2023-08-02
“CONTINUAVAM A PASSEAR LENTAMENTE…”


Risoleta C Pinto Pedro



Uma das características dos espanhóis é a energia com que falam, como se tivessem acabado de pôr pilhas novas. No entanto, a visão que cada visitante tem de um dado país é totalmente subjectiva e é esse o encanto dos livros de viagens.

No livro de Júlio César Machado, “EM HESPANHA, Scenas de viagem”, de 1862, descreve os espanhóis assim: «continuavam a passear lentamente como de tarde, como á noite, e como de madrugada, segundo já lhes contei; não sei se vão em extasi, se com pachorra, mas de vagar vão sempre: já ouvi dizer que n’outro tempo a preguiça dos hespanhoes era tal que não se podia alcançar da gente de Madrid o varrer a rua na frente da sua porta, e que os padeiros que levavam pão á cidade não saíam das aldeas em chovendo, sendo preciso sempre mandar-lhe lá a justiça. O doce far niente que anda de ordinário attribuido aos italianos tem pois também para os hespanhoes suas razões de encanto, e, se já varrem as ruas, e os padeiros saem já com chuva, vão, todavia, devagar… mesmo quando chove.»

Apesar da energia com que falam, isto que aqui se diz não é falso. A sensação que tenho ao vê-los nas ruas, nas esplanadas, nos cafés, nas compras, é de que não têm pressa, ou não trabalham, ou estão de férias, enfim, que têm todo o tempo do mundo. Não vejo isto como preguiça, mas como forma convivencial de estar na vida. As ruas, praças e largos estão sempre cheias de… espanhóis! Para nós é surpreendente, que vemos a nossa capital invadida por estrangeiros, sendo que isso não é necessariamente mau, visto que foram eles que trouxeram vida a uma cidade que esmorecia e desaparecia ao pôr-do-sol. O problema foi o exagero. Sempre gostei de ouvir falar estrangeiro em Lisboa, mas actualmente é como se a cidade tivesse sido assaltada na nossa ausência. Nada contra turistas, é apenas uma questão de número, de equilíbrio, de habitabilidade. Estamos transformados num Parque de diversões para turistas.

Isto não acontece em Madrid, os madrilenos ocupam todos os espaços, e os turistas são em número aceitável, pelo que não têm de competir com eles. A cidade pertence a quem lá vive e claramente eles vivem na sua cidade.

Quanto a nós, quando cá vivíamos sem hordas de turistas aqui despejados, escondíamo-nos, a Baixa era uma cidade- fantasma, e agora que a cidade se abriu para os habitantes, os habitantes não somos nós. Não acredito que trabalhemos mais do que os espanhóis, qual será o seu segredo para parecerem estar permanentemente em férias, a viver a vida, a conviver uns com os outros… na sua cidade?

No Porto, em que sempre encontrei parecenças com Madrid e Londres, sendo que cada cidade tem as suas particularidades, sente-se mais este carinho por estar na rua com os outros, sem pressa. A zona Ribeirinha já está muito descaracterizada em termos humanos, por causa do excesso, mas o resto da cidade vai sobrevivendo ao negócio turístico.

Será Madrid um Paraíso? Não, não é, tem também os seus problemas, nomeadamente pessoas sem-abrigo a dormirem nas ruas. Se lá for o Papa, talvez os retirem temporariamente, para fingir que não existem, mas seria só mascarar as dificuldades dessas pessoas; assim, a chaga está à vista. Têm as suas contradições.

Estive lá em pleno período eleitoral, e no domingo, dia de eleições, ainda lá estávamos. Os cartazes dos partidos são discretos e não conflituam com a paisagem, nada daqueles enormes cartazes a inundar rotundas durante meses e meses depois das eleições, e apenas uma vez fomos abordados por alguém a distribuir discretos panfletos de um dos partidos. Vi duas paragens de autocarro grafitadas contra um dos candidatos, coisa discreta, e nada mais. Quem não soubesse, não se aperceberia do momento eleitoral. E, no entanto, sabemos como foi participado, discutido e acalorado.

Para além da existência dos sem-abrigo, apenas mais um episódio arrefeceu corações: no metro havia dois leitores, um lia um livro em espanhol e outro em francês, de vez em quando faziam uma pequena tertúlia sobre o que estavam lendo, em português. Isto não provocou o mínimo interesse a quem se encontrava na carruagem, porque todos, mas todos mesmo, estavam debruçados sobre aquilo que já vai sendo uma extensão do humano a caminho de vir a ser transumano. Em cada mão, uma máquina, em cada par de ouvidos uns fones. Cá também acontece, talvez ligeiramente menos. Estávamos tão encantados com as árvores que se estendem por toda a cidade a ponto de não haver uma rua não arborizada, que nos esquecemos do outro lado do espelho.

Saímos do metro e continuámos a passear lentamente pela cidade.


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