2021-03-31



Risoleta C Pinto Pedro


OS PROFESSORES, ESSA PERIGOSA SUBCLASSE DE DESORDEIROS



(Esta crónica não é sobre pandemia, nem vacinas ou temas afins, as vacinas foram aqui apenas um pretexto e uma excelente demonstração de outra coisa, oculta no nosso inconsciente e que em determinados momentos emerge).

Fiquei a saber, quando ouvi na rádio com valor de notícia, que os professores se tinham apresentado à vacinação de forma ordeira. Estariam à espera de desacatos? Sabemos, aliás, que uma das mais duras tarefas dos alunos é pôr os professores na ordem, fazer com que se portem bem, daí que tenha sido surpreendente, e por isso o estatuto de primeira página, que os professores não tenham ido fazer arruaça para o centro de vacinação. Esperávamos gritaria, discussão, brigas, impropérios, desacatos, mas nada disso!: apresentaram-se de forma ordeira. Bom trabalho têm feito os alunos nestas aulas à distância.

A expressão subclasse não é gralha, mas o facto de pertencerem a uma classe mais geral que é a do português. Todos arruaceiros. Só assim se explica que aquando das últimas eleições tenha vindo alguém ligado ao governo anunciar que os portugueses se tinham apresentado ordeiramente nos centros de voto.

Presumo que, se assumiu foro de notícia, temos de partir do princípio que quando tal não for noticiado é porque se comportaram da forma habitual, digo normal: desordeiramente.

É claro que isto dá vontade de rir, mas é mais inquietante do que parece. Vejamos, acrescentemos um tempero à receita:

Há dias, alguém ligado a um centro de vacinação dizia que algumas pessoas não tinham recebido a convocatória por não terem o contacto actualizado. Assim, haviam telefonado para o centro já à última hora, manifestando o seu interesse em serem vacinados. Mas, dizia a funcionária, não interessa quem, porque é só uma voz de algo inquietante que paira sobre nós, que agora essas pessoas tinham perdido a oportunidade, e iam para o fim da lista, tinham de esperar. Afirmava-o com palavras e tom de quem dá uma reprimenda a meninos rebeldes ou que se atrasaram para o lanche, como quem diz: vão para o fim da fila e logo se vê se ainda sobrou lanchinho. Se já não houver, paciência, tivessem vindo mais cedo. No fundo, estas pessoas não acreditam no que dizem: que a vacinação protege não apenas o próprio, mas o colectivo. Assim sendo, mais uma razão para não fazer sentido este tom castigador. Se este vírus alguma coisa de positivo trouxe, e trouxe várias, foi a consciência de que não estamos separados e que o mal de um é o mal do outro, que o bem de um é o bem do outro, e não o contrário, como nos habituámos a acreditar. Esta forma de expressar o problema pela funcionária (ou chefe, não sei…), em modo de correctivo, poderia ser lido como um problema de comunicação. Há várias maneiras de dizer as coisas. Poderia ter dito exactamente o mesmo do seguinte modo: Tendo em consideração que não conseguimos contactar estas pessoas, elas irão fazer parte de um plano que estamos já a elaborar e que poremos em prática mal terminemos a primeira fase do processo, e assim que as condições estejam reunidas. Era a mesma coisa, mas não era castigador. O problema é que isto não é apenas um problema de comunicação, é algo muito mais inquietante, é a tentação autoritária que paira, sempre pronta a aproveitar todas as situações para humilhar, controlar, censurar, “pôr na ordem”. A pandemia não tem culpa, este outro vírus é-lhe prévio, já assumiu a forma de censura, de ditaduras, de inquisição, e por aí fora. Quando não encontra razões para ralhar e/ou castigar, dá palmadinhas nas costas a elogiar os meninos que se portaram bem. Dói menos que o açoite, mas é a mesma coisa. E é também a mesma falta de respeito, a mesma desconsideração, a mesma menorização da dignidade dos cidadãos, a cenoura numa mão e o chicote na outra. Não estamos a falar de forma, estamos a falar de fundo. Convém estarmos atentos. São os mesmos que deixaram de usar o conjuntivo e não sabem fazer as concordâncias. É tudo a mesma coisa, o abaixamento de nível anseia pelo rebaixamento do outro. Não o sabe, mas é assim mesmo que funciona.



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