“O rei propõe-me que regresse”.
Tenho andado a tentar compreender uma lengalenga infantil francesa sobre a qual, aliás, já escrevi sentindo, contudo, que ficara bastante aquém da sua compreensão, que algo de muito mais profundo haveria. Em mim, como em muitos, como nos povos. Afinal somos todos humanos, temos uma enorme paleta de emoções para viver, vamo-lo fazendo à medida das nossas possibilidades, umas vezes umas, umas vezes outras, umas vezes uns, umas vezes outros. Quantas vezes não nos sentimos expulsos de um espaço que julgávamos nosso? E como isso nos dói… Mas lá vamos, permanecemos enquanto podemos; ou partimos, quando já não há outra coisa a fazer…
É a diáspora. Que pode ser infinitamente grande no tempo, no espaço, ou infinitamente pequena, apenas dentro de nós, sem por isso deixar de ser imensa. Uns silenciam-na, outros gritam-na, outros ainda escrevem-na. Como agora. E como Pierre Assouline.
Estou a ler o seu “Retour à Sefarad”, o desabafo alquímico de um judeu naturalizado francês nascido em Casablanca, de ascendência espanhola, jornalista, que num dia 30 de Novembro de 2015 é confrontado com o convite do rei dirigido aos sefarditas para regressarem a Espanha, concedendo-lhes a possibilidade de adquirirem a dupla nacionalidade. Na verdade, esta história real (em todos os sentidos) envolve dois reis: Juan Carlos e Filipe, o pai e o filho. As datas marcantes para o jornalista são, também, duas. Tudo a dobrar, como acontece invariavelmente com os judeus e as suas duas pátrias, quando não, no caso dos marranos, de duas religiões: a de nascença e a imposta, uma maneira de dizer, para não ter de partir, para não ter de morrer.
Desde 31 de Março 1492 que não havia notícias de Espanha. Nessa data, o documento de Alhambra, ou de Granada, como é conhecido, assinado pelos reis católicos, como também são conhecidos, ordenava a expulsão ou a conversão forçada. «La valise, le cercueil ou le Christ» (A mala, o caixão ou Cristo).
A família de Assouline foi das que saíram. Agora, num mesmo 31 de Março, ainda não em 2015, mas num preparatório 1992, o rei de Espanha, herdeiro dos dezassete reis descendentes de Isabel a Católica e de Fernando de Aragão, encontrava-se com a comunidade judaica espanhola e o presidente do Estado de Israel, na sinagoga de Madrid. Já era tempo, quinhentos anos passados. Parece que o rei não se encontrava muito à vontade, talvez, por especulação do escritor, receando que lhe pedissem contas sobre o seu emprego do tempo no funesto 31 de Março de 1492. Costuma dizer-se que se não foste tu foi o teu pai, e Jung, num excelente ensaio sobre o fenómeno nazi e a actual Alemanha, afirma que o que falta aos alemães, para além de gestos ou actos exteriores que têm acontecido, é um sentimento sincero de expiação, de assumpção, quase individual, para já não falar da colectiva, de uma culpa que não lhes cabe, mas aos seus avós, e que contudo precisam de assumir para poderem seguir em frente.
No seu discurso, o rei deu as boas vindas aos «Hispano-Judeus» e declarou algo importante: não ser Sefarad (o nome hebraico da Península) «uma nostalgia mas um lar». Por sua vez, diz o autor, o presidente de Israel falou em «reconciliação» e não em «reparação», o que Assouline põe em causa, com uma interrogação estilística: «(mas estávamos zangados?)». Quanto ao rei, falou em «reencontro», e não, sublinha Pierre Assouline, o que gostaria que tivesse sido dito: «perdão, pedido de desculpa, arrependimento», o que nos conduz, novamente até ao pensamento de Jung relativamente aos alemães. Com humor, assinala que Espanha, definitivamente, se recusa à autoflagelação. De qualquer modo, dá a entender que o primeiro passo tinha sido dado, o de fechar a ferida.
Segue-se, então, a segunda etapa. Tem lugar em 2015 e no resumo do capítulo onde é descrito o episódio, afirma que, com uma pequena frase forte e exacta, Filipe VI perturbou profundamente o curso da sua existência.
A 30 de Novembro desse ano (estamos próximos da efeméride), o rei recebeu os sefarditas com um discurso que o autor considera não demagógico, mas delicado, tendo-lhe entrado directamente no coração, pela sinceridade. Para além da alusão ao uso tradicional, em certas famílias judaicas, da transmissão das chaves de pai para filho em vista do dia do grande regresso, o rei usou a expressão Sefarad como sinónimo de Espanha e agradeceu por quatro vezes.
Com uma emoção escondida, mas transparecendo na expressão forte de tão simples: «O rei propõe-me que regresse a casa», acrescenta, em modo de comentário, que tal não acontece com frequência na vida de um homem. Põe nos dois pratos da balança da decisão o facto de não ser fácil esquecer a Inquisição, por um lado, e pelo outro, a gentileza do gesto. Seguem-se as reflexões naturalmente contraditórias, onde vai desenrolando, mais do que pesando, a mão estendida partindo de um bom sentimento, a memória dos acontecimentos traumáticos, a ininterrupta reparação que cada um foi fazendo na sua vida, o risco que constitui sempre o deixar aflorar as nervuras do passado, a legitimidade do desejo de voltar a casa, o desfiar de exemplos literários de regresso do herói, e finalmente o medo de não reconhecer o país deixado em 1492, ainda que estando completamente de parte o encontro com a casa familiar, o cemitério, ou até mesmo arquivos.
E no entanto, basta-lhe saber que a nossa memória precede o nosso nascimento. Tem a clareza de saber que não vai encontrar a verdade, mas os seus efeitos, não provas, mas os seus traços favoráveis ao sonho.
A lembrança inconsciente como a força motriz da imaginação. Uma viagem pelas entrelaçadas contradições, pelas identidades em que se desdobra.
No seu discurso, o jovem rei acrescenta algo de inesperado e pungente, dirigindo-se aos sefarditas: «A falta que nos fizeram!». E mais uma vez, o judeu não resiste. Se no século XV a saída se deu pela força das ameaças, é agora a força do amor que sente nas palavras reais que o impelem a fazer o caminho contrário ao dos seus antepassados. Fá-lo por si, mas fá-lo, sobretudo, por eles, que já não podem regressar ao país de onde foram expulsos.
Contudo, uma pontinha de dúvida subsiste: «une légère hésitation». Afinal, só decorreram cinco séculos. A gentileza do rei não consegue apagar, totalmente, a lembrança da Inquisição, a venda dos bens, as malas feitas à pressa, a partida precipitada. Mas Séfarad não é apenas «uma nostalgia, é um lar». O que acentua o risco que se corre ao deixar «aflorar as nervuras do passado». Mas é incontornável que aconteça. «Quem expõe, expõe-se». É o que acontece com este autor, que da narrativa de uma aventura em busca da antiga nacionalidade acaba por tornar quase autobiográfico este relato, apesar da preocupação do autor em evitar «o espaço das vaidades». Paralelamente ao relato, vai articulando, assim se expondo, todo um monólogo interior naturalmente paradoxal e contraditório, onde revela todos os avanços e recuos do pensamento relativamente ao regresso. Que quanto ao sentimento, dúvidas não existem. Apenas a razão, assente na memória ancestral, o desassossega. Mas não excessivamente.
Mas também a nostalgia é incontornável. Cita, por isso, Paul Morand: «plus beau que l’Espagne, il y a la nostalgie de l’Espagne. Porque, afinal, «a nossa memória precede o nosso nascimento». O que pode protegê-lo de alguns perigos relativos ao voltar. Pois, afinal, sabe que o que vai encontrar não é a verdade, mas «os seus traços», sendo que só o rasto faz sonhar.
Que tem tudo isto a ver com a lengalenga do imperador que acompanhado do seu filho e esposa todos os dias da semana se dirige a casa de um determinado súbdito para o cumprimentar, sendo que devido à partida deste, acabaram por ter de desistir ao fim de uma semana de persistência?
Temos aqui a partida do súbdito, a esperança real de que regresse, daí voltarem todos os dias, gesto absurdo da parte de um imperador, talvez reforçado por algum tipo de má consciência. Claramente, a ausência deste súbdito é sentida como uma falta, mas o súbdito, ao contrário de Assouline, mantém-se firme na sua retirada, pelo menos durante uma semana, retirada cuja responsabilidade não sabemos, por falta de informação, a quem atribuir.
Assouline decide aceitar, com veemência, o convite do rei. Não vá sua Alteza arrepender-se. Na lengalenga, após a persistência, no dia a dia ao longo de uma semana, o pequeno príncipe (repare-se no paralelismo com os dois reis), que fora quem em cada vez decretara que voltariam no dia seguinte, decide, ao final de seis dias (curioso que faça do domingo o dia de não regresso), que assim sendo, não voltarão lá. Aviso, através da literatura oral, aos sefarditas, para não se deixarem ir em entusiasmos imperiais?
São muito mais sábias do que parecem, na sua extrema simplicidade e paralelismo estrutural, as lengalengas infantis.
Todo o processo que se segue para convencer as autoridades espanholas que merece, tem direito e preenche todos os requisitos impostos, dá que pensar e é tema para outra crónica.
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