2023-09-06


“1965 – Panreal, um Edifício de Nadir Afonso”,
ou
UM MODO MUITO ORIGINAL DE TRATAR A CULTURA



Risoleta C Pinto Pedro



Não é só uma vergonha. É, acima de tudo, uma tristeza e uma revolta. E moralmente, um crime. Contra o trabalho artístico, contra a sua preservação, contra o património, contra a decência.


Estamos a falar, essencialmente de duas coisas, ou melhor, três, sendo que a primeira é a que condiciona as duas que se seguem:

  • Um belíssimo edifício modernista da autoria de Nadir Afonso, precioso testemunho de arqueologia industrial em Vila Real: a Fábrica de Panificação PanReal nascida em 1965, um dos poucos edifícios que o arquitecto e artista plástico deixou construídos.

  • Um movimento de cidadãos em defesa do edifício, face à sua decadência, pelo abandono do mesmo, e depois por actos deliberados de destruição, a par com a indiferença e recusa em considerar a fábrica património cultural e nacional, por parte dos responsáveis.

  • A realização de um documentário (“1965 – Panreal, um Edifício de Nadir Afonso”) com autoria de José Paulo Santos, sobre este caso, registando ao longo de cerca de três anos todos os movimentos em torno desta causa e desta antiga casa do pão que chegou a produzir 80 000 pães por dia, hoje exemplo perfeito de destruição.

Não deixando de ser um filme com claras intenções documentais, consegue aliar o registo testemunhal a planos e perspectivas não óbvios com eficaz efeito estético.


Estando a filmar o feio, isto é, o lixo, o entulho, a ruína e a exterminação, consegue que os olhos guardem a beleza da obra original e a generosidade e determinação das pessoas que se reuniram em torno deste escândalo regional e nacional, desde anónimos a arqueólogos e arquitectos, tendo sido desenvolvidas, segundo Laura Afonso, seis teses de mestrado sobre este edifício de Nadir, que estudou e trabalhou ao lado de Oscar Niemeyer e de Le Corbusier. Ao princípio, percorrendo o espaço com a câmara de José Paulo Santos, cheirou-me a pão. Depois, passou a cheirar-me a desgosto, a abandono, à violência do dinheiro.

A câmara começa por deixar o espectador a sós com as imagens e os sons, como quem se retira para não interferir na sua emoção. Vamos percorrendo o espaço olhando sozinhos os ferros retorcidos e as madeiras suspensas do tecto, ainda sem saber o que pensar. Mas pouco a pouco começamos a ter companhia: um casal que ali festejou o seu casamento há trinta e tal anos, e tenta, pelo meio do disforme e da memória, reconstituir o espaço; pessoas que ali trabalharam ou cujos pais lá ganharam, literalmente, o pão; outros que vêm deixar o seu testemunho e o seu apoio, e especialistas. Ainda, o som do piano de Manuel Sequeira Bastos, piano que nunca vimos, som leve como a estrutura inicial concebida por Nadir Afonso, como se estivesse a ser tocado ali num lugar oculto aos nossos olhos, leve como o perfume do pão que um dia se desprendeu dos fornos e subiu ao céu, porque o aroma do pão é sempre perfume de céu. Em alguns momentos, o piano soou pesado como uma consciência.


Os fornos já não existem, foram esmagados por uma máquina. Em breve, supõe-se, um edifício feio e plastificado que ali se há de erguer, há de vender pão plastificado feito não se sabe onde, com farinhas moídas sabe-se lá de que maneira, provenientes de cereal cultivado não se sabe em que país nem com quantas modificações genéticas, pão igual ao que poderemos comprar em qualquer outro edifício semelhante a este em todas as partes do mundo e que não reservará memórias de festa, nem de pai, nem de mãe, nem de origem, nem de alegria, nem de um particular sabor, porque tudo será igual.


Para além do pão, é contado, por vários testemunhos, que ali se cozia o que cada um precisasse, os doces e os assados das festas. Agora, uma máquina pesadíssima destruiu o Athanor onde se cozeu o amor que este gesto de solidariedade pela população fraternamente revelava. A Direção-Geral do Património Cultural arquivou em Abril de 2018 o pedido de classificação do edifício.


A comissão de defesa foi informada pela Secretaria de Estado da Cultura, que na sequência de um pedido de licenciamento para ampliar uma superfície comercial, e com base no parecer do Conselho Nacional de Cultura e do Município (que declarou não estar interessado em adquirir ou intervencionar o edifício), a Direção Regional da Cultura do Norte teria emitido parecer positivo ao projeto de ampliação. O qual implicava a destruição da totalidade da obra de Nadir. O supermercado ficou obrigado a expor réplicas da obra do artista, e o documentário mostra a exposição de uma obra amputada, por não caber no espaço disponível. Suprema ironia, o máximo da humilhação e do sarcasmo, cinismo, ignorância e total ausência de sensibilidade artística e respeito pela propriedade intelectual.


O primeiro movimento clandestino de demolição deu-se em 2017. Foi o princípio do fim. Perante a indiferença da autarquia. E do país. Que não de uns quantos conscientes do que representava e do que representa este gesto.

Ao princípio, o dano não era estrutural, era possível reconstruir, nem seria muito difícil. Pouco a pouco, e sem intervenção do tempo, mas de oculta mão assassina, passou a ser irreversível.


A câmara do realizador José Paulo Santos vai mostrando o trabalho acelerado de Kali, a deusa da destruição. Não valeu de nada a recolha de assinaturas, os pedidos de audiência, as vigílias, as audiências.


Ganhou a inércia, máscara de um rosto desconhecido. Primeiro a lateral, depois o forno, depois a fachada, até de Nadir restar... o nada.

Que autarquias são estas que permitem o desaparecimento de obras de arte patrimoniais? Que país é este que assiste imóvel?

Como comentou uma especialista, no documentário, o Estado Novo optava por fazer novo por cima do antigo, fingindo restauro, mas na verdade escondendo. Como prova, temos castelos novinhos em folha, como se tivessem sido construídos neste século. Alguns países, com receio deste desvirtuamento, como o Reino Unido, optam por não mexer nas ruínas, deixando ficar como está. O Portugal liberal da livre concorrência e da lei do dinheiro, opta pela via da originalidade radical: deitamos abaixo e fazemos hotéis, grandes superfícies, parques de estacionamento e outras preciosidades “úteis”.


Apesar da boa recepção feita por todos os partidos da Assembleia da República à comissão que ali se deslocou, a Panificadora “Panreal” de Vila Real, concebida por Nadir Afonso na década de 60 foi deitada abaixo em Fevereiro de 2020, porque um supermercado precisava do espaço. Daquele espaço. Foram inúteis as críticas da população, das associações, dos profissionais, das pessoas da cultura e dos partidos. E tudo isto teria sido evitado com uma assinatura tornando a Panificadora património classificado.


Sem custos. Visíveis. Nada sabemos do que se passa longe dos nossos olhos. Contudo, essa classificação teria sido o suficiente para evitar, defender e proibir a destruição que foi sendo feita.


E o filme? Até hoje, que eu saiba, esteve presente em 155 Festivais Internacionais de Cinema tendo somado 179 Prémios! Um filme realizado a expensas do próprio autor. Quanto à viúva, afirmou ao jornal “Público” que Vila Real enterrou, com a demolição desta obra, “um pedaço de Nadir” e “da sua história”.


Laura Afonso criticou ainda, segundo o mesmo jornal, “a postura da câmara municipal, a qual disse «ter promovido um concurso de ideias para o aproveitamento do edifício da panificadora» e que «queria dar uma utilização digna ao espaço», mas que depois «mudou de ideias»”, acrescentando  tratar-se da “submissão do poder político ao poder económico (...). A partir do momento em que o Lidl manifestou interesse na Panreal, a atitude da câmara alterou-se".


Para cúmulo da desmoralização, no lugar do belo edifício, segundo o realizador, existe apenas um parque de estacionamento de um supermercado! Alisaram, alcatroaram e puseram carros. No lugar do fantasma da Panificadora de Nadir Afonso.

A concluir esta história sem fim feliz, deixo o acesso ao trailer:

 e à entrevista do realizador à RTP:

Um dia, se puder, amigo leitor, amiga leitora, veja o documentário. Uma hora e vinte minutos de espanto e estupefacção, pelas mais diversas razões. Da melhor à pior.




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