Anda um pássaro a fazer tropelias no meu jardim. Para além de constantemente bicar o
telheiro em busca sabe-se lá de quê, telheiro que não prima pela solidez e resistência, ainda
vai dando cabo dos limões. Eu tinha a convicção de que os pássaros gostavam
preferencialmente de frutos doces e que quanto mais bicado estivesse um fruto mais maduro
e doce ele era. Tive ocasião, desde a infância, quando subia às árvores, de confirmar este
princípio. Mas as coisas mudaram. Que leva um passar a debicar um limão a ponto de o
desventrar e de este cair da árvore? Talvez esta nova moda dos "detoxes" a que já nem os
pássaros escapam? Enigma à parte, a verdade é que têm conseguido irritar-me um bocadinho,
mas nada que se compare à alegria de os ver a sobrevoar o jardim, a pousar nas árvores, a
organizar concertos para mim. Por isso, vou fechando os olhos aos disparates.
Nem a propósito, caem-me os olhos, numa livraria, sobre uma edição nova da Estrada de
Santiago, prefaciada, vá-se lá saber porquê, por Marques Mendes, sendo minha a
responsabilidade desta ignorância, pois não cheguei a abrir o livro. O que acabei por fazer na
biblioteca onde vivo uma parte da minha semana, e onde existe uma terceira edição de 1924,
publicada por Livrarias A’llaud & Bertrand. Trata-se, para quem não conheça, de um livro de
contos, nenhum dos quais sendo nomeado com o que dá o título ao livro, e o primeiro, “A
Maldição Cubra os Pardais” tem por tema algo muito parecido com o problema com que me
debato actualmente no meu pátio interior alentejano-judeo-andaluz no coração de Lisboa.
Contém este livro o célebre “O Malhadinhas” e também uma versão nova do “Valeroso
Milagre”. Encontrava-se Aquilino, por esta altura, na direcção da Seara Nova, uma pausa na
sua vida aventurosa que vale a pena conhecer.
São histórias deliciosamente contadas, como sabe quem conhece a escrita de Aquilino, com
uma riqueza vocabular que toca muitas vezes a estranheza, pela dificuldade do leitor em
dominar a complexidade lexical, cheia de regionalismos. Por essa razão quis, em tempos, ler
Aquilino em francês, para entender de que forma é possível transmitir o seu estilo numa língua
diferente.
Mas voltando à Estrada de Santiago e aos pássaros, despertou-me a atenção logo o primeiro e
delicioso conto, como já referi intitulado “A Maldição Cubra os Pardais”, em que a população
de um povoado persuade, não sem dificuldade, o abade da aldeia a proceder à excomunhão
dos pardais, por causa dos estragos causados nas culturas. Um seminarista que assiste à
conversa, indignado, assim se dirige aos agricultores:
« […] mas vocês nunca estão contentes. Há sol, venha chuva; há chuva, é tempo de vir sol. Está
o ano farto, pelo que dizem, as paveias quebram de gradas, à-d’Elrei contra os pardais. E
sabem, são eles que lhes mondam os campos de muita lagarta, muito verme, muito insecto
que sem o bico diligente e ladino lhes arrasariam as colheitas. O que lhes levam é a soldada, a
pobre soldada de bons jornaleiros. Deus lhes perdoe…».
Eu já lhes perdoei há muito, mesmo sem Aquilino, mas Aquilino despertou-me para os
modernos métodos de excomungar pardais: chamam-se químicos, dispensam procissões e
padres, mas têm os seus cultores.
Venham, passarinhos, ao meu quintal, e sirvam-se de todos os limões que por cá há. Não têm
químicos, são limões honestos. É que acabei de perceber este interesse dos pássaros pelos
limões, talvez antídoto contra os venenos de todos os tipos que por aí abundam…
Foi a minha estrada, não de Santiago, mas de Damasco, revelada por um limoeiro iluminado
por pássaros desesperados de final de ciclo. Ou talvez não…
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