2013-04-10



Risoleta C Pinto Pedro


Sentadas ambas à soleira da porta

Acontece-me com frequência, enquanto escritora, escrever coisas de que não tenho a mínima consciência, que não percebo e que até me aparecem, quando depois me leio, às vezes anos mais tarde, como profundamente perturbadoras.

Foi o caso de algo que escrevi no meu terceiro livro O Aniversário, tão perturbador que hoje não consigo, sequer, transcrevê-lo aqui. Foi alvo de análise arguta do Dr. António Bento, generoso ser, reconhecido psiquiatra, num prefácio a um livrinho que mais tarde incluiu apenas, por escolha da Padrões Culturais, o último capítulo desse anterior livro, como uma espécie de conto autónomo que, reconheço, também pode ser.

Era uma passagem relativa às mães e aos filhos, e só recentemente a compreendi. Respirei de alívio. Mas ainda não o suficiente, por ainda não conseguir transcrevê-la. Uma mãe que, como eu, perdeu um filho, sem ao menos a benesse de se poder preparar para isso, se é que alguém alguma vez se consegue preparar para tal, um filho que partiu sem ao menos fazer as malas (depois percebi que para o lugar para onde ia precisava de ir muito leve), uma mãe assim, guarda, se não para sempre, pelo menos durante algum tempo, um enorme e insuportável sentimento de culpa. Por não ter conseguido conservar a vida que pensava ter dado ao seu filho. Reside aí o equívoco. Não foi ela que lhe deu a vida, ela apenas foi um gineceu, não foi ela que lha retirou, ela apenas foi uma testemunha. Mas uma mãe ainda não refeita de um tsunami deste tipo não consegue ver isso.

Uma mãe que, de alguma forma, pode criar (seja pela escrita ou por qualquer outro meio, que não há criações mais ou menos nobres, há Criação), pode ir-se confrontando com as sombras que a propósito da sua dor, mesmo sem ter consciência disso, vai gerando. É pela sombra que nos salvamos, é a sombra que nos salva. É a sombra que nos mostra do que somos habitados, porque é ela que nos habita.

A essas sombras fomo-las recebendo paulatinamente dentro de nós, tão lentamente que não nos apercebemos do volume e espessura que já ocupavam na casa e no sótão, no corpo e na mente. A ponto de se tornarem insuportáveis e de um dia, consoante a nossa capacidade para suportar intrusos dentro de casa, lhes permitirmos que vão saindo, e cá fora, sentadas ambas à soleira da porta, logo, à luz, apercebemo-nos de quanto têm para nos contar acerca de nós e de como, afinal, não são assustadoras, mas pequenos entes cheios de medo de ser abandonados. É preciso indicar-lhes o caminho e dizer-lhes que liberdade não é abandono. Assim vamos limpando a casa e permitindo que pelas janelas amplamente abertas, entre quem aí tem assento, por direito: nós, digo, a luz, digo, nós.



risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/
http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/



Ver crónicas anteriores



LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS