2021-07-21



Risoleta C Pinto Pedro


PORTO DA MINHA INFÂNCIA



Foi perto dos quarenta anos que fui, pela primeira vez, ao Porto, mas na minha imaginação sentia que já conhecia a cidade, o que se confirmou quando, finalmente, aí estive. Curiosamente, fui a Londres antes de conhecer o Porto, e quando vi Londres senti que poderia ser o Porto; o mesmo, inversamente, senti, quando visitei o Porto pela primeira vez. Talvez o clima, a luz, a arquitectura, as cores, mas acima de tudo um não sei bem o quê que não se vê, mas que se sente. Se Lisboa me ilumina e alegra, se Lisboa é o presente, e mesmo encontrando a cada esquina leituras, pinturas e artistas do passado, são essas reminiscências que são transportadas até agora, por seu lado o Porto tem o condão de me centrar interiormente e fazer-me viajar até ao passado por um estranho túnel feito de reminiscências de obras históricas, literárias e outras memórias.

Por isso, apreciei especialmente este filme de Manoel de Oliveira, título da crónica, que ainda não vira e recentemente me deliciou. É um filme fantasma, onde os fantasmas retornam à vida e trazem a vida para além da vida. As ruínas da casa onde o realizador nasceu, as pastelarias que já desapareceram e de que destaca voluptuosas memórias de bolos que descreve como a uma sensual amada, o Palácio de Cristal deitado abaixo com suas sazonais exposições de carros e flores, e um documentário onde surgem, como aparições, os possíveis Pessoa e Régio, sobre os quais fica a dúvida, embora quase imperceptível no que se refere a Pessoa, tão ele mesmo. Também a memória das ruas e dos espectáculos e das personagens masculinas da moda que se encostavam nos cafés olhando as mulheres, a evocação de Adolfo Casais Monteiro e Agostinho da Silva, uma canção belíssima com o poema “Regresso ao Lar”, de Junqueiro, por uma voz antiga de mulher que bem poderia ser a ama mítica de todos os poetas, sendo que Manoel de Oliveira é um poeta com uma câmara na mão, canção comovente numa voz que todos ouvimos ou desejámos ouvir em crianças, baixinho, antes de adormecer. O filme é composto por imagens de arquivo da cidade do Porto e partes filmadas de reconstituição. É sobre uma dessas imagens de arquivo no antigo Palácio de Cristal que nos encontramos confrontados com a interrogação do próprio narrador/realizador acerca da acima referida possível identidade de duas figuras, que vê como Pessoa e Régio.

Gostaria de ter visto, neste documentário feito a convite do Porto Capital da Cultura, a Biblioteca Municipal do Porto, mas admito que as imagens de livros que nele são apresentados como sendo monumentos em papel, aí tenham sido capturadas. Sampaio Bruno é o autor dos livros, e foi director insigne da dita Biblioteca. Este filme deixa também os seus livros ladeando outros tesouros desaparecidos, como pessoas, edifícios, os tão apreciados bolos da extinta Pastelaria Oliveira, as flores dos jardins, o primeiro filme e o primeiro amor.

O passado anda para trás e para a frente, como as câmaras de filmar e de projectar. Por isso, anoto hoje, dia em que escrevo esta crónica, a passagem de 98 anos sobre a morte de Junqueiro (7 de Julho de 1923), o autor do poema-canção, a selar este mistério que é sempre um acto de evocação, facilmente transformado em invocação por acção mágica de Oliveira, nome de pastelaria desaparecida, nome de realizador de passados até nós chegados, em imagens esbatidas e sons antigos de autores e poetas quase desaparecidos, uns pelo silenciamento, outros pelo excesso de ruído à sua volta. A resgatar.

A música, de Emmanuel Nunes, é o berço desta infância em imagens, sons e sabores antigos para onde somos convocados através deste belíssimo filme dificilmente classificável, porque ainda que fora do tempo, tudo abrange.

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