Entre Livros       

Índice:

38 - EUROPA - ALEGRO PRODIGIOSO

37 - FEDERICO GARCÍA LORCA

36 - O PORTO CULTO

35 - IBSEN – Pelo TEP

34 - SUR LES TOITS DE PARIS

33 - UM DESESPERO MORTAL

32 - OS DA MINHA RUA

31 - ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS

30 - MEDITAÇÕES METAPOETICAS

29 - AMÊNDOAS, DOCES, VENENOS

28 - NO DIA MUNDIAL DA POESIA

27 - METÁFORA EM CONTÍNUO

26 - ÁLVARO CUNHAL – OBRAS ESCOLHIDAS

25 - COLÓQUIO INTERNACIONAL. - A "EXCLUSÃO"

24 - As Palavras e os Dias

23 - OS GRANDES PORTUGUESES

22 - EXPRESSÕES DO CORPO

21 - O LEGADO DE MNEMOSINA

20 - Aqui se refere CONTOS DA IMAGEM

19 - FLAUSINO TORRES – Um Intelectual Antifascista

18 - A fidelidade do retrato

17 - Uma Leitura da Tradição

16 - Faz-te à Vida

15 - DE RIOS VELHOS E GUERRILHEIROS

14 - Cicerones de Universos, os Portugueses

13 - Agora que Falamos de Morrer

12 - A Última Campanha

11 - 0 simbolismo da água

10 - A Ronda da Noite

09 - MANDELA – O Retrato Autorizado

08 - As Pequenas Memórias

07 - Uma verdade inconveniente

06 - Ruralidade e memória

05 - Bibliomania

04 - Poemas do Calendário

03 - Apelos

02 - Jardim Lusíada

01 - Um Teatro de Papel


Entendo que todo o jornalismo tem de ser cultural, pois implica uma cultura cívica, a qual não evita que, na compulsão, quantas vezes da actualidade, se esqueçam as diferenças.

No jornalismo decididamente voltado para a área cultural, todos os acontecimentos são pseudoeventos, cruzando-se formas discursivas em que as micropráticas têm espaço de discussão.

Não sendo um género, o jornalismo cultural é contudo uma prática jornalística, havendo temas que podem ser focados numa perspectiva cultural especifica ou informativa, numa área não suficientemente rígida, embora de contornos definidos.

Assim o tenho vindo a praticar ao longo dos anos, quer na comunicação social quer, a partir de agora, neste espaço a convite da 'Unicepe'.

Leça da Palmeira, 23 de Setembro de 2006

        2007-04-21

Filomena Cabral    



ERAM CRAVOS, ERAM ROSAS





Um estado psicológico generalizado de dúvida, a falta de crença em geral, estado esse gerador de instabilidade, era já motivador das contradições do espírito genial de Antero: apelava à reestruturação de circunstâncias do pensamento de épocas anteriores. Na personalidade de Antero de Quental espelhava-se a dialéctica da crise e da superação, ao nível pessoal, da própria crise, daí que acentuasse que a "grande revolução" deveria ser moral – pensamento formulado sob a influência de Proudhon, defendia este a conciliação de socialismo e individualismo. Viver era, no entanto, para Antero - segundo Eça de Queirós " um génio que era um Santo" -, tensão e treino (askesis),logo a prática do ascetismo.


Se o mundo, em que havia nascido a "massa" vivente em 1974, era sinónimo de dificuldade, limitação do destino, dependência, o mundo que se lhe abria parecia trazer consigo possibilidades ilimitadas. Viver, praticamente, tornar-se-ia num desafio, nada seria impossível, e, em princípio, ninguém seria superior a alguém, principio em que assentara a rebelião das massas. Porém, a massa, indócil, perdeu a capacidade de ouvir, a indocilidade intelectual arrasta consigo a indocilidade política (esta, quanto a mim, um mal desejável). Para alguns o erro de Ortega Y Gasset terá sido o de considerar o liberalismo a "suprema generosidade". Ainda de Ortega é o conceito de que o homem que se define com o comportamento da maioria (massa), pretende ter direitos e não obrigações, acaba a "juventude" por tornar-se uma chantagem, utilizando uma moral negativa de um certo "tipo de europeu" que opta pela "simples negação". São ainda característica da crítica orteguiana paradoxos brilhantes em que se adivinha uma regressão atávica a tipos sociais ultrapassados. E insistindo em Ortega: o homem, a "massa", tem pouco tempo, não quer esperar, tudo há-de ser satisfação no acto. O valor, para si, é a novidade, pois só esta é sensação. Ser culto, acentua, por sua vez Jaspers, é parecer novo, saber discutir sem autêntica comunicação; o saber profissional transformou-se em tecnicismo, estendeu-se a capacidade do especialista, que transforma os métodos em resultados, do modo mais acessível. A perícia, dispersa por muitos, impossibilita a totalidade da consciência cultural (note-se que os enunciados de Jaspers remontam a meados do século passado, demonstrando assim como tudo continua quase igual a quase tudo).

O investimento na civilização tecnicista cria hostilidade ao passado, até ao culto da recordação histórica: a finalidade dos museus e bibliotecas é a de reforçar a ideia de força histórica, ainda que não-viva. É de Jaspers ainda a ideia de que a técnica e a massa se geraram reciprocamente: a existência hoje compreende-se com base em inovações tecnológicas. Note-se que a ideia de massa não representa uma simples pluralidade, sim "a totalidade dos seres humanos articulados no aparelho do regime existencial, de tal modo que forneçam a tónica, a vontade e o carácter das maiorias". É a mediania que exprime o que mais se compra e se consome, isso é previsível, quando se toma um conjunto determinado de seres humanos, conjuntos mutáveis; não existe uma massa única de todos os homens, aliás nunca houve ou haverá. Tal não significa que a massa não possa aspirar ao extraordinário, por não ingressar totalmente num regime existencial, pode o homem revoltar-se quando não pode ser ele próprio. Há, vê-se, uma duplicidade de impulsos que põe em risco o regime existencial universal. E essa ideia difusa de regime universal tenta dominar as forças que o ameaçam, o impulso de existência vital, a incondicionalidade existencial, classificados como “irracionais" e circunscritos a territórios específicos: a aventura, o exotismo, o jogo, o desporto, e agora, cada vez mais, o conflito disseminado, bélico ou não bélico. A angústia vital é combatida como indesejável, daí a tentativa da destruição da historicidade da existência. É Heidegger quem em "Ser e Tempo" desenvolve a ideia de que há história porque somos temporais e, em último caso, o próprio ser é tempo. Aspira-se – por sermos temporais, isto é, mortais – a uma vida tipificada, a um tipo de vitalidade comum levada ao máximo, e então desatam todos a querer ser "jovens"; num mundo em que tudo é função, quer-se ser jovem ou simular a juventude.


Escrevendo Jaspers num período entre as duas guerras (refiro-me á Grande Guerra e à Segunda Guerra Mundial), vejam os pontos de contacto com o que hoje vivemos, porque, muito simplesmente, Jaspers tinha a experiência da análise do comportamento humano (e este é sempre igual a si mesmo, em qualquer época). O homem, como indivíduo, enche-se de angústia, a "sinistra companheira do homem moderno". A quem não participa no que todos fazem, deixa-se só. É pela angústia que Jaspers se aproxima de Heidegger, a sua "Angst" é categoria fundamental do "Dasein", o existencial. A angústia é um estado afectivo que pode proporcionar a experiência do nada, "Nichts", pois que ao vencê-la dizemos não ter havido motivo para que nos angustiássemos. É sabido que o existencialismo – Heidegger sob a etiqueta do pessimismo e do niilismo – influenciaria Sartre. E, assim, com ele poderemos fechar o círculo onde entrámos com Antero e Ortega. Antero e Heidegger sentiram pesadamente a finitude do homem como ser para a morte, em experiências certamente diferentes, o primeiro aspirou à finitude, enquanto que o segundo encerra o ser na própria finitude.


Regresso ainda a Ortega e Gasset. Em 1930, reflecte na ideia da superação necessária para a sobrevivência do ideal europeu e congemina: "saberá a Europa libertar-se de sobrevivências, ou ficará prisioneira para sempre delas?" E notava ter já acontecido na História, que uma grande civilização morra por não poder substituir a sua ideia tradicional de Estado. Por seu lado, Paul Hazard, morto em 1944, um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial, reforçava já uma ideia de crise com o seu "A crise da consciência europeia". Se pegarmos em jornais do fim da primeira década e princípios da quarta década do século XX, vemos que só falam de "crise económica", que alarmava o mundo de então (até em Portugal, com a sucessão de governos a instalar a instabilidade a tal ponto que levou "naturalmente" ao regime autoritário de Salazar, que todos entenderam salvífico, note-se). Anseiam os povos pelo autoritarismo, depois de terem lutado para libertar-se dele? Creio que não; teme-se, na generalidade a responsabilidade, não será? Vejamos: estando o mundo em euforia económica, em 24 de Outubro de 1929, a bolsa novaiorquina foi abalada pelo lançamento no mercado de milh5es de títulos, provocando a baixa internacional de preços. A crise monetária atingiria a Europa em 1931; a crise do sub-consumo não deixaria de motivar governos ditatoriais, onde abundava a mão-de-obra, e que procuravam abrir-se ao mercado. É o caso do Japão, Itália e Alemanha. A Bélgica, a França, os Estados Unidos não recorreram ao processo, também Portugal, possuiam todos extensas colónias, ou no caso da América do Norte dominava os mercados da América Latina.


Alguns dos hipotéticos leitores poderão interrogar-se: que terá isto a ver com o 25 de Abril? Muito, acreditem, esta crise dividiu em blocos o campo das democracias, e indico ainda uma das consequências políticas nefastas: formaram-se e guerrearam-se os blocos do dólar, da libra e do ouro, levou ao"New Deal", de Roosevelt, e, nas ditaduras (salvo seja) a uma economia fechada, a tal autonomia económica (do grego 'autarkia'), assumida como forma metódica e estática.

A economia portuguesa instável fomenta o temor da crise, a energia vertiginosa conducente à "revolução dos cravos" esvaiu-se. Acredito que sempre a festejaremos. Duvido é da ausência do temor do futuro, oposto do clima revolucionário: a crença no futuro pela liberdade era o estandarte. Porém a liberdade não traduz meramente a inviabilização do presídio, por razões políticas, sim a decisão do próprio destino, responsabilidade, e o facto, a efeméride, qualquer que seja, uma vez isolado, torna-se abstracção. A continuidade dos factos, numa determinada ordem, leva à continuidade da duração, em História não se fazem experiências. Daí a necessidade do testemunho dos contemporâneos, actores inconscientes do seu papel de sujeito ou de observador, o tempo histórico não é uma sucessão de factos, por mais numerosos, destacam-se os acontecimentos monumentais, que estarão sempre visíveis, e que o tempo não apagará, antes pelo contrário, cola-se-lhes para que se não ignorem; e isto é já uma outra ordem dos factos, talvez os mais secretos, que permanecem na sombra do tempo e de cuja existência política os homens de uma determinada época não tiveram conhecimento, é o caso da história política e da história diplomática, levando à "destemporalização da História", pela diluição de aspectos que possam parecer irrelevantes, há como que uma atmosfera, um halo, a particularizar um momento do tempo; é o presente a fazer sempre a releitura da História, dai a perigosidade de viver o homem reduzido às sobrevivências contemporâneas.


Deixemo-nos guiar por Mnemosina, há-de transitar sempre pelo labirinto da história até ao lugar da memória futura; na rede virtual, todo o espaço foi tomado pela "verdade mentira", hoje o mundo afoga-se no simulacro. Procuremos, como sugeria Eça, “um emprego para a nossa alma".E volto a Antero no fim do texto: tentemos, como ele tentou, ser a voz da humanidade no tempo em que vivemos.


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