculo de uma geração.

Esta interpretação livre do que consegui reter da sessão deve ser encarada enquanto tentativa da própria autora, para que não circulem os seus livros no caminho do meio, o da indecisão, pela distracção da media e mais além, demasiado ocupada com o politicamente correcto aparente, ou seja, com a hipocrisia. Foi-me grato, ainda, escutar Fernando Rosas aludir ao evidente investimento da ordem do ensaio, de que a força da ficção acabara por desviar “Os Pavões de Gori”.

No entanto, correndo o risco de tornar esta página demasiado longa – mas outras aqui tenho editado, pelos mais variados motivos –, não me move a exibição mas a responsabilidade, de nada ficou registo, por falha de suporte técnico exterior à Livraria. Por coerência, menciono ainda que (cf. consta desta feita em “Ardor Selvagem”) «todos os movimentos das autodeterminações anticoloniais do século XX- nunca será demasiado lembrá-lo - foram em função do interesse dominante das grandes potências. Durante a guerra de 1939-1945, o anti-colonialismo apareceu como uma das componentes da ideologia de combate da coligação que obteve a vitória, de que faziam parte os EUA e a URSS, que não tinham perdido o estatuto de grandes potências com impérios coloniais; Inglaterra, França, Bélgica, Holanda saíram esgotadas da guerra. Quando proclamaram o direito à autodeterminação e o anti-colonialismo, tinham em comum a condenação do esquema colonial que o nazismo pretendia implantar, incluindo importantes territórios soviéticos. Mas, para além disso, nenhuma pretendia abdicar das suas posições imperiais. O anti-colonialismo americano, mais vasto, incluía, já desde a própria independência, terminar com as últimas possessões europeias no continente americano, e, desde a conferência de Berlim de 1885, eliminar a supremacia europeia em África e no Oriente (pág.135). Pelo seu lado, a URSS enunciava a necessidade revolucionária de tornar as colónias independentes, para enfraquecer as metrópoles capitalistas».

«De facto, a autodeterminação anticolonialista limitar-se-ia aos territórios das potências europeias, nenhum território das zonas de influência tanto da URSS como dos EUA seria envolvido no processo. O Havai (onde nasceria o primeiro presidente negro americano) e o Alasca entrariam como estados da Federação, já na vigência da ONU, coisa que à França não foi consentido em relação à Argélia (pág.135)».

Foi a História de Portugal e do Mundo que motivou as duas narrativas; a memória individual, a minha, em “Ardor Selvagem”, ou a de Thomas Kressler, ficcional, em “Os Pavões de Gori”, são meros patamares, uma matéria-prima necessária às narrativas.

Para terminar, confirmando-se que, quando o autor decide arrastar para o texto a memória do colectivo, a energia, estará sem de tal se aperceber a chamar, quem saberá, a atenção para aspectos pertinentes, no futuro da acção, isto é, hoje, não resisto a transcrever parágrafo da pág. 136 de “Ardor Selvagem”: «Preparar-se-ia, dali a uma década, na ONU, a Declaração sobre a ‘Outorga da Independência aos Países e aos Povos Coloniais’, nos anos 60, aproximando-se do termo, o McCarthismo abrandaria. Longe ainda (1974), a ‘Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados’, onde se explicita: «é direito e dever de todos os Estados, individual e colectivamente, eliminar o colonialismo, apartheid, discriminação racial, neocolonialismo e todas as formas de agressão, ocupação e dominação estrangeira, e as consequências económicas e sociais daí decorrentes».

Tratou-se, aqui e agora, pela longa elaboração, de defender das toupeiras, provavelmente, a minha leira de palavras, devoram-nos a raiz e nós nem o percebemos. Espero a vossa compreensão.

Por outro lado, no texto abaixo, escrito previamente, agradeço a disponibilidade dos académicos que me honrariam com a sua presença, e em simultâneo digo das minhas razões e indignação legítima extra textual, de ordem da génese literária ou outros.

Texto de agradecimento, após apresentação das obras (2):

Neste momento cada vez mais difícil para um autor à medida que a obra vai progredindo, agradeço as palavras dos Professores Doutores Fernando Rosas e Fernando Pinto do Amaral, disseram dos livros que nos reuniram hoje nesta Livraria emblemática de Lisboa, a prestigiante Buchholz, onde sou repetente em virtude de apresentação de outro livro, também pelo Professor Fernando Rosas, em 2005, no fatídico dia 7 de Julho, o dos incidentes na rede metropolitana de Madrid, sempre presto atenção às pegadas da História, é um vício da alma. E de novo se reacende – extra ficção – uma dobadoira fatídica, tecem-se inquietação e medo como outrora meadas de linho. Do mesmo modo nunca esqueço a generosidade dos que partiram, pelo que evoco José Leal Loureiro. Agradeço também aos Editores: a “Afrontamento”, que editou o meu primeiro romance “Tarde de mais Mariana” (por convite de Marcela Torres); ”Ardor Selvagem” é o sexto título com a sua chancela, aqui representada pelo Dr. José Ribeiro, considero-o o meu primeiro editor, um quarto de século passou num ápice; a “Teorema”/Leya, pelo Dr. Veiga Ferreira, que me edita pela segunda vez: antes de “Os Pavões de Gori”, “Vertigem”. Confesso ser estimulante e honrosa a sua chancela na minha bibliografia, a par de outras de alcance cultural significativo.

Acabamos de testemunhar momentos felizes, aqui e agora, e não deixa de ser reconfortante verificar que, apesar da inquietação dos tempos, nos reunimos ainda pelo apelo da criação. Confesso que me tem movido a consciência de que acontecimentos sucessivos vão precipitando as acções, os comportamentos, empurrando homens e mulheres para o lugar obscuro em que a esperança naufraga, desfazendo-se na espuma dos dias, na babugem das marés. A sabedoria do passado, enquanto legado da tradição, exige ser utilizada segundo o ditame do bom senso, em sucessivas parábolas do historial dos fundamentos morais da humanidade, pois cabe ao escritor denunciar estruturas sociais degradadas, ainda que com ironia, como salvaguarda do si mesmo, estruturas estas aparentemente plasmadas no passado não demasiado longínquo, em “Os Pavões de Gori” e “Ardor Selvagem”. Alguns escritores, apesar do escrutínio crítico, eu entre eles, teimam em reavivar a memória, utilizada a fogueira das ideias, soprando-a com a ficção, a escrita o seu oxigénio, protegendo a centelha, no côncavo da mão, para gerar outros incêndios pela palavra…Mas para quê – considerarão alguns – escrever uma narrativa sobre o antagonismo de dois titãs, o nazismo versus socialismo, se a guerra já terminou há 65 anos. Na realidade, leva-se à reflexão pelo sarcasmo, e quem nos garante que os fascismos estão defuntos? Pelo contrário, levantam-se, não direi da tumba, mas de um caldo sociológico, numa espécie de maldição, e vão surgindo sob outras formas, por isso têm a nossa condescendência: ou é a embirração dos franceses, ou a velha superioridade germânica a fazer os seus dirigentes engrossar a voz contra os imigrantes, culpando-os, pobres deles, por não terem sabido adaptar-se… A metamorfose da suástica anda por aí! A falta que nos fazem Gil Vicente, a racionalidade raivosa de Sena, embora a intuição poética neutralize os ditames por vezes castradores da razão, considerando que na impotente desrazão assentam tantas e tantas obras que por aí pululam, exacerbado o sentimentalismo, com a lágrima no canto da página, ali exposta, para que todos a notem e nela se revejam. Há quem, na ânsia de especulação, apesar de crédito firmado, numa espécie de perfídia, onde já parece latejar a senectude, teime em levar para a praça pública as suas maleitas, qual mendicante medievo: «A minha pústula fede mais que a tua! Sou o pilar da literatura portuguesa contemporânea e serei lido pelos tempos dos tempos.» Garcia de Resende, regressa! Há toda uma “miscelânea” à tua espera! Tens ao dispor o ridículo, os tempos são de escarnho, e sempre soubeste que na toleima se acende a guerra de todos contra todos, restará para contar a antipatia rancorosa, nada em que militar para além do malefício.

Vale então evocar Novalis: «É pelo interior que circular o caminho misterioso», caminho que os humanistas percorreram, ajudando na formação da consciência europeia, superando a nacionalidade, conceito detentor, na altura, de sentido pejorativo, por denotar «a incapacidade de ver para lá da linha fria do horizonte», no dizer mais tardio de Fernando Pessoa. A consciência europeia alicerçava-se, curiosamente, na expansão de mesma Europa, para a qual nós, enquanto portugueses, contribuímos com energia e perseverança. Mas, o que nos impeliu pelo mar adiante não foi tanto o desejo de aventura, até ali bastara-nos a ceifa da seara do mar, a necessidade da travessia motivou-se na economia. Basta conhecer a História portuguesa. Será ainda por esse espírito fatalista quase milenar, que parecemos sempre dispostos a enfrentar adamastores, a reiniciar a aventura da vida, seja quando for e apesar de tudo: permanece em nós um estado de paixão funesta, patética, que nos leva a mimetizar o desejo antigo do renascentista Sebastião, místico e sonhador, ao proferir, aceitando já a desgraça: «Morrer, sim, mas devagar!».

Fatalistas por vocação, conscientes, mais que nunca, do poder antigo da irradiante Europa, dela nos constituímos farol em tal época e mais além -enquanto portugueses - e compreender-se-á assim melhor a edificação das minhas narrativas historiográficas; do mesmo modo, o pormenor nada despiciendo de ter presenciado o desabar de impérios europeus em África, de ter sofrido, entre tantos outros, o gume da História traçando, com rigor anatómico, a separação de mim em mim: a memória ficou por lá, sujeita à queima e ao reviver contínuo, como que numa maldição.

O conceito de Nietzsche, segundo o qual “se não tivéssemos a arte, a verdade faria com que perecêssemos”, conterá hoje em dia, para o mundo, uma verdade mais profunda, se bem que se confunda muito a arte com sucedâneos, não sendo menos certo que o escritor, já que aqui nos trouxe a Literatura, se apercebe, a partir de determinada momento, após anos e anos de escrita, que o difícil prazer de criar lhe confere o único motivo, até o único direito de escrever: a salvação reside em avançar para dentro de si, singrar no espaço da linguagem: «É pelo interior que circula o caminho misterioso». Mas se assim é, e talvez porque assim seja, interrogamo-nos:”De onde vem a violência”? Da mímica, citando René Girard. Da mímica… Deveremos então mimar a violência para tornarmos credíveis, no tempo e no modo, as nossas ficções historiográficas? Creio não haver outra solução, senão a violência por virtualidade da linguagem, o furor no espelho do tempo com a memória por suporte, no encalço da História, esta sempre a fazer-se, e nós, enquanto cidadãos, responsáveis pelos fios da sua teia. Mimar, com boa consciência, é o trabalho necessário da arte, «a verdade sobre a vida apressaria a morte». De longe me chega, no entanto, o sussurro que nos não larga: «Pr’a morte, pr’a morte», cicia Raul Brandão, mote da «trilogia da perda» atingindo-me, quando da escrita de “A Noite transfigurada”. Pondo de lado qualquer pretensão, o escritor experiente sabe que deve constituir-se pilar de um sistema de fé assente no intelecto. Por vezes, chega-se à reflexão pelo sarcasmo: enganar com boa consciência, enganar ficcionando, bem entendido, é o trabalho necessário da arte, a verdade sobre a vida apressaria a morte, mas a mentira sobre a memória do colectivo, ou o esquecimento - pelo apagador gigantesco do tempo que dilui, deturpa -, se conscientes de que “a história dos homens é a do seu desentendimento” (Saramago dixit), levar-nos-á a que evitemos, por todos os meios, se acenda a guerra de todos contra todos.

Para fazer-me entender melhor, serei mais directa: revivemos um clima emocional muito próximo das querelas do final do século XIX, em que se pretendera conjugar uma visão social e política reaccionária com o culto de uma mística, que se pretendia simultaneamente cristã e de apologia à degenerescência genial, dentro de um espírito que vimos comparecer nos nefelibatas de 1891; António Nobre, Raul Brandão, já aqui mencionado, ainda António Patrício, os três grandes valores que avultam no saldo do decadentismo simbolismo portuense – onde eu, apesar de afastada no tempo, ainda vou beber, nos textos da trilogia em causa, a da “perda”, e noutros, muitos outros. Curioso: pelos mencionados vultos das Letras circula um certo odor a maresia. O mar, obcecante em Patrício, é nele o símbolo da morte a envolver toda a agitação de uma vida arrebatada. Ao modo de Nietzsche, fita obsessivo os seus limites para se não conceder mais do que ela própria, a vida arrebatada, contem em si mesmo. Em Anto e Raul Brandão, o mar sugere antes a tragédia da vida piscatória, o amarfanhar, a carência de horizontes, a mesquinhez da vida dos mais humildes, enquanto símbolo do fracasso inevitável, de uma usura quotidiana da própria existência, que todavia se não conforma no grito de sempre do sacrifício e da humilhação inútil. Em António Patrício, no seu «Oceano», volume de versos, consubstancia-se a vida na onda arqueada: vibra e logo se despenha, como se todos fossemos, como de facto somos, detalhes do universo: «Ai do Lusíada, coitado/ (…)que não ama nem é amado,/(…)que triste foi o seu fado!/ Antes fosse pra soldado/Antes fosse pró Brasil…», arqueja o poeta do “Só”, um emigrante poético. Quem sai aos seus não degenera e eu sou, antes de tudo, uma europeia-galaico-duriense: em Nobre, em mim, por mais modesta, em alguns outros, o Brasil, enquanto o longe mais longínquo dentro da mátria… Que ele, Nobre, desanimado, percorreria o Bairro Latino, misturado ao povo anónimo. Nas visitas a Sua Excelência, Eça de Queiroz, cônsul em Terras de Vera Cruz, para si uma coutada, é recebido com frieza, depreciativo, desdenhando a literatura simbolista decadentista, embora Nobre já se aproximasse do Modernismo. Indignado com a atitude do autor de “A Cidade e as Serras”, volta-se Nobre para os exilados da revolta republicana de 31 de Janeiro, Sampaio Bruno e João Chagas. O que eu decidi fazer, em “Ardor Selvagem”, não por zanga com Eça, nosso senhor, muito pelo contrário, mas por interesses narrativos de vária ordem, ao longo da obra. Se, por outro lado, um autor português decide envolver-se nas querelas da História aparentemente desligadas do mundo português, como acontece em “Os Pavões de Gori”, traduzirá a atitude a consciência de uma rede inter-lugares e de que os avatares do esquecimento devem ser neutralizados mais que pela acção, pela palavra: esta sangra no pedúnculo do dizer, aquela pela destruição da vida humana.

Tal atitude de escritores ou não escritores, de homens e mulheres de fibra - e sei que aqui se encontram – conscientes do passado e do futuro que são já hoje, fornecerá motivo, no devir, a que nos narrem, enquanto portugueses, de modo lisonjeiro, quando na primeira década do século XXI:
«Por perigos, desafios esforçados, mais do que prometia a força humana, dobraram, ainda dessa feita, o cabo das tormentas». A seara do mar… Ah, tornara-se-lhes alheia, por decisão do areópago europeu, seria então lugar de folguedo das temíveis filhas de Neptuno, rodeando aterrador “Tridente”, de alta tecnologia: tudo se joga, afinal, a partir das noções de aparência e de forma: se não tivéssemos a arte, a verdade faria com que perecêssemos.

Muito obrigado pela vossa presença.
Filomena Cabral, em 4/11/2010
(1) Da esquerda para a direita: Carlos da Veiga Ferreira (editora Teorema/Leya), Fernando Pinto do Amaral, Filomena Cabral, Fernando Rosas, José Sousa Ribeiro /edições Afrontamento)
(2) Apreciado por Fernando Rosas.










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