Uns querem derrubar padrões, outros usam os mesmos padrões para apresentar candidatos a apanhados, porque é disso que se trata; para tudo servem os padrões. Mais uma razão para não serem derrubados. Ali para aqueles lados tem-se cultivado uma sanha de deitar abaixo, não sei se os Jerónimos estão ali bem, com tanto símbolo, tanto império, tanta história… ainda nos arriscamos a vê-los cobertos com uma tela encomendada a um artista plástico com visão grandiloquente, mas não imperial. Também a nova versão da Lei Cabral que tanto indignou Agostinho e Pessoa, agora com a aprovação de defensores da liberdade, é um sinal do desatino dos tempos. Vale a pena recordar o discurso de José Cabral, na Assembleia Nacional, a 5 de Abril de 1935: "Eu sei de Estados que a não toleram. Estados de características idênticas ao nosso: Estados fortes, autoritários, norteados apenas pela noção firme do bem comum e, assim, sei que a Maçonaria foi exterminada pelo Estado fascista que declarou incompatível com a sua própria existência. Nós temos uma doutrina e somos uma força, disse Salazar, e das mesmas fronteiras, com a doutrina e com a força da Maçonaria". Pessoa reagiu enérgica e magistralmente no Diário de Lisboa com uma longa argumentação que conclui assim:
"beijem-lhe os Jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século XVIII - quando, expulsos de toda a parte, e os repudiava o próprio papa - pelo maçon Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellington e Blücher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados - a Entente Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna - o Fausto, do maçon Goethe".
Por sua vez, Agostinho da Silva, também não sendo comunista nem maçon, mas não tolerando tal ingerência na sua consciência, recusa assinar a declaração ficando impedido de leccionar no ensino público. Esse impedimento e a perseguição da Censura aos Cadernos que publicava como serviço de educação pública, que lhe valeram a prisão, acabaram por encaminhá-lo para o Brasil, país onde semeou prestígio em nosso nome, e onde reencontrou um Portugal em alguns aspectos intocado e onde depositou mil esperanças para o país e para o Mundo. Que diria hoje daquilo por que estão a passar os nossos irmãos?
O que é no mínimo curioso é que os proponentes do derrube do Padrão dos Descobrimentos vêm de dois deputados de esquerda, e o uso para fins de reciclagem vem de um partido, não diria fascista, que seria usar uma lente muito ampliada, por tratar-se mais de um aspirante a fascistoidezinho, para alguns quase fofinho, mas como tudo o que é pequeno, se tiver as condições propícias tem tendência a crescer, e a nossa democracia tem todas as fragilidades de quem se põe a jeito, nunca fiando… Não sei quais mais mal querem ao desgraçado do padrão, se os que o pretendem derrubar, se os que o usam como encosto para programas de apanhados (os apanhados somos nós). Têm em comum, estas excrescências do pensamento, que uns vivem no passado, porque nada têm a oferecer ao futuro, e outros querem apagá-lo… pelas mesmas razões. É que sem passado não há futuro. Apaguem todos os nomes, todos os vestígios, todos os incómodos, todos os erros, enterrem-nos bem fundo e preparem-se para o próximo florescimento de tudo o que usaram como uma semeadura, no momento propício.
Sabe-se, por experiência e prática analítica, que tudo aquilo de que as famílias não gostam e se esforçam por esquecer, por apagar, por anular ou expulsar, por silenciar e negar, tem tendência a voltar num dos mais jovens do ramo genealógico, sob a forma de doença, de vício, de um qualquer incómodo…
Vai haver, como candidato à Câmara de Lisboa, um apresentador dos apanhados, isso não teria e possivelmente não tem importância nenhuma, porque a realidade não funciona como os programas de televisão, é mesmo real. Tal como é real, e isso sim, tem muita importância, que os brasileiros estejam a cair como tordos e que as crianças moçambicanas estejam a ser decapitadas. E isto não acaba em risos, ao contrário dos apanhados. Estes acontecimentos no Brasil, em Moçambique, para ficar só por aqui, vêm desmentir todas as ilusões acerca da nossa pretensa “civilização”. Enquanto houver um país a sofrer, enquanto houver uma vítima evitável no mundo, não seremos civilizados, por mais que nos promovamos. E pela primeira vez afirmo aqui algo que nunca julguei possível vir a dizer e muito menos publicamente, porque é politicamente muito incorrecto, mas já não me preocupo com essas coisas, prefiro ter um sono tranquilo, à aprovação seja de quem for. Onde é que está a nossa responsabilidade relativamente ao que está a passar-se em Moçambique? Não teremos confundido descolonização com abandono, retirada, debandada? Por cobardia, preconceito político, falta de visão e até de… compaixão?
Qual a nossa responsabilidade perante os que estão a morrer, vítimas de políticas cruéis e de psicopatas, os que estão a morrer vítimas de radicalismo religioso e incompetência, de impotência e desinteresse?
Nós andamos muito ocupados com outros problemas. E eles vão sendo “apanhados”. Literalmente. Não é a fingir. Podem até aparecer câmaras a filmar, mas infelizmente é a mais violenta realidade. Não vão poder dizer que era para os apanhados, porque eles foram mesmo, e definitivamente, apanhados. São estes padrões que precisamos de derrubar, começando por fazê-lo dentro de nós. O de pedra é só um pálido reflexo dos que temos dentro. Deixem-no lá estar, necessitamos dele para nos lembrarmos de nós. Das nossas glórias e das nossas misérias. Que às vezes são as mesmas. Não se sabe muito bem onde começa uma, onde termina a outra. A história já não é, se alguma vez foi, a preto e branco. Ao contrário do que aprendemos nos manuais da infância e nos maus filmes de cowboys, honra seja feita a alguns.
Não podemos ir a Moçambique repor a ordem, mas podemos falar disso, denunciá-lo e não nos pormos moralmente ao fresco. Talvez isso não consiga poupar a vida a alguém, mas se formos muitos, talvez faça já alguma diferença. É um começo.
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