2020-08-05



Risoleta C Pinto Pedro


Do próximo e do distante, do grande e do pequeno


(Pessoa e Pascoaes, ou o balanço e o baloiço do meu coração)

Dizia-me no outro dia uma querida amiga, a propósito da morte de alguém que muito admira, e que de algum modo fez história, que em contraponto, a sua própria acção se faz mais no quotidiano, na privacidade do pequeno gesto. Respondia-lhe eu que sem a base dos pequenos gestos não há sustentação para os grandes. A vida é de uma enorme complexidade, e os que se apresentam visíveis estão frequentemente apoiados nos dos gestos pequenos, ou parvos, se formos à etimologia.

Tem isto a ver, parcialmente, com uma recente polémica sobre provincianismo e universalismo, que se criou a propósito de Pascoaes e Pessoa. Formas muito redutoras de ver a realidade, de ler os textos, de interpretar o pensamento. Não é possível arrumar dois grandes de uma penada com meia dúzia de conceitos.

Do Marão é possível olhar muito mais longe que da Rua Augusta. Depende de quem olha. Pascoaes e Pessoa teriam sempre uma visão de longo alcance onde quer que estivessem, não deixando, também, de ver, e de nos mostrar, o próximo e o pequeno.

Não é possível sujeitar dois gigantes a um Benfica-Sporting. É curto, é ofensivo, é triste. Não o merecem. Não o merecemos.

Ser modernista não implica, necessariamente, ser moderno. Muito menos ser universal e intemporal. Ser saudosista não implica, necessariamente, ser nacionalista, e ser nacionalista não implica, necessariamente, ser reaccionário, ser tradicionalista não implica, necessariamente, ser passadista. Pelo contrário, pode haver em tudo isto um impulso dinâmico, profundo, renovador. O cosmopolitismo superficial não cimentado nos valores próprios é menos que nada. Vaidade de novos-ricos. Sabe-o muito bem Eça. É um facto que a civilização, como forma de macaqueio, muitas vezes nos ficou curta nas mangas. Mas continuamos com tendência para optar por mangas curtas. Só porque se usa, só porque vem da Europa, só porque nos habituámos a ver-nos pequenos, à custa de nos olharmos em espelhos deformados. Então, pomo-nos em bicos dos pés, sem necessitarmos.

Há que deixarmos de ter vergonha de nós e de deixarmos de nos atacar naquilo que consideramos menos europeu, menos moderno, menos na crista da onda. Isso sim, é provincianismo do mais lamentável. É disto que me envergonho, e de Pascoaes e Pessoa valorizo todo o passado, todo o caminho, o tradicional e o moderno, pois foi disso que se ergueram. Reduzir Pessoa ou Pascoaes a isto ou àquilo é o mais absurdo dos tiques.

Não me arvoro em intérprete de Pessoa, mas gosto de o ler e sentir. Diz ele do rio que corre na sua aldeia:


      «E por isso, porque pertence a menos gente,
      É mais livre e maior o rio da minha aldeia.»
      Um rio “provinciano” pode ser «maior». Eloquente.

A sua maneira de ampliar o Tejo é com o rio da sua aldeia. O Tejo é o rio da sua aldeia, pois a sua aldeia é Lisboa, que o diga o sino da Igreja dos Mártires, logo, o rio da sua aldeia é uma espécie de heterónimo do Tejo. “O rio da minha aldeia” está dentro do Tejo, porque pertence a menos gente, e é «maior», porque o grande está contido no pequeno, à maneira dos fractais, e pertence àqueles poucos que conseguem ver o pequeno grande rio de aldeia escondido no grande pequeno rio que é o Tejo. O Tejo é e não é “o rio da minha aldeia”. Do Tejo «vai-se para o mundo», o que não significa que a partir do «rio da minha aldeia» não se vá sabe-se lá para onde, apenas «ninguém nunca pensou» nisso.

O sino e o rio da aldeia de Pessoa e Caeiro estão em Lisboa, o que mostra claramente como este homem rendido (também) ao modernismo se assume (igualmente), como um aldeão, um provinciano. Porque ele sabe que a verdade está no todo e quanto mais reunirmos dos bocadinhos em que nos partimos, por mais feios e desengraçados que nos pareçam (afinal de tudo não passam de cacos… ainda que preciosos, indispensáveis), mais próximos estamos da completude, embora o próximo seja ainda infinitamente longínquo, mas o caminhar inicia-se no primeiro modesto passo.

Vejamos o que sobre ele afirma Agostinho, e não o fazemos para o diminuir, porque não é possível diminuir quem é enorme, mas para acrescentar outros olhares, que não apenas os da habitual e já enjoativa cartilha. A propósito de Do Agostinho em torno de Pessoa, escrevi um dia:

Diz Agostinho em Do Agostinho em torno de Pessoa:

«vê lá Pessoa se refazes tudo/ e me lanças de novo aos temporais/ em vez do poço em que por mim te escudo.», sobre o que escrevi um dia:

«Poucos têm sido tão crus para com um poeta por si tão amado.

É um aviso muito sério, este, feito através de Campos: «vê lá Pessoa se refazes tudo». Indício forte a desfazer suspeitas de uma identificação entre ambos. Talvez não tão grande como lhes tem sido atribuída. De algum modo, são opostos. Pessoa, enquanto Campos, acusando-se pela voz genial de Agostinho de não ter ido «parar ao mar mas ao Martinho», Agostinho distanciando-se e reclamando para si, enquanto Campos, sair do conforto dos cafés, que metaforiza como poços, e ser, de preferência, lançado aos temporais. Agostinho afasta-se do seu oposto que, apesar de tudo, tanto o atrai. Quanto mais não seja, a ele se unindo pela crítica.»

Agostinho, esse desfazedor de unanimidades, das académicas, às pseudo-académicas e todas as outras. Por isso, vale também a pena e relê-lo, mais uma vez, em Um Fernando Pessoa:

«quando se chegou ao terreno da prática, o único Portugal que ele [Pessoa] viu foi o da Europa, viciado por trezentos anos de ocupação estrangeira; o erro foi mais longe, porque de Portugal se restringiu a Lisboa, mais viciada ainda, porque lhe tem cabido, como sede de governo, o papel de impor o estrangeiro ao resto do País, e em Lisboa escolheu para conviver o pior meio que se pode imaginar, o dos cafés de literatos. A sua existência, como Fernando Pessoa, vai ser a de se mover dentro de um círculo estreito que não ousa romper e de que apenas se evade pela leitura e pela conversa, pela bebida e pelo fumo; o que poderia ter sido a violenta, arrastadora, despertadora torrente. Lentamente se pantaniza entre quem o não valia, e ele próprio se não valendo a si. Nem os impulsos de carácter, como a um Espinosa, nem os impulsos de temperamento, como a um Camões, o salvaram do tédio de se ver ao espelho;»

Um Pessoa provincianamente confinado aos cafés de Lisboa. Mas tão grande, que daí se alça para o mundo. Contudo, a nível literal, o seu cosmopolitismo é uma ficção poética, que amplia na literatura.

Noutra parte, e digo-o igualmente no meu livro sobre A Literatura de Agostinho da Silva, a que pertence, também a transcrição anterior:

A este propósito será interessante revisitarmos o segundo capítulo do seu livro Um Fernando Pessoa, na parte em que Agostinho compara, distinguindo, o Pessoa da Mensagem de outros autores de épicas a quem chama, deixando Pessoa de fora: «autênticos poetas épicos». E sobre isto, afirma: «as outras epopeias surgiram da inteira personalidade dos seus autores e eram eles heróis como os de seus poemas, heróis apenas traídos pela diferença dos tempos, a diferença de resto necessária para que a perspectiva épica lhes fosse possível; Homero poderia ter-se batido em Tróia, Camões tem o entusiasmo da primeira viagem, Milton, não podendo estar com Lúcifer, esteve com Cromwell».

É difícil não pensarmos na vida aventurosa de Agostinho, que viveu heroicamente a epopeia que não escreveu em género, mas em extensão, qualidade e vigor. Como se ele e Pessoa fossem o inverso um do outro, ou o … complemento mútuo. O que um viveu, o outro escreveu:

«Mas Fernando Pessoa criou a epopeia com a compreensão que lhe davam inteligência e sensibilidade, numa união religiosa; faltaram-lhe, no entanto, a vontade e a acção. Tiveram os outros todos o sofrimento que vem da presença e da participação; caíram sobre ele os que surgem de se recusar e estar ausente.»

Agostinho não poupa Pessoa, a quem atribui flagrantes faltas.

Viva a festa da não unanimidade. Derrubar estátuas erguendo-as, desmascarar o génio honrando-o, conceder-lhe o dom de ser imperfeito e por isso ainda maior, se me é permitida a hipérbole, mais infinito.

Pessoa e Pascoaes são dois génios da nossa literatura que só nos honram. Limitados como todas as pessoas, quase infinitos, cada um à sua maneira, como criadores.

Aliás, se conta para alguma coisa a opinião de Pessoa, convém recordar que considerou, quer de Junqueiro, esse grande injustiçado do presente, nomeadamente a belíssima “Oração à Luz”, quer de Pascoaes, a “Elegia do Amor”, «o poema supremo da moderna civilização». A não ser que se queime tudo o que publicou na Águia enquanto vivo. Já estivemos mais longe… A oficial e canónica democracia cultural tem muito a aprender no que toca à diversidade, à complexidade e ao pluralismo que saiam do apertado espectro do branco, do preto e do cinzento.

António Telmo conta a forma como, jovenzinho, mas já iniciado nas tertúlias da Filosofia Portuguesa, conheceu Pascoaes:

      «Teixeira de Pascoaes vinha a Lisboa falar no Grémio Literário.

      Ficámos à porta, à espera da chegada do carro que o trazia. Vinha com uns amigos. Dirigiu-se imediatamente ao Álvaro e ao Marinho, que bem conhecia de se encontrarem na Renascença Portuguesa e, em seguida, foi-nos apertando as mãos um a um fraternalmente. Um de nós deixou-se ficar como estava e disse-lhe: – Não o conheço de parte nenhuma. E Pascoaes prontamente: – Dê-me sua mão. Todos nos conhecemos do Paraíso.»

A grandeza de espírito não tem limites. Paradoxalmente, a estreiteza também não. Olhada à mesma reduzida lupa que vê Pascoaes como um provinciano, até a Ilha dos Amores poderá ficar reduzida a um pedaço de terra selvagem e inculta.

De um livro que escrevi sobre a Literatura de António Telmo:

« Estabelece um paralelo entre Pascoaes e Caeiro: «Ambos vêem nas formas da Natureza as formas do Paraíso somente tocáveis por quem consegue eliminar e expulsar a descrição do mundo que a saudade lhe transmitiu e que é transportada no automatismo dos lugares comuns da língua».

Contudo: «Teixeira de Pascoaes segue a via inversa de Alberto Caeiro». Paralelo na intenção, divergência no modo de o fazer. Se ambos «têm como condição o ruir [da] descrição do mundo», Pessoa «arranca» a Caeiro todos os sentimentos, como «aquele que no antigo rito ainda hoje vivo, se despe de metais e jóias».

Pelo contrário, Pascoaes «seguirá a via inversa, a da invocação e provocação dos sentimentos, como se estes fossem entidades estranhas ao seu ser».

Pascoaes invoca estados de alma, não os combate, não tenta «ser valente por insensibilidade», provoca o medo «se ele não está presente», fazendo dele, parafraseando Telmo, o órgão da sua visão. Acrescenta: «A invocação chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo põe um certo espaço entre ela e quem a invoca».»

Assim como viu Telmo, na poesia de Pascoaes:

«Admitimos que haja muito de literário na forma da poesia de Pascoaes, mas talvez de toda a poesia. Todavia, é irrecusável a evidência de um conteúdo terrivelmente sério, experimental, operativo, iniciático».»

É, realmente, um caso sério, por isso atemoriza alguns, que se servem de Pessoa para o diminuir. Mas Pessoa não serve para isso, apenas para o que o engrandeça. E Pascoaes não encolhe com algumas desajeitadas tentativas de branqueamento.

É possível divergir com elegância, inteligência e até rigor. Pessoa e Pascoaes admiravam-se, e contudo nem sempre estavam de acordo.

O próprio António Telmo diz de Pascoaes, e é o filósofo que fala:

      «Os nossos poetas situam-se, inocentemente, do lado do irracionalismo. Para eles, a linguagem poética — a sua linguagem —, com as suas estruturas metafóricas, é imediatamente distinta da linguagem da razão, senão oposta. Na medida, porém, em que os poetas de acordo com um falso bergsonismo, defendem, como o fez Pascoaes, maior projecção e amplitude cognitivas para a poesia, recorrem logo a termos como inspiração ou intuição, contrapondo-as à inteligência como uma faculdade a outra faculdade. Bastar-lhes-ia, contudo, observar que onde quer que o homem escreva, fale ou pense, logo surge o adjectivo e o verbo, sob pena de se ficar mudo ou fascinado pelas imagens fixas que compõem o ser. Este envoûtement corresponde ao que, num plano mais profundo, Pascoal Martins chamou o êxtase de Adão.»


Até porque na Arte Poética reconhece em Pascoaes essa capacidade de ligação dos mundos, sendo a descida ao reino das sombras simultaneamente uma subida, excelentemente ilustrada pela citação que ali faz do poeta do Marão: «a folha que cai, é alma que sobe», que põe, de modo para nós muito esclarecedor, em paralelo com «O que em mim sente está pensando», como para Pessoa é a poesia produto também do pensamento, não apenas da inspiração, «pensada», trazendo igualmente para junto de si Pascoaes a fim de o ajudar a mostrar a distinção entre ritmo e metrificação. Pascoaes, para ele um dos grandes líricos deste século, ao contrário daqueles que considera medíocres, e que «variam, no papel, um ritmo que mental e oralmente, indefinidamente se repete», tem o talento ou o génio de saber usar para ritmos estruturalmente diversos, a mesma metrificação. «O ritmo, porém, antes de ser oral, é mental.»

É deste olhar crítico, mas complexo e não reducionista, que necessitamos. Atento à poesia das cidades, dos campos, dos céus e dos infernos.

Telmo recusa, como Pascoaes, a «oposição à natureza», que exemplifica com passagem de poema de Carlos Queirós:

      «Anoitece.

      Faz frio pensar na vida.

      E a natureza parece

      Dizer em voz comovida

      Que o homem não a merece.»

Não conheço maior forma de provincianismo que o cosmopolitismo exacerbado, exclusivista, redutor e censório.

Guerras e tentativas de extermínio, a nível literal e a nível cultural houve sempre, e é preciso denunciá-las. Numa entrevista em torno da Poesia e sua ligação à filosofia, refere Telmo o facto de Guerra Junqueiro ter acabado por ser vítima do ataque dos Sergistas e sua «campanha feroz contra [...] Pascoaes, Pessoa e Régio» com o conceito de “Renascença”, posto em causa por A Sérgio que dela se separou, talvez por um desvio de interpretação do que significava para Junqueiro e Pascoaes, e que Telmo, como sempre brilhantemente, clarifica: «Nascer de novo não é regressar ao passado, é ver uma luz nova naquilo que olhos mortos só podem ver como tradição morta.

Não se deitam fora os arquétipos, como a modernidade não pode excluir a tradição, mas juntar-se-lhe, acrescentá-la, sustentar-se nela para transfigurá-la.


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