2021-10-27
Da (in)utilidade das rãs


Risoleta C Pinto Pedro




Escrevi, há tempos, para uma outra coluna, uma crónica sobre os empenhos, entendida esta prática como sistemas de favorecimento num regime corrupto, onde se mostrava que esta “tradição” nacional já nos acompanha há séculos. Isto era visto pelo olhar de um estrangeiro. São hábitos que arrastamos, nós e a humanidade em geral, sendo alguns específicos de certos povos. O sensacionalismo com vista igualmente a favorecimentos, que nos parece ser uma coisa muito moderna e que foi, sem dúvida, ampliada pela Imprensa, e depois pela Internet e redes sociais, já existia em germe nos nossos genes.

Steinbeck escreve um delicioso diálogo entre um pai e um filho, sendo este aspirante à participação num concurso.

Vale a pena reproduzir:

«- Na minha escola há um rapaz que ganhou dois prémios na televisão, de cinquenta e duzentos dólares. Que dizes a isso?

- Deve ser inteligente.

- Ele? Nada disso. O que ele diz é uma mentira. O que é necessário é inventar uma mentira, e ganha-se a pasta.

- A pasta?

- Sim. Diz-se que se é doente ou que se sustenta a mãe criando rãs. Isso torna a pessoa interessante e faz que seja escolhida. Ele arranjou uma revista que trata de todos os concursos que se realizam em todo o país. Eu também podia ter uma?

- A pirataria já acabou, mas tenho a impressão de que o seu espírito continua.

- Que queres dizer?

- Algo em troca de nada. A riqueza obtida sem esforço.»

Não prolongo a citação, porque o que queria mostrar já aqui se encontra.

Alguns programas de televisão, manhãs ou tardes cheias de entrevistas sensacionalistas, estão repletas de rapazes que sustentam as mães criando rãs. A diferença em relação à de Steinbeck é que estas histórias que vêm ser contadas à televisão são verdadeiras. Claro que estou a usar uma metáfora e não estou a desvalorizar as vidas reais por detrás destas conversas, que esvaziam até ao impossível a alma de quem se presta a elas. Pelo contrário, fico com pena da exposição a que se sujeitam. Para quê? Para aparecerem, para se tornarem conhecidos ou mesmo famosos, para fazerem um intervalo na rotina, ou na esperança de obter ajuda… Não fazemos ideia da quantidade de gente que sustenta a família criando rãs. Continuo a usar a metáfora. A maior parte dos casos são reais, e se formos mudando de canal, percebemos muito claramente de que modo cada um tenta superar em dor, escândalo, crueldade e ignomínia, as narrativas das outras cadeias. Aparentemente, apresentam casos edificantes, situações de coragem e resistência, amor e sacrifício, superação de limites e por aí fora.

Nestas situações de que falo, não estão em causa concursos entre as pessoas, salvo em casos declarados e conhecidos, aqui o concurso é oculto, mas não menos feroz: entre cadeias de televisão. Para tal, servem-se de casos reais que exploram sem pudor, que exibem como se não estivessem em público, que renovam a cada dia como um lenço descartável. Húmido de lágrimas, mas já inútil.

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