Do próximo e do distante, do grande e do pequeno
Dizia-me no outro dia uma querida amiga, a propósito da morte de alguém que muito admira, e que de algum modo fez história, que em contraponto, a sua própria acção se faz mais no quotidiano, na privacidade do pequeno gesto. Respondia-lhe eu que sem a base dos pequenos gestos não há sustentação para os grandes. A vida é de uma enorme complexidade, e os que se apresentam visíveis estão frequentemente apoiados nos dos gestos pequenos, ou parvos, se formos à etimologia.
«E por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia.» Um rio “provinciano” pode ser «maior». Eloquente. A sua maneira de ampliar o Tejo é com o rio da sua aldeia. O Tejo é o rio da sua aldeia, pois a sua aldeia é Lisboa, que o diga o sino da Igreja dos Mártires, logo, o rio da sua aldeia é uma espécie de heterónimo do Tejo. “O rio da minha aldeia” está dentro do Tejo, porque pertence a menos gente, e é «maior», porque o grande está contido no pequeno, à maneira dos fractais, e pertence àqueles poucos que conseguem ver o pequeno grande rio de aldeia escondido no grande pequeno rio que é o Tejo. O Tejo é e não é “o rio da minha aldeia”. Do Tejo «vai-se para o mundo», o que não significa que a partir do «rio da minha aldeia» não se vá sabe-se lá para onde, apenas «ninguém nunca pensou» nisso. O sino e o rio da aldeia de Pessoa e Caeiro estão em Lisboa, o que mostra claramente como este homem rendido (também) ao modernismo se assume (igualmente), como um aldeão, um provinciano. Porque ele sabe que a verdade está no todo e quanto mais reunirmos dos bocadinhos em que nos partimos, por mais feios e desengraçados que nos pareçam (afinal de tudo não passam de cacos… ainda que preciosos, indispensáveis), mais próximos estamos da completude, embora o próximo seja ainda infinitamente longínquo, mas o caminhar inicia-se no primeiro modesto passo. Vejamos o que sobre ele afirma Agostinho, e não o fazemos para o diminuir, porque não é possível diminuir quem é enorme, mas para acrescentar outros olhares, que não apenas os da habitual e já enjoativa cartilha. A propósito de Do Agostinho em torno de Pessoa, escrevi um dia: Diz Agostinho em Do Agostinho em torno de Pessoa: «vê lá Pessoa se refazes tudo/ e me lanças de novo aos temporais/ em vez do poço em que por mim te escudo.», sobre o que escrevi um dia: «Poucos têm sido tão crus para com um poeta por si tão amado. É um aviso muito sério, este, feito através de Campos: «vê lá Pessoa se refazes tudo». Indício forte a desfazer suspeitas de uma identificação entre ambos. Talvez não tão grande como lhes tem sido atribuída. De algum modo, são opostos. Pessoa, enquanto Campos, acusando-se pela voz genial de Agostinho de não ter ido «parar ao mar mas ao Martinho», Agostinho distanciando-se e reclamando para si, enquanto Campos, sair do conforto dos cafés, que metaforiza como poços, e ser, de preferência, lançado aos temporais. Agostinho afasta-se do seu oposto que, apesar de tudo, tanto o atrai. Quanto mais não seja, a ele se unindo pela crítica.» Agostinho, esse desfazedor de unanimidades, das académicas, às pseudo-académicas e todas as outras. Por isso, vale também a pena e relê-lo, mais uma vez, em Um Fernando Pessoa: «quando se chegou ao terreno da prática, o único Portugal que ele [Pessoa] viu foi o da Europa, viciado por trezentos anos de ocupação estrangeira; o erro foi mais longe, porque de Portugal se restringiu a Lisboa, mais viciada ainda, porque lhe tem cabido, como sede de governo, o papel de impor o estrangeiro ao resto do País, e em Lisboa escolheu para conviver o pior meio que se pode imaginar, o dos cafés de literatos. A sua existência, como Fernando Pessoa, vai ser a de se mover dentro de um círculo estreito que não ousa romper e de que apenas se evade pela leitura e pela conversa, pela bebida e pelo fumo; o que poderia ter sido a violenta, arrastadora, despertadora torrente. Lentamente se pantaniza entre quem o não valia, e ele próprio se não valendo a si. Nem os impulsos de carácter, como a um Espinosa, nem os impulsos de temperamento, como a um Camões, o salvaram do tédio de se ver ao espelho;» Um Pessoa provincianamente confinado aos cafés de Lisboa. Mas tão grande, que daí se alça para o mundo. Contudo, a nível literal, o seu cosmopolitismo é uma ficção poética, que amplia na literatura. Noutra parte, e digo-o igualmente no meu livro sobre A Literatura de Agostinho da Silva, a que pertence, também a transcrição anterior: A este propósito será interessante revisitarmos o segundo capítulo do seu livro Um Fernando Pessoa, na parte em que Agostinho compara, distinguindo, o Pessoa da Mensagem de outros autores de épicas a quem chama, deixando Pessoa de fora: «autênticos poetas épicos». E sobre isto, afirma: «as outras epopeias surgiram da inteira personalidade dos seus autores e eram eles heróis como os de seus poemas, heróis apenas traídos pela diferença dos tempos, a diferença de resto necessária para que a perspectiva épica lhes fosse possível; Homero poderia ter-se batido em Tróia, Camões tem o entusiasmo da primeira viagem, Milton, não podendo estar com Lúcifer, esteve com Cromwell». É difícil não pensarmos na vida aventurosa de Agostinho, que viveu heroicamente a epopeia que não escreveu em género, mas em extensão, qualidade e vigor. Como se ele e Pessoa fossem o inverso um do outro, ou o … complemento mútuo. O que um viveu, o outro escreveu: «Mas Fernando Pessoa criou a epopeia com a compreensão que lhe davam inteligência e sensibilidade, numa união religiosa; faltaram-lhe, no entanto, a vontade e a acção. Tiveram os outros todos o sofrimento que vem da presença e da participação; caíram sobre ele os que surgem de se recusar e estar ausente.» Agostinho não poupa Pessoa, a quem atribui flagrantes faltas. Viva a festa da não unanimidade. Derrubar estátuas erguendo-as, desmascarar o génio honrando-o, conceder-lhe o dom de ser imperfeito e por isso ainda maior, se me é permitida a hipérbole, mais infinito. Pessoa e Pascoaes são dois génios da nossa literatura que só nos honram. Limitados como todas as pessoas, quase infinitos, cada um à sua maneira, como criadores. Aliás, se conta para alguma coisa a opinião de Pessoa, convém recordar que considerou, quer de Junqueiro, esse grande injustiçado do presente, nomeadamente a belíssima “Oração à Luz”, quer de Pascoaes, a “Elegia do Amor”, «o poema supremo da moderna civilização». A não ser que se queime tudo o que publicou na Águia enquanto vivo. Já estivemos mais longe… A oficial e canónica democracia cultural tem muito a aprender no que toca à diversidade, à complexidade e ao pluralismo que saiam do apertado espectro do branco, do preto e do cinzento. António Telmo conta a forma como, jovenzinho, mas já iniciado nas tertúlias da Filosofia Portuguesa, conheceu Pascoaes:
Ficámos à porta, à espera da chegada do carro que o trazia. Vinha com uns amigos. Dirigiu-se imediatamente ao Álvaro e ao Marinho, que bem conhecia de se encontrarem na Renascença Portuguesa e, em seguida, foi-nos apertando as mãos um a um fraternalmente. Um de nós deixou-se ficar como estava e disse-lhe: – Não o conheço de parte nenhuma. E Pascoaes prontamente: – Dê-me sua mão. Todos nos conhecemos do Paraíso.» De um livro que escrevi sobre a Literatura de António Telmo: « Estabelece um paralelo entre Pascoaes e Caeiro: «Ambos vêem nas formas da Natureza as formas do Paraíso somente tocáveis por quem consegue eliminar e expulsar a descrição do mundo que a saudade lhe transmitiu e que é transportada no automatismo dos lugares comuns da língua». Contudo: «Teixeira de Pascoaes segue a via inversa de Alberto Caeiro». Paralelo na intenção, divergência no modo de o fazer. Se ambos «têm como condição o ruir [da] descrição do mundo», Pessoa «arranca» a Caeiro todos os sentimentos, como «aquele que no antigo rito ainda hoje vivo, se despe de metais e jóias». Pelo contrário, Pascoaes «seguirá a via inversa, a da invocação e provocação dos sentimentos, como se estes fossem entidades estranhas ao seu ser». Pascoaes invoca estados de alma, não os combate, não tenta «ser valente por insensibilidade», provoca o medo «se ele não está presente», fazendo dele, parafraseando Telmo, o órgão da sua visão. Acrescenta: «A invocação chama e atrai a coisa invocada, mas ao mesmo tempo põe um certo espaço entre ela e quem a invoca».» Assim como viu Telmo, na poesia de Pascoaes: «Admitimos que haja muito de literário na forma da poesia de Pascoaes, mas talvez de toda a poesia. Todavia, é irrecusável a evidência de um conteúdo terrivelmente sério, experimental, operativo, iniciático».» É, realmente, um caso sério, por isso atemoriza alguns, que se servem de Pessoa para o diminuir. Mas Pessoa não serve para isso, apenas para o que o engrandeça. E Pascoaes não encolhe com algumas desajeitadas tentativas de branqueamento. É possível divergir com elegância, inteligência e até rigor. Pessoa e Pascoaes admiravam-se, e contudo nem sempre estavam de acordo. O próprio António Telmo diz de Pascoaes, e é o filósofo que fala:
Até porque na Arte Poética reconhece em Pascoaes essa capacidade de ligação dos mundos, sendo a descida ao reino das sombras simultaneamente uma subida, excelentemente ilustrada pela citação que ali faz do poeta do Marão: «a folha que cai, é alma que sobe», que põe, de modo para nós muito esclarecedor, em paralelo com «O que em mim sente está pensando», como para Pessoa é a poesia produto também do pensamento, não apenas da inspiração, «pensada», trazendo igualmente para junto de si Pascoaes a fim de o ajudar a mostrar a distinção entre ritmo e metrificação. Pascoaes, para ele um dos grandes líricos deste século, ao contrário daqueles que considera medíocres, e que «variam, no papel, um ritmo que mental e oralmente, indefinidamente se repete», tem o talento ou o génio de saber usar para ritmos estruturalmente diversos, a mesma metrificação. «O ritmo, porém, antes de ser oral, é mental.» É deste olhar crítico, mas complexo e não reducionista, que necessitamos. Atento à poesia das cidades, dos campos, dos céus e dos infernos. Telmo recusa, como Pascoaes, a «oposição à natureza», que exemplifica com passagem de poema de Carlos Queirós:
Faz frio pensar na vida. E a natureza parece Dizer em voz comovida Que o homem não a merece.» Guerras e tentativas de extermínio, a nível literal e a nível cultural houve sempre, e é preciso denunciá-las. Numa entrevista em torno da Poesia e sua ligação à filosofia, refere Telmo o facto de Guerra Junqueiro ter acabado por ser vítima do ataque dos Sergistas e sua «campanha feroz contra [...] Pascoaes, Pessoa e Régio» com o conceito de “Renascença”, posto em causa por A Sérgio que dela se separou, talvez por um desvio de interpretação do que significava para Junqueiro e Pascoaes, e que Telmo, como sempre brilhantemente, clarifica: «Nascer de novo não é regressar ao passado, é ver uma luz nova naquilo que olhos mortos só podem ver como tradição morta. Não se deitam fora os arquétipos, como a modernidade não pode excluir a tradição, mas juntar-se-lhe, acrescentá-la, sustentar-se nela para transfigurá-la. risoletacpintopedro@gmail.com http://aluzdascasas.blogspot.com/ http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/ http://escritacuracriativa.blogspot.pt/ http://www.facebook.com/risoleta.pedro https://www.facebook.com/escritoraRisoletaCPintoPedro/ http://aluzdascasas.blogspot.com/2020/03/o-vale-do-infante.html http://risoletacpintopedro.wix.com/risoletacpintopedro LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS
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