As palavras não são minhas, mas de Almeida Garrett. O segmento em que estão inseridas pertence às Viagens na Minha Terra: «Decididamente vou-me embora. Não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga». Refere-se à ruína da Igreja de São Francisco, em Santarém. Nos seguintes termos:

«Da bella egreja gothica, fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abolando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais pulido e mais respeitado d’esses jazigos antiquíssimos; os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os. Levantaram as lages dos sepulchros; e ao som da corneta militar acordaram os mortos de seculos, cuidando ouvir a trombeta final…».

Os mortos perante uma ameaça de apocalipse feita pelos vivos. Uma genial imagem que só um genial escritor como Garrett poderia criar.

O leitor perceberá o que me leva a recordar esta passagem da novela publicada em 1846, tendo aparecido anteriormente sob a forma de folhetins na Revista Universal Lisbonense entre 1845 e 1846. Acertou, mas apenas em parte. Já lá iremos. Tem a ver, sim, com o paralelismo entre o desrespeito patrimonial actual e aquele aqui aludido: a desastrosa utilização do convento pelas tropas aquarteladas que ali tiveram seu refeitório, após a extinção das ordens religiosas em 1834. Os túmulos foram transformados em bebedouros para os cavalos.

Costumamos ter dois tipos de atitude em relação aos “desastres” causados pelos humanos na história passada: ou os agudizamos, lendo-os à luz da humanidade actual com seus valores entretanto registados em declarações, cartas de direitos e princípios éticos mais ou menos generalizados e aceites, ou os relativizamos pela distância temporal. Talvez nem oito nem oitenta.

Garrett, que participa activamente na revolução liberal, é um homem inteligente e um homem da cultura, por isso não pode, de modo nenhum, aceitar a destruição do património, seja qual for a ideologia que a acoberte. Mas hoje, com o século já bem entrado, há ainda quem hesite…

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