Foi em Junho que regressei ao Porto. Já aqui descrevi algumas impressões, mas a cidade é tão rica e bela que poderia prosseguir com uma série de crónicas. Não o farei, mas como omitir a lembrança dos belos azulejos, fotografados enquanto percorria as suas ruas? Ou o assistir a sucessivas provas de francesinhas até à descoberta de que a melhor fora a saboreada no mais modesto lugar, a descoberta de pequenas lojas de discos espreitando o interior ou aproveitando para explorar com detalhe os pormenores da rua, mirando da terra ao céu, observando a cidade seguindo com o olhar os passos dos que passam. Ainda respirar os museus, alguns já conhecidos, como a Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, nunca suficientemente visitada, pela qualidade, nomeadamente a poderosa obra de Aurélia de Souza e a de sua irmã Sofia, mas também Silva Porto, Carlos Reis, Malhoa, Roque Gameiro e outros; alguns foram vistas novas, como o da Misericórdia, com uma soberba colecção de retratos, e a Fundação Maria Isabel Guerra Junqueiro e suas surpreendentes colecções. Outros ficaram para a próxima, ou por já conhecidos, ou por estarem fechados, mas principalmente porque não se consegue, em quatro dias, concentrar um tão vasto mundo. Era preciso deixar tempo e passos para os jardins. Não conhecia, e disso me penitencio, o Jardim da Cidade, onde me senti num bosque do norte da Europa, sempre à espera de divisar um celta ao fundo da alameda, ou ao menos um druida, mas já conhecia alguns dos vários pequenos grandes jardins bem cuidados espalhados pela cidade, o jardim do Palácio de Cristal com sua vista de esplendor e as garbosas aves mostrando encantos aos deslumbrados visitantes. Ainda o encantador jardim da já acima citada Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, um refúgio para quem necessitar, um lugar verde e belo cheio de recantos para descansar pernas depois da visita à Casa, para lavar o olhar impresso de tanta beleza.
O metro mostra parte da cidade, como animal subterrâneo cansado da terra atraído pela cor e pela luz. Cruzamo-nos com ele quando atravessamos a ponte Luís I, uns para lá outros para cá, embalados pela doce e irreverente melodia da pronúncia do norte. Ou sulcamos num barco o rio que, tal como a ponte, nos mostra as duas margens. Por alguns momentos estamos no líquido caminho do meio.
Sentir o mar a transformar-se em rio (ou o contrário?) percorrendo a pé o caminho paralelo à água, desde o Parque da Cidade até à Ribeira, e passando, durante o percurso, por todas as estações, começando com a chuva do Inverno e chegando com um sol de Verão e a roupa e os cabelos entretanto secos. Chegados à Ribeira com sua chusma de turistas tornando a cidade igual a todas as outras cidades onde enxames aterram sem critério, tornando-se e tornando o espaço numa espécie de franchising sempre igual, rapidamente nos pusemos em fuga para onde a cidade é ela e os fantasmas a habitam.
Um Camilo ao início da sua rua cria uma saudade de algo nunca visto, mas vivido nos livros dele e dos seus contemporâneos, no Centro Português de Fotografia ainda o eco da sua reclusão, e a memória do enorme Sampaio Bruno no cemitério Prado do Repouso, onde o túmulo desta espécie de santo do pensamento, lembra tempos heróicos e sérios onde tudo se jogou, do execrável ao mais sublime. Quis ter ido à Biblioteca, à sua Biblioteca, aquela de que foi director, mas noutra altura será, com tempo para sentar, ler e recordar o não vivido, no entanto conhecido de um saber misterioso que passa por nós quando respiramos o ar da cidade, oxigénio antigo e vivificante velho de séculos, permeado de pensamentos e emoções daqueles sem os quais aqui não estaríamos hoje.
Na rua da Sinagoga, por onde passámos, o Museu Judaico fechava lamentavelmente ainda as portas, nostálgico, no receio pandémico.
Passámos, de autocarro, nos Guindais, lugar cheio de potencial e carência, e uma manhã fizemos a descida até ao rio pelas Fontainhas, percurso alheio aos turistas, aquele Porto intacto de tão velho, ao mesmo tempo belo e decadente, literalmente a cair, mas vivo e com cheiro antigo. Aí, sem chusmas de gente, não sabíamos que mais desejávamos, se a recuperação que a dignidade e a beleza desta parte da cidade exigiria, se o anonimato que a preserve da especulação imobiliária de que Lisboa já dificilmente recuperará: Alfama, Bairro Alto, já só são bilhetes postais para turistas; arrendar ou comprar casa na cidade e mesmo arredores, só para muito ricos ou estrangeiros igualmente com posses, e não é fácil aos habitantes manterem-se nas suas moradas, perante a cobiça de alguns senhorios ou a sedução exercida pelos compradores.
Que São Bruno, o santo sábio obscuro, preserve o nobre Porto desta praga brutal e pagã, adoradora de um bezerro vazio chamado turismo de massas.
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