Risoleta C Pinto Pedro
A literatura como música
...Ou a vírgula como a fotografia do ar
Embora eu também seja professora, os delírios que se seguem são mais próprios da escritora...
A música vem desde o início dos tempos, e também a palavra. Porque uma e outra vivem da respiração, da vibração e do ritmo.
Já Paul Verlaine, um escritor francês da segunda metade do século XIX, escrevia num poema que intitulou Arte Poética:
"Art poétique
De la musique avant toute chose,
Et pour cela préfère l'Impair
Plus vague et plus soluble dans l'air,
Sans rien en lui qui pèse ou qui
Portanto, a natureza da literatura, como a da música, é o ar. São seres do ar.
Desde que, aquele a que alguns chamam Criador disse "Fiat" (Faça-se).
Mesmo quando foram aprisionadas no papel, porque antes de serem livro e partitura, começaram por ser tocadas e cantadas ou contadas, a literatura em forma de poesia ao som da lira, ou de conto à lareira e a música que nessa altura se confundia com a poesia porque era cantada, e com o vento, porque era soprada, ou vibrando em cordas rudimentares. Estou a falar das origens.
Nenhuma delas, literatura ou música, tinha um registo escrito.
Portanto, a origem da literatura é musical.
A própria narrativa nasceu com o verso, e não precisamos recuar muito, basta-nos ir até Camões ou Homero. Para não falar no teatro, e evoco Gil Vicente e Shakespeare, o modo dramático em verso. Literatura e música são parentes da mesma linhagem.
Mas ao contrário da história da literatura, que nasceu como música e se foi fixando cada vez mais ao papel:
Saramago faz um movimento contrário, parte do registo escrito e introduz-lhe o ar, sob a forma de vírgulas, enche a escrita e o papel de respiração, de circularidade, como a escrita barroca de Vieira, e escreve palavras como quem compõe música barroca; entrelaça cerejas. Como Vieira.
Esta ideia de coisa circular, como é a escrita destes dois génios da literatura, destes músicos da palavra, evoca uma imagem que para mim é muito do barroco: o exuberante espiralado das ornamentações em torno das discretas colunas clássicas, onde parras, barrigudos anjos dourados e outros elementos simbólicos e ornamentais se enrolam à volta das colunas a caminho do céu. Ou do ar. E é esse movimento que me parece fazer a escrita de Saramago e de Vieira, um rodar sobre si mesmo, como um fumo que sobe e se enrola em espiral e cria uma arquitetura aérea. Como a música.
Esta origem musical da literatura, que se foi perdendo pelos séculos, encontra-se ainda, como vestígio, mas faz parte da essência da escrita de alguns, como Saramago.
É uma escrita do ar, tem todos os ingredientes, palavras que sobem e se enrolam na nossa respiração, tem gaivotas e tem música.
Por outro lado, este enrolar das palavras é como um ninho, também este uma casa de ar, ou um colo. Ou um abraço que nos acolhe e embala, sente-se quase um balanço, como um embalar de mãe. As palavras enrolam-se femininamente, não formam fileiras, nem quadrados, à maneira dos exércitos, não se arrumam em prateleiras à maneira das lojas, desarrumam-se numa estrutura oculta, mas que existe. Só um olhar amoroso, eu diria mais até: só o ouvir do coração, consegue encontrar, neste aparente labirinto significativo e sonoro, uma estrutura, uma ordem e um propósito. É uma ordem por entre o aparente caos, como deixa adivinhar o título de Vieira História do Futuro.
"Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria é da curiosidade humana a sua matéria.
Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada. "
Apesar de tudo, ele, Pe António Vieira, atreve-se a entrar pelos caminhos de Deus.
Assim como o feminino sempre teve uma feição escandalosa e desarrumadora do ordenado mundo masculino, assente sobre leis e regras, esta perspetiva da história que tem Vieira orienta-se mais pelo mistério, valor intrinsecamente feminino, do que pela lógica.
Também ele contraria o senso comum e escreve a história que ainda não aconteceu. Com uma escrita geometricamente aérea, geometria no espaço. Como nuvens inteligentes ou como música.
Saramago e Vieira têm em comum esta forma barroca de escrever, um gosto, um prazer, um comprazimento nas palavras, que tanto irritaram os racionalistas neoclássicos.
Eu encontro muito, na escrita de Saramago, a respiração de António Vieira. Que o acolhe como um colo de mãe.
Mas temos estado a falar de barroco, circularidade, feminino, respiração e ar. Só nos falta falar da música e o que faz aqui a música de jazz no meio de Vieira e Saramago.
O gosto pelo ornamento, encontramo-lo na música barroca e nestes escritores, se bem que não estejamos a referir-nos a uma ornamentação sem estrutura, oca, na linha da arte pela arte, mas de uma forma sustentada por ideias, sentimentos e emoções. Como a história que também faz (também isso têm ambos em comum), José Saramago. Que escreve o Memorial do Convento não para acrescentar páginas de história às já existentes, mas para dar voz (o verbo) aos que foram silenciados. Os construtores da história, de que também fala Brecht na sua poesia: os trabalhadores, operários, cozinheiros, e todos os outros anónimos.
Mas continuando a falar do ar, neste caso em forma de música, como fazer, então, a ligação entre a música barroca e o jazz? A música barroca anda, através do Scarlatti, pelas páginas do Memorial do Convento.
O barroco, também na música, é uma arte da ornamentação e vive muito da circularidade dos temas. Scarlatti é um deles, mas também Bach, e na Arte da fuga, por exemplo, encontra-se claramente o tema e variações que vamos encontrar no jazz soba a forma de tema e improvisação e na escrita de Saramago e sua circularidade frásica. Músico de jazz que se preza estuda a música barroca e particularmente, Bach. Tema e variação, o ar a rodar, a circular em espiral, como encontramos na escrita de Vieira e Saramago.
http://www.youtube.com/watch?v=7jLqDvE1Vmw
(Palestra com leituras e audição de músicas, em 25 de maio de 2012, na Escola Secundária Romeu Correia, do Feijó.)
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