2021-12-22
A reposição da luz


Risoleta C Pinto Pedro




Tenho perante mim um pequeno opúsculo, uma separata em papel amarelecido, belo como papel Bíblia, publicado em 2012 em Castelo Branco pela editora SIRGO, na colecção “AS O extenso continente”. É bonito, tem um aspecto frágil e antigo. Três pontos acima do título, ampliados a círculos, espiralados, no centro da capa. Seguro-o com muito cuidado e assim o folheio. Trata-se de um estudo de Eduardo Aroso sobre a poesia de António Salvado e intitula-se António Salvado: Três Leituras. Tem-me acompanhado nas minhas recentes andanças, e eis que chegou o dia de o desvendar.

Tem início com o poema “Esperança”, que dá tom e testemunho do que é a poesia de António Salvado. Já lá iremos.

Segue-se uma breve nota biográfica sobre o poeta nascido em Castelo Branco em 1936, onde se alerta para a dupla valência desta poesia, entre o «espírito de lugar» e o «pendor universal». Curiosamente, o mesmo poderíamos afirmar sobre Pascoaes, autor da citação de 1951 com que esta nota é rematada: a passagem de uma carta de Pascoaes, em Amarante para Salvado, em Castelo Branco. Está agora na moda negar o pendor universal de Pascoaes querendo reduzi-lo ao Marão, mas isso é tema para outra conversa. Voltemos a Aroso sobre Salvado.

A urze, a luz, o interior e a forma, a flor como centro de irradiação de luz exilada, são imagens que nos transportam para o lugar de onde nunca deveríamos ter saído: o interior de nós.

Aroso “lê-nos” alguns poemas e neles nos transporta para os outros que não traz aqui, porque não caberiam. E para o mundo.

Ressalta ele a singularidade deste poeta e a sua força de atracção, apesar do obscurecimento de que tem sido alvo, num paradoxal processo, paralelo à sua constante criação. Não estamos perante, nas palavras de Eduardo Aroso, um poeta «sazonal».

Profeticamente, alude o mesmo Aroso a «certas figuras da cultura, investidas de responsabilidades para dar a conhecer a nossa poesia de referência, seja por actos públicos, os mais variados, seja pela organização e divulgação de antologias», que devendo fazê-lo, de tal se abstêm.

No entanto, nada dura para sempre, nem o apagamento de um poeta. Nove anos depois, o “Fiat”. Aí está a antologia organizada e anotada por um grande homem da cultura, Paulo Samuel, sendo também suas, a selecção e a introdução. É editada por RVJ editores, em Setembro deste ano de 2021. Uma bela obra de que falarei noutra ocasião.

Para já, honremos este pequeno opúsculo, pequeno apenas no número de páginas, que o pensamento não ocupa espaço. Este outro assinalável homem da cultura que é Eduardo Aroso prossegue, e nós com ele, pela poesia de António Salvado e pelo estado a que chegou a divulgação (ou não, ou não…) dos nossos melhores poetas. Tal como o estranho, mas não único fenómeno, de ser este autor mais conhecido no estrangeiro do que em Portugal, apesar de alguns dos melhores, como Pascoaes, João Gaspar Simões e Natália Correia, entre outros, não o terem deixado passar sem o seu reconhecimento.

A propósito disto, apresenta Aroso importantes reflexões, decorrentes de «a maior arte dos prémios e reconhecimentos de António Salvado terem sido atribuídos em países estrangeiros», o que relaciona, ajustadamente, com a troca do antigo espírito de tertúlia, onde reinava «clima fraterno de sincero e respeitoso diálogo, de ajuda mútua», pelo espírito clubista com seu ambiente de «vedetismo, cuja figura principal é sempre utilizada por hábeis manobras mediáticas». Um fenómeno muito actual.

Também Salvado sobre isto versa:

«A um crítico autor de versos// Filóxeno de Citera/ foi um dia castigado/ a mil trabalhos forçados,/ porque na sua justeza/ se recusara a louvar/ os maus versos que fizera/ Dionísio de Siracusa, tirano daquela terra.// (Como tal gente perdura/ neste mundo em todo o tempo,/ embora muito me custe/ louvarei teus versos sempre!)»

In: A Quinta Raça

Chama Aroso a atenção para uma característica deste poeta, que é a ausência das «palavras gastas». Tantas vezes encontradas, e o que agora afirmo já é da minha responsabilidade, em certa poesia actual, reflectindo-se os diversos poemas dos diversos poetas como em espelho.

Por tudo isso se propõe Eduardo Aroso, através deste opúsculo, «repor a luz» do poeta, sendo este o título de um dos seus livros. Fá-lo em tempo de Natal, no não muito recuado 2012, após o qual tanta coisa aconteceu, que nos parece um tempo antiquíssimo.

A poesia sofreu, nesse Dezembro, na minha vida, forte abalo, com a partida daquele de quem venho: meu pai. E os meses de Dezembro, desde aí, contêm paradoxais emoções, pelo que acrescento àquele Dezembro de 2021, no dia 15 de dolorosa memória, um antídoto que é um poeta apresentado pela pena de outro poeta. Um sinal: se foi no recente Verão que recebi as Três leituras oferecidas por Eduardo Aroso, foi no mês do Advento deste ano de 2021 que me chegou, há dias, por correio, a Antologia que refiro lá atrás, enviada por António Salvado, que me salvou, no actual Dezembro, da dolorosa e continuada perda de outro António de quem recebi, e com honra exibo, um dos meus apelidos.

«Repor a luz», eis o trabalho dos poetas que olham para além da máscara do mundo. «Lírica superior», afirma Eduardo Aroso, também poeta, a propósito dos versos sobre os quais se debruça: os do poeta Salvado e salvador ao qual «importa substancialmente a poesia». Que em tão poucas páginas nos mostra, analisando-o com competência e arte, ao mesmo tempo que exibe e deixa brilhar o que mais deseja: os versos do poeta.

António Salvado apresenta uma impressionante bibliografia, pelo que desafio o leitor a mergulhar nos versos destes poemas, raros, requintados, folhas de uma árvore frondosa, original e bem implantada num terreno que se chama arte poética.

Procure também este brilhante texto de 2012 do seu divulgador, porque soube, e não é fácil, mostrar o poeta sem o ofuscar, falar sobre ele e em poucas linhas criar os traços de um retrato poético rigoroso, o que não se encontra, com frequência, nos textos críticos.

Já agora, para terminar, mergulhe, querido leitor, nos outros livros de António Salvado, podendo começar pela bela e brilhante Antologia que Paulo Samuel e a RVJ editores dão a respirar a partir do recente Setembro deste ainda 2021.


risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/
http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/
http://escritacuracriativa.blogspot.pt/
http://www.facebook.com/risoleta.pedro
https://www.facebook.com/escritoraRisoletaCPintoPedro/
http://aluzdascasas.blogspot.com/2020/03/o-vale-do-infante.html
http://risoletacpintopedro.wix.com/risoletacpintopedro

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS