Dizia António Telmo que a contemporaneidade se caracteriza,
entre outras coisas, pelo infantilismo. O infantilismo está
presente numa cultura lúdica que nos cerca, como por
exemplo a “trotinetomania”, que deixou de ser brinquedo de
crianças e passou a substituir, nas cidades, o natural
andar, em adultos muito capazes de o fazer e sem dúvida a
médio e longo prazo prejudicados, em termos de saúde, por
deixarem de o fazer. Com o caos que se conhece: trotinetas
abandonadas por todo o lado: nas estradas, nos passeios,
nos jardins. Sofremos, porém, de outra maleita, que é o
titanismo. Encontramo-lo na obsessão do maior e do mais
alto: dos prédios às pizzas.
Só por si, os nomes atribuídos, quer ao navio
posteriormente afundado em 1912, quer ao submergível
recentemente noticiado, expressam esta marca que nos
acompanha, a doença do gigantismo. Não tem a ver com o
ultrapassarmo-nos, o que é sempre admirável, por outro
lado, o mito de Ícaro é velho como a humanidade, houve
sempre um ser humano a querer chegar ao sol ou subir a uma
montanha intransponível, mas há algumas diferenças. Para
viajar no Titanic bastaria poder pagar a viagem, ainda que
em terceira classe, dispor desse poder e de algum tempo;
para descer junto das suas ruínas basta ter dinheiro. Para
quem tiver medo ou claustrofobia, também será necessário
ter coragem, e no facto já encontro algum trabalho de
transcendência. Não pretendo aqui fazer uma avaliação
moralista da situação, mas apenas olhá-la sob diferentes
prismas.
Na mitologia, que é um lugar onde é sempre recomendável
regressarmos, Oceano, ele próprio um Titã, apoiou Zeus na
luta contra os outros Titãs. Tiveram, pois, o céu e o mar
contra eles. Não acabaram bem. Não se trata aqui de
deixarmo-nos travar pela superstição, todos nós cometemos
imprudências e se não o fizéssemos não teríamos passado da
cepa torta. Mas trata-se de conhecer bem a mitologia que
enforma a nossa cultura. Até o positivista Freud usou, e
bem, os mitos, para melhor conhecer e dar a conhecer a
psique da humanidade.
Não se trata de olharmos com a arrogância de quem se sente
seguro, aqueles que pereceram. Até porque nunca nada, nem
ninguém, está seguro em lado nenhum. Trata-se de aprender a
relativizar o que nos é servido e aprendermos a ler o que
se passa no mundo.
Pela mesma altura em que isto aconteceu, mais uma vez
centenas de migrantes morreram ao largo da Grécia, mas isso
não mereceu honra de todos os jornais, a toda a hora,
durante dias seguidos. Não quero com isto dizer que uns
tenham mais valor do que outros, mas nos media, claramente,
têm-no. Contudo, todos merecem, igualmente, a nossa
atenção. Uns enfrentam o mar sem o mínimo de condições
humanas e de segurança, sujeitando-se a perigos em busca de
uma vida melhor. Alguns rodeiam-se de todas as condições
técnicas e científicas e ainda assim, como os outros,
soçobram. Uns chegam aos nossos ecrãs. Os outros mal
afloram às notícias, não há espaço para eles, como não o há
nos barcos. Mas todos deveriam ter a nossa compaixão,
porque sem ela seremos muito piores que os piores da
mitologia.
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