2020-10-07



Risoleta C Pinto Pedro


Obstáculo e prazer



Criou-se, lentamente, no Ocidente, a convicção de que a educação e a aprendizagem devem ser leves, viradas ao prazer e ceifadas de dificuldades. Compreendo o processo. A tempos negros em que a criança não tinha direitos, era menos que humana, condenada a trabalhar em condições de extrema dureza e crueldade, seguiu-se o surgimento de alguma consciência relativamente aos direitos dos mais pequenos, a Carta dos Direitos Humanos, a dos Direitos da Criança. Pedagogos importantíssimos como Montessori chamaram a atenção para a especificidade do desenvolvimento infantil, Piaget estudou as suas etapas de crescimento, em Portugal o grande pedopsiquiatra João dos Santos conversou com elas e compreendeu-as como ninguém. Apenas três nomes a representar, simbolicamente, uma plêiade de insignes estudiosos do desenvolvimento, características e direitos das primeira etapas da vida de um ser humano. A nível sociológico, médico, político, psicológico, pedagógico... Era e foi vital. Em alguns países que se dizem civilizados, ainda estes direitos são ignorados e as crianças barbaramente abusadas das mais diversas formas: no trabalho, na educação, na sua sexualidade, na sua mais elementar sobrevivência, como a alimentação.

No ocidente, paralelamente ao avanço civilizacional que constitui esta consciência activa em relação à criança, uma sociedade do consumo, do facilitismo e do prazer gratuito e imediato foi surgindo, e perversamente contaminando o crescimento e a educação das crianças. Criou-se o mito, em que muitos educadores embarcaram, de que a aprendizagem deve ser feita sem qualquer tipo de esforço ou dificuldade. Foram criadas gerações de hedonistas habituados a ter tudo feito e rápido, a não ter de esperar, a não precisar de se esforçar, a não suportar o mínimo incómodo. Este é o maior veneno com que se vacinam as crianças desde cedo. Pais que não toleram o mínimo incómodo, assim criam as suas crianças e devolvem à escola aquilo que é, em parte, responsabilidade sua. Tarde de mais, porque o chá que não se tomou em pequenino...

Vem esta reflexão a propósito da leitura, das suas dificuldades, e do prazer. O prazer da leitura é dos maiores que conheço. Se for “inoculado” muito cedo, quase não necessita passar pela superação da dificuldade, porque a própria dificuldade é, ela mesma, um prazer. Só consegue entender isto quem conhece esta experiência. Com a leitura ou com qualquer outra dificuldade. Quando se ama ou se quer muito uma coisa, pode ter de se passar por inúmeras dificuldades que são, apenas, o adiamento do prazer. E este aprender a adiar o prazer é dos mais altos valores de estruturação do carácter que uma criança pode adquirir.

Comecei muito cedo, por volta dos dez anos, a ler alguns autores considerados complexos, pelo menos para a minha idade, como Alexandre Herculano. Por vontade própria, ao mesmo tempo que lia os tradicionais livros de aventuras, bandas desenhadas e juvenis. Sentia, nas primeiras páginas de Herculano, que tinha pela frente um obstáculo não muito fácil de transpor, mas sabia que uma vez esse obstáculo ultrapassado, eu entraria num universo mágico de que faria parte e cuja saída tentaria adiar, tornando a leitura cada vez mais lenta, com uma saudade antecipada desse universo. Mas esta situação não me agradava. Eu lia depressa e queria ler sempre mais e mais, por isso inventei um truque: começava a ler um segundo livro quando ainda ia a meio do primeiro, para quando este acabasse eu já estar amplamente alojada e acolhida e integrada no segundo. E deste modo os livros me ensinaram: novos mundos; a reconhecer as minhas emoções e sentimentos na identificação com as personagens; a adiar o prazer por uma satisfação menos imediata, mais alta e mais duradoura; e a compensar-me da perda, dos fins, criando autonomamente novos princípios, ao mesmo tempo dando-me colo. O colo dos livros continua a ser, de longe, o meu preferido. Estes mestres têm sido uma lição para a vida. Ainda hoje leio vários livros ao mesmo tempo, havendo mesmo um livro que comecei a ler há vários anos que ainda não concluí, com pena de me despedir.

Lamento as pessoas que não entendem isto que estou a dizer, embora não por ser eu a dizê-lo. Contudo, elas também não compreendem esta minha pena. Só se pode sentir aquilo que se conhece. E a maior infelicidade é ter-se um naipe reduzido de experiências e emoções, que apenas podem ser compensadas, e não muito bem, com viagens ou filmes. O antidoto ideal, que eu conheça, só mesmo os livros. As bibliotecas são, ou deveriam ser, os espaços mais importantes das escolas, a acrescentar às cozinhas, esses outros laboratórios do tempo nas casas. Lá iremos... num outro dia.




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