2014-01-08



Risoleta C Pinto Pedro


Num sapato de Dante, de Maria Azenha,



Foi numa aula e a propósito da leitura de um poema deste livro, que ficou patente a capacidade desta poesia para envolver leitores não habituais.

Digo isto, porque numa página de diário, uma aluna que até aí não tinha revelado um gosto especial pelo texto literário, criou um poema inspiradíssimo onde a leitura da poesia de Maria Azenha se achava refletida. Sem imitação, mas com inspiração.

Para mim é a maior coroa de glória de um criador: que a poesia viva de um poeta vivo entre na aula e se faça vida.

Este livro de poemas, Num sapato de Dante, de Maria Azenha, na linha da sua já conhecida poesia, entre a carne e o espírito, unindo, pelo paradoxo que é uma análise intuitiva, o que foi separado, traz algo que também não sendo novo no universo poético de Maria Azenha, assume agora uma nova realeza (em todos os sentidos que quiserem) que o próprio título indicia: a atenção ao objeto, esse nosso silencioso e misterioso observador.

A partitura, o ritmo é trinário, o índice como anotação já o indicia. Profética e simbolicamente. Em andamentos. O que não é estranho aos sapatos. Também a este sapato. De Dante. Que convém avisar desde já que não tem ligação com o da gata Borralheira, apesar de ter em comum com ela a singularidade. Da personagem e do sapato. E talvez isto não seja verdade, talvez haja aqui mais caleches, príncipes e abóboras do que pode parecer. Vejamos: O livro evolui em crescendo matemático entre a primeira e a terceira parte, como numa espécie de aquecimento orquestral.

O prelúdio é já quase um posfácio, fala do abandono dos objetos, da embriaguez da destruição e da ascensão: […o meu corpo/[…] voa para cima, num sapato de Dante!].

Imagens relacionadas com a loucura, associações inesperadas do corpo aos objetos e uma certa aproximação ao quotidiano moderno e temporal. A sacralização do profano […fazer ao pequeno-almoço/a primeira comunhão…], ou a profanização do sagrado [… um dia vi entrar no cabeleireiro nossa senhora …] o intertexto, a interferência perfeitamente integrada de outras línguas, o cruzamento ou a compatibilização de mundos escandalosa e mutumente perfurados (a nossa senhora confundida com senhora Merkel), o cruzamento metonímico entre a poesia e o “motor” material [… este poema é feito com as duas mãos/embora escreva num PC Toshiba …], um mundo onde o sangue escorre abundantemente e quase natural e onde se cruza com maçãs e crianças num trânsito normal a conviver com mortes, cafés e o nascer do dia. Diálogos, narrativas, pensamentos, são o discurso por onde escorre o sangue deste mundo colorido e às vezes, muitas vezes, mudo. Para além das palavras.

Há outros sapatos, nos poemas, podem ser de neve. Assim nos aproximamos do terceiro andamento. Com os pés gelados, apesar do andar. Há muito amor verbalizado como ausente, doloroso, silencioso. A única fidelidade e consolo parece estar no poema. Apesar de escorrer sangue. Apesar de morrer. Está sempre a ressuscitar.

Não sei de que cor é esta poesia, nem qual é a sua luz. Parece um arco-íris permanentemente liquefeito a escorrer para debaixo dos objetos, e a luz cintila como néon que faz doer os olhos. É uma peregrinação que atravessa casas, corpos, campos e cidades à procura do amor onde ele deixou rasto, mas já não está. O peregrino persegue-se num círculo fechado e infinito [… o meu amado é um espelho]. O livro é um único poema e o poema é muito belo. E dói.


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