2023-07-05
TITANOMANIA E COMPAIXÃO


Risoleta C Pinto Pedro



Dizia António Telmo que a contemporaneidade se caracteriza, entre outras coisas, pelo infantilismo. O infantilismo está presente numa cultura lúdica que nos cerca, como por exemplo a “trotinetomania”, que deixou de ser brinquedo de crianças e passou a substituir, nas cidades, o natural andar, em adultos muito capazes de o fazer e sem dúvida a médio e longo prazo prejudicados, em termos de saúde, por deixarem de o fazer. Com o caos que se conhece: trotinetas abandonadas por todo o lado: nas estradas, nos passeios, nos jardins. Sofremos, porém, de outra maleita, que é o titanismo. Encontramo-lo na obsessão do maior e do mais alto: dos prédios às pizzas.

Só por si, os nomes atribuídos, quer ao navio posteriormente afundado em 1912, quer ao submergível recentemente noticiado, expressam esta marca que nos acompanha, a doença do gigantismo. Não tem a ver com o ultrapassarmo-nos, o que é sempre admirável, por outro lado, o mito de Ícaro é velho como a humanidade, houve sempre um ser humano a querer chegar ao sol ou subir a uma montanha intransponível, mas há algumas diferenças. Para viajar no Titanic bastaria poder pagar a viagem, ainda que em terceira classe, dispor desse poder e de algum tempo; para descer junto das suas ruínas basta ter dinheiro. Para quem tiver medo ou claustrofobia, também será necessário ter coragem, e no facto já encontro algum trabalho de transcendência. Não pretendo aqui fazer uma avaliação moralista da situação, mas apenas olhá-la sob diferentes prismas.

Na mitologia, que é um lugar onde é sempre recomendável regressarmos, Oceano, ele próprio um Titã, apoiou Zeus na luta contra os outros Titãs. Tiveram, pois, o céu e o mar contra eles. Não acabaram bem. Não se trata aqui de deixarmo-nos travar pela superstição, todos nós cometemos imprudências e se não o fizéssemos não teríamos passado da cepa torta. Mas trata-se de conhecer bem a mitologia que enforma a nossa cultura. Até o positivista Freud usou, e bem, os mitos, para melhor conhecer e dar a conhecer a psique da humanidade.

Não se trata de olharmos com a arrogância de quem se sente seguro, aqueles que pereceram. Até porque nunca nada, nem ninguém, está seguro em lado nenhum. Trata-se de aprender a relativizar o que nos é servido e aprendermos a ler o que se passa no mundo.

Pela mesma altura em que isto aconteceu, mais uma vez centenas de migrantes morreram ao largo da Grécia, mas isso não mereceu honra de todos os jornais, a toda a hora, durante dias seguidos. Não quero com isto dizer que uns tenham mais valor do que outros, mas nos media, claramente, têm-no. Contudo, todos merecem, igualmente, a nossa atenção. Uns enfrentam o mar sem o mínimo de condições humanas e de segurança, sujeitando-se a perigos em busca de uma vida melhor. Alguns rodeiam-se de todas as condições técnicas e científicas e ainda assim, como os outros, soçobram. Uns chegam aos nossos ecrãs. Os outros mal afloram às notícias, não há espaço para eles, como não o há nos barcos. Mas todos deveriam ter a nossa compaixão, porque sem ela seremos muito piores que os piores da mitologia.


risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/
http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/
http://escritacuracriativa.blogspot.pt/
http://www.facebook.com/risoleta.pedro
https://www.facebook.com/escritoraRisoletaCPintoPedro/
http://aluzdascasas.blogspot.com/2020/03/o-vale-do-infante.html
http://risoletacpintopedro.wix.com/risoletacpintopedro

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS