Risoleta C Pinto Pedro
As guerras santas
Foram sempre um bom pretexto. De vez em quando o ser humano sente necessidade de fazer limpeza aos seus quartos escuros, que já o oprimem excessivamente, mas não sabe como fazê-lo.
Começa então por aquilo que considera os quartos escuros dos outros. São os empregados domésticos compulsivos e agressivos.
Vem isto a propósito de um “diálogo” que presenciei e cujo tema era o vegetarianismo.
Alguém acusava outro, também vegetariano, de usar leite animal e derivados, na alimentação. O outro defendia-se como podia, mas logo no defender-se era visível o sentimento de culpa. Às tantas o jogo de defesa e ataque transformou-se num outro mais duro, de ataque e ataque. Em nome do amor pelos animais.
È aqui que percebemos o quanto ainda estamos ausentes do amor. Pelos animais, por nós, pela natureza. Quando o pretenso amor desencadeia uma guerra, ainda que de palavras, a guerra já está instalada dentro de nós.
È claro que a tendência natural da humanidade é tornar-se vegetariana, muitos de nós já iniciámos o movimento há muito tempo, com hesitações, avanços e recuos, mas é assim mesmo. Pelas mais diversas razões: de saúde, éticas, de bem-estar, por amor. Todas são válidas.
Tenho verificado, ouvindo e conversando com pessoas, que os seus organismos começam a pedir e às vezes a exigir que deixem a carne. Por razões de saúde ou simplesmente energéticas. Os corpos são diferentes. Uns ainda têm e outros julgam que têm, necessidade de proteína animal enquanto que muitos se mantêm saudáveis com grãos, verduras e frutas. Alguns já só se alimentam de animais criados em liberdade e tratados com dignidade. É o normal processo evolutivo.
Parar com a criação massificada e cruel de animais significaria não só saúde para os corpos, como para o planeta, que se libertaria da invasão das florestas pelos pastos.
Os nossos corpos têm evoluído desde que sobrevivíamos como caçadores. Agora temos muito menos atividade física e estamos a ser dizimados pelas doenças que nós próprios inoculamos nos nossos corpos através da alimentação e dos pensamentos.
A evolução está em curso, mas a evolução não se faz com toda a gente a fazer as mesmas coisas ao mesmo tempo. E estar à frente, ou parecê-lo, ou anunciá-lo, nem sempre é o que parece.
Muito menos vamos lá com guerras entre vegetarianos, vegans, lacto-ovo-vegetarianos, omníveros, “peixívoros”, “franguívoros”, carnívoros e por aí fora.
Isso apenas revela que ser-se vegetariano não muda nada se não for acompanhado de um processo de consciência que inclui a aceitação e o amor por nós e pelos outros.
Aceitar que os outros sintam necessidade de comer carne não implica aceitar que a terra tenha de continuar a ser invadida pela exploração desordenada. Não implica ser cúmplice com a violação dos direitos do planeta, digo, de todos os que nele habitam: o respeito, o cuidado, a preservação, a vida. Não implica que não denunciemos. È importante saber distinguir entre as pessoas e os comportamentos.
É como querer acabar com o flagelo da droga atacando o pequeno consumidor de drogas legalizadas.
E espera-se que os que pretensamente estão mais conscientes não usem as velhas ferramentas de ataque, mais que esgotadas. É um péssimo serviço ao que julgam defender. Não adianta. Atrasa.
Somos todos seres humanos a procurar fazer o melhor que sabemos.
Ser vegetariano não é garantia de se ser mais amoroso. Pode, certamente, traduzir mais amor por nós, pelos animais e por todos os seres, pelo planeta. Mas por si só, não garante nada. É só um passo mecânico e desengonçado, se não for acompanhado pelo amor-consciência.
Ainda há pouco tempo assisti a cenas em que fumadores, pessoas cultas e esclarecidas, reclamavam do seu direito de fumar à mesma mesa de não fumadores. E brincavam com alguma agressividade, acrescentando que o almoço de fulano de tal estava a incomodar o seu cigarro.
Também isto faz parte do absurdo do mundo. Que comedores de carne se incomodem com a presença de alguém que a eliminou dos seus hábitos, ou que vegans se incomodem por outros “ainda” consumirem ovos ou leite ou mesmo carne. Por muitas teorias que existam e até a comprovação acerca do real malefício do leite, responsável por algumas doenças, e por aí fora, o que não está em causa. O que tudo isto revela é o nosso remoto tribalismo: quem não se veste como eu não é boa gente. Quem não se alimenta como eu não é boa gente. Quem não fuma o cachimbo da paz comigo não é boa gente. Então, há que dizimá-lo, quanto mais não seja por palavras. Uma das mais ferozes armas da humanidade. Fumar o cachimbo da paz antes de fazer a guerra.
Ainda falta algum tempo para, enquanto humanidade, nos tornarmos verdadeira e amorosamente vegetarianos, porque os corações ainda estão habitados pelo medo do que é diferente. Esperemos apenas que estejamos a tempo. De haver cenouras.
É no coração que o vegetarianismo verdadeiramente começa. Também pode começar á mesa. Mas leva mais tempo. Se o coração não se sentar com o corpo.
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