Risoleta C Pinto Pedro
LITERATURA NO HIPERMERCADO
A literatura, a boa literatura (sei lá o que é isso, houve tempos em que me alimentava de tudo o que tivesse letras, tudo era boa literatura, nessa altura) funciona como um referente da nossa vida. Ou será o contrário? Enfim, para início de crónica, duas dúvidas, uma a seguir à outra, não está mal…
Onde eu queria chegar, era contar que no outro dia, no supermercado, senti-me uma personagem de um conto de Calvino sem deixar de ser eu.
Eu empurrava o carrinho fazendo criteriosamente as contas aos gastos. Ao meu lado, em todas as direções e sentidos, como num filme, como num conto, como na realidade, outras pessoas, casais, famílias, circulavam pelos corredores, entre as prateleiras, e iam enchendo os carrinhos com artigos de primeira necessidade e de segunda e de terceira, por aí fora… Os carrinhos são grandes, cabe lá muita coisa. São enormes, os carrinhos de supermercado. Pergunto-me: como é que as nossas mães, num tempo em que não havia carrinhos, nem supermercado, nem paletes de água, nem de leite, nem nada dessas monumentais coisas, pergunto-me repito, como é que elas forneciam a casa com as alcofas de palhinha, de modo a não faltar o essencial às refeições?
Voltando ao super, ao hiper: ficámos no ponto em que eu enchia criteriosamente o carrinho e os outros nem por isso. Alguma vantagem hei de obter de ser eu a autora da crónica: pelo menos, boa imagem que não me falte.
O superhiper enchia-se cada vez de mais gente, e os nossos carrinhos cheios de coisas de primeira e segunda e outras desnecessidades comprimiam-se uns contra os outros como num desenho animado.
Como no conto de Calvino, uma senhora que tinha andado a encher o carrinho só para experimentar a sensação antiga, começou a repor os produtos nas prateleiras, mas como nos desenhos animados, os corredores estavam cada vez mais cheios e já não era possível escolher a nossa direção. Éramos todos pressionados, misteriosamente empurrados numa direção única, num único sentido que, a certa altura, se revelou ser o caminho da… caixa. E ali nos encontrámos todos, como no conto de Calvino, com os nossos carrinhos sobredotados e superlotados de bens e desnecessidades. Sem remissão, sem faixa de retorno, culpados e arrependidos. A mim, o que me vale, é que isto é só uma crónica, posso abrir uma brecha nesta fila assim que quiser. É a vantagem da literatura quando somos nós a fazê-la. Porque no conto de Calvino lá continuam todos na fila da caixa: a mãe, o pai, o filho, a irmã (mais ou menos, já não me recordo bem dos parentescos, mas esta é a vantagem da literatura quando somos nós a fazê-la) cada um com seu carrinho. Só a fingir. Como hoje, nós. Eternamente.
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