Vive-se actualmente um intolerável, mas não inexplicável, pudor. O pudor do esforço, o pudor
da dificuldade, o pudor das palavras, o pudor da verdade.
Há tempos, uma amiga muito ligada aos livros, até por motivos profissionais, espantava-se por
assistir a um momento em que eu lia histórias a um menino de três anos, cujo texto por página
era extenso e ele mantinha o interesse e a concentração, sem esforço. Um livro após outro. Às
vezes, frequentemente, a seu pedido, acima da dezena de livros.
No outro dia, uma ex-aluna minha reconheceu a minha voz, ao fim de muitos anos, apesar de
eu não estar visível, pois recordou as aulas e os primeiros momentos em que eu lia textos
literários, clássicos, nem sempre fáceis. E ela e outros, os que podiam, como eu ia lendo por
episódios, já que a aula não podia ser integralmente dedicada à leitura em voz alta, pois havia
um programa, eles, impacientes em conhecer a continuação, iam procurar os livros nas
livrarias. Os que não podiam fazê-lo, procuravam nas bibliotecas ou conformavam-se em
acompanhar as minhas leituras diárias. Esta aluna não é caso único. Vários ex-alunos se
recordam e mencionam como isso condicionou o seu gosto pela leitura e pela literatura. Nem
sempre os resultados são visíveis ou imediatos, como o caso de uma outra, que durante dois
anos lectivos se recusou a fazer o seu diário literário, assumindo ser penalizada em termos de
avaliação, e passados uns tempos, já fora da escola, e sem nenhum tipo de obrigação,
começou a fazê-lo. Comunicou-mo, sabendo que eu iria ficar feliz. Isto, para explicar que a
escola não tem de ter pudor em lidar ou fazer lidar com algo que lhe pareça acima da moderna
facilidade. O esforço, a dificuldade, a ciência, a criação, a arte, o estudo, a investigação (não
me refiro à “pesquisa” que se limita a mera cópia da Internet sem baias, sem referências, sem
limites), as palavras eruditas, os textos clássicos e o desafio a pensar devem estar no centro da
aprendizagem. Informática sim, apenas como auxiliar, nunca o centro. Mas o que temos nós?
Os testes de Português com resposta múltipla, a gramática quase expulsa do ensino, os
clássicos pouco a pouco expulsos também. E atenção, que nunca fui uma fanática da
gramática, mas a partir de certa altura é preciso pensá-la, como em relação a tudo.
Amigos que ainda se encontram no activo, contam-me de “recomendações” para se evitar
certas passagens nos textos literários que têm alimentado a nossa cultura. Como quando o
Canto IX não existia n’Os Lusíadas, por outras razões. Agora lêem-se os séculos anteriores à luz
do século XXI. Não há o esforço para o aluno se situar lá e perceber como se pensou antes. Um
empobrecimento. No teatro, como se sabe, há uma tentativa de homicídio a partir de dentro.
Um suicídio. Teatro deixa de ser fingimento e criação e máscara, para se tornar pura
representação literal. O Padre António Vieira é tratado como um desprezível esclavagista, o
Eça como um horrendo racista e por aí fora. Se aí aparecessem, eram despachados à pedrada.
No outro dia, num grupo de senhoras de um Lar com quem me reúno semanalmente,
senhoras por volta dos oitenta e noventa e tal, afirmavam detestar que lhes chamem idosas,
quando o que são é velhas, com toda a dignidade que a palavra contém. Ou continha.
Voltemos ao pudor. Não se pode chamar às coisas os nomes que elas têm, os textos devem ser
amputados, as crianças poupadas a qualquer esforço, e tudo se apresenta mastigado e
digerido, pronto a… evacuar. É que já não é possível saborear, porque a comida triturada não
precisa ser mastigada, o sabor é despachado a toda a velocidade e tudo isto numa enorme
correria a caminho… de nada.
As crianças, em geral, não estão preparadas para as dificuldades da vida. Se não temos
saudades da forma como estas minhas amigas do Lar não tiveram infância, também não era
necessário prolongar o infantilismo da humanidade até… à morte.
Foge-se da dor, contorna-se o problema, evita-se o pensar, finge-se que a morte não existe,
resume-se o texto, omite-se o desconforto, faz-se barulho para não se ouvir o sofrimento,
fazem-se seguros para tudo e mais alguma coisa, colam-se os olhos no tm para não ver o
mundo real, e faz-se de conta que isto é a felicidade.
Quero acreditar que ainda estamos a tempo…
Sim, talvez estejamos. O mesmo menino de três anos acima mencionado, no outro dia,
perante a expectativa gorada de pôr os pratos na mesa, pois um adulto se lhe antecipara,
desabafou: «Estou farto!». Achámos graça, mas da parte dele, que seriedade nesta
exclamação!
Assim espero. Que sejam eles a fartar-se do tapete vermelho permanentemente desenrolado
aos seus pés e reclamem para si o esforço, o trabalho, o obstáculo e o risco, e tudo aquilo a
que têm direito. Como a felicidade que se obtém a partir da resolução de um problema.
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