Risoleta
C Pinto Pedro
Não
é só uma vergonha. É, acima de tudo, uma
tristeza e uma revolta. E moralmente, um crime. Contra o
trabalho artístico, contra a sua preservação,
contra o património, contra a decência.
Estamos
a falar, essencialmente de duas coisas, ou melhor, três,
sendo que a primeira é a que condiciona as duas que se
seguem:
Um
belíssimo edifício modernista da autoria de Nadir
Afonso, precioso testemunho de arqueologia industrial em Vila
Real: a Fábrica de Panificação PanReal
nascida em 1965, um dos poucos edifícios que o
arquitecto e artista plástico deixou construídos.
Um
movimento de cidadãos em defesa do edifício, face
à sua decadência, pelo abandono do mesmo, e depois
por actos deliberados de destruição, a par com a
indiferença e recusa em considerar a fábrica
património cultural e nacional, por parte dos
responsáveis.
A realização
de um documentário (“1965 – Panreal, um
Edifício de Nadir Afonso”) com autoria de José
Paulo Santos, sobre este caso, registando ao longo de cerca de
três anos todos os movimentos em torno desta causa e
desta antiga casa do pão que chegou a produzir 80 000
pães por dia, hoje exemplo perfeito de destruição.
Não
deixando de ser um filme com claras intenções
documentais, consegue aliar o registo testemunhal a planos e
perspectivas não óbvios com eficaz efeito
estético.
Estando
a filmar o feio, isto é, o lixo, o entulho, a ruína
e a exterminação, consegue que os olhos guardem a
beleza da obra original e a generosidade e determinação
das pessoas que se reuniram em torno deste escândalo
regional e nacional, desde anónimos a arqueólogos
e arquitectos, tendo sido desenvolvidas, segundo Laura Afonso,
seis teses de mestrado sobre este edifício de Nadir, que
estudou e trabalhou ao lado de Oscar Niemeyer e de Le Corbusier.
Ao princípio, percorrendo o espaço com a câmara
de José Paulo Santos, cheirou-me a pão. Depois,
passou a cheirar-me a desgosto, a abandono, à violência
do dinheiro.
A câmara começa por deixar o
espectador a sós com as imagens e os sons, como quem se
retira para não interferir na sua emoção.
Vamos percorrendo o espaço olhando sozinhos os ferros
retorcidos e as madeiras suspensas do tecto, ainda sem saber o
que pensar. Mas pouco a pouco começamos a ter companhia:
um casal que ali festejou o seu casamento há trinta e tal
anos, e tenta, pelo meio do disforme e da memória,
reconstituir o espaço; pessoas que ali trabalharam ou
cujos pais lá ganharam, literalmente, o pão;
outros que vêm deixar o seu testemunho e o seu apoio, e
especialistas. Ainda, o som do piano de Manuel Sequeira Bastos,
piano que nunca vimos, som leve como a estrutura inicial
concebida por Nadir Afonso, como se estivesse a ser tocado ali
num lugar oculto aos nossos olhos, leve como o perfume do pão
que um dia se desprendeu dos fornos e subiu ao céu,
porque o aroma do pão é sempre perfume de céu.
Em alguns momentos, o piano soou pesado como uma consciência.
Os
fornos já não existem, foram esmagados por uma
máquina. Em breve, supõe-se, um edifício
feio e plastificado que ali se há de erguer, há de
vender pão plastificado feito não se sabe onde,
com farinhas moídas sabe-se lá de que maneira,
provenientes de cereal cultivado não se sabe em que país
nem com quantas modificações genéticas, pão
igual ao que poderemos comprar em qualquer outro edifício
semelhante a este em todas as partes do mundo e que não
reservará memórias de festa, nem de pai, nem de
mãe, nem de origem, nem de alegria, nem de um particular
sabor, porque tudo será igual.
Para
além do pão, é contado, por vários
testemunhos, que ali se cozia o que cada um precisasse, os doces
e os assados das festas. Agora, uma máquina pesadíssima
destruiu o Athanor onde se cozeu o amor que este gesto de
solidariedade pela população fraternamente
revelava. A Direção-Geral do Património
Cultural arquivou em Abril de 2018 o pedido de classificação
do edifício.
A
comissão de defesa foi informada pela Secretaria de
Estado da Cultura, que na sequência de um pedido de
licenciamento para ampliar uma superfície comercial, e
com base no parecer do Conselho Nacional de Cultura e do
Município (que declarou não estar interessado em
adquirir ou intervencionar o edifício), a Direção
Regional da Cultura do Norte teria emitido parecer positivo ao
projeto de ampliação. O qual implicava a
destruição da totalidade da obra de Nadir. O
supermercado ficou obrigado a expor réplicas da obra do
artista, e o documentário mostra a exposição
de uma obra amputada, por não caber no espaço
disponível. Suprema ironia, o máximo da humilhação
e do sarcasmo, cinismo, ignorância e total ausência
de sensibilidade artística e respeito pela propriedade
intelectual.
O
primeiro movimento clandestino de demolição deu-se
em 2017. Foi o princípio do fim. Perante a indiferença
da autarquia. E do país. Que não de uns quantos
conscientes do que representava e do que representa este
gesto.
Ao princípio, o dano não era
estrutural, era possível reconstruir, nem seria muito
difícil. Pouco a pouco, e sem intervenção
do tempo, mas de oculta mão assassina, passou a ser
irreversível.
A câmara
do realizador José Paulo Santos vai mostrando o trabalho
acelerado de Kali, a deusa da destruição. Não
valeu de nada a recolha de assinaturas, os pedidos de audiência,
as vigílias, as audiências.
Ganhou a
inércia, máscara de um rosto desconhecido.
Primeiro a lateral, depois o forno, depois a fachada, até
de Nadir restar... o nada.
Que autarquias são
estas que permitem o desaparecimento de obras de arte
patrimoniais? Que país é este que assiste
imóvel?
Como comentou uma especialista, no
documentário, o Estado Novo optava por fazer novo por
cima do antigo, fingindo restauro, mas na verdade escondendo.
Como prova, temos castelos novinhos em folha, como se tivessem
sido construídos neste século. Alguns países,
com receio deste desvirtuamento, como o Reino Unido, optam por
não mexer nas ruínas, deixando ficar como está.
O Portugal liberal da livre concorrência e da lei do
dinheiro, opta pela via da originalidade radical: deitamos
abaixo e fazemos hotéis, grandes superfícies,
parques de estacionamento e outras preciosidades “úteis”.
Apesar
da boa recepção feita por todos os partidos da
Assembleia da República à comissão que ali
se deslocou, a Panificadora “Panreal” de Vila
Real, concebida por Nadir Afonso na década de 60 foi
deitada abaixo em Fevereiro de 2020, porque um supermercado
precisava do espaço. Daquele espaço. Foram inúteis
as críticas da população, das associações,
dos profissionais, das pessoas da cultura e dos partidos. E tudo
isto teria sido evitado com uma assinatura tornando a
Panificadora património classificado.
Sem
custos. Visíveis. Nada sabemos do que se passa longe dos
nossos olhos. Contudo, essa classificação teria
sido o suficiente para evitar, defender e proibir a destruição
que foi sendo feita.
E o
filme? Até hoje, que eu saiba, esteve presente em 155
Festivais Internacionais de Cinema tendo somado 179 Prémios!
Um filme realizado a expensas do próprio autor. Quanto à
viúva, afirmou ao jornal “Público” que
Vila Real enterrou, com a demolição desta obra,
“um pedaço de Nadir” e “da sua
história”.
Laura
Afonso criticou ainda, segundo o mesmo jornal, “a postura
da câmara municipal, a qual disse «ter promovido um
concurso de ideias para o aproveitamento do edifício da
panificadora» e que «queria dar uma utilização
digna ao espaço», mas que depois «mudou de
ideias»”, acrescentando tratar-se da
“submissão do poder político ao poder
económico (...). A partir do momento em que o Lidl
manifestou interesse na Panreal, a atitude da câmara
alterou-se".
Para
cúmulo da desmoralização, no lugar do belo
edifício, segundo o realizador, existe apenas um parque
de estacionamento de um supermercado! Alisaram, alcatroaram e
puseram carros. No lugar do fantasma da Panificadora de Nadir
Afonso.
A concluir esta história sem fim feliz,
deixo o acesso ao trailer:
e à
entrevista do realizador à RTP:
Um dia, se puder, amigo
leitor, amiga leitora, veja o documentário. Uma hora
e vinte minutos de espanto e estupefacção,
pelas mais diversas razões. Da melhor à pior.
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