2022-05-04
A DANÇA SOB UMA LUA RENDADA


Risoleta C Pinto Pedro





Não parece, mas faz tudo parte do mesmo filme. Não é um filme projectado em tela, nem sequer em vídeo, é uma projecção física da minha alma a partir de experiências, encontros, objectos.

O filme poderia ter por título algo como o desfazer de um mundo, ou, mais propriamente, o seu refazer. Os protagonistas seriam um casal dançando, um lençol bordado a sair de uma arca e umas animações baseadas em lengalengas tradicionais. Passeando com os cães num dia à noite, noite de lua cheia, encontrei, num largo deserto de uma cidade que poderia ser o Porto ou qualquer outra cidade, um casal que dançava lentamente ao som de uma música que saía de um gravador a pilhas trazido para o efeito. Poderia ser uma cena de filme e era-o. O filme que eu projecto nos meus dias. Dançavam anacronicamente num largo vazio e como espectadores apenas a lua, eu e os cães, que passámos discretamente como quem não vê. Para os cães a cena não tinha nada de surpreendente, os cães não se surpreendem com facilidade.

Uns dias antes, arrumando antigas arcas de família, encontrei lençóis bordados que já conhecia, mas que nesse dia me assaltaram na perfeição, no pormenor, na paciência que ali adivinhei no trabalho. Ainda um dia se há-de valorizar o labor anónimo de tantas mulheres de umas quantas gerações anteriores à minha, que com seus dedos criavam beleza nas casas: nas camas, nas casas de banho, sobre os móveis, nas cozinhas. Com seus crochets, seus bordados à mão, à máquina, delicados, longuíssimos, quase impossíveis de imaginar se não estivessem ali expostos. Um dia, estes trabalhos de tão diversos estilos e gostos talvez formem um conjunto unificado pela paciência, pela solidão, pelo amor, pela coragem, pela invenção, pela paixão. Pelo tédio? Serão, então, expostos num grande evento de trabalhos anónimos de mulheres sozinhas, cansadas, sobrecarregadas, e ainda assim não desistindo da beleza e da criação. Chamar-se-lhes-á “Borda Vida” e valerão fortunas. As suas autoras talvez já cá não estejam, mas estarão noutro lugar a executar outros trabalhos com fios de nuvens e cabelos de anjos.

Conheço vários casos de mulheres que deixaram as suas arcas plenas de rendas e bordados que me comovem até às lágrimas e cujo destino é uma incógnita, sendo que o pior que poderá acontecer é permanecerem fechados, ignorados por décadas, até o bicho da renda os desfazer.

Por isso, compreendendo ainda melhor o amor atrás do linho, decidi trazer à luz as colchas e os lençóis bordados pela minha mãe, e adornar as nossas camas com eles, a começar pela dela. E dizer-lhe: “Mãe, durma tranquila com cabeça repousada sobre este belo bordado saído das suas mãos, porque todo o trabalho de Deus está representado neste lençol. Tenho a certeza que durante a noite Ele pousará aqui Sua cansada cabeça e abençoará com Sua Sagrada respiração os seus dias. Dispensá-la-á de futuros trabalhos pesados e o oferecer-lhe-á do mais fino fio que encontrar no céu.”

Daquela mulher dançando no largo deserto com o seu companheiro, não cheguei a perceber a idade, mas não me parece que tenha tempo para bordar lençóis. Dançar no largo, à noite, será a sua outra forma de o fazer, uma maneira de bordar o espaço. Dançarinas ao luar e bordadeiras ao serão são duas formas de arqueologia sentimental, restauro humano, seguro de vida para o futuro, confissão e comunhão rituais imprescindíveis para se entrar são e salvo no tempo desconhecido que aí vem.


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